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Brasil Celina

'Não basta fazer feiras com temática negra se a escola não contrata mais professoras negras', diz pesquisadora

Depois que criança de 7 anos saiu da Edem porque foi vítima de racismo, fica questão: como um colégio com maioria de alunos brancos pode promover a diversidade?
Fachada do colégio Edem, em Laranjeiras Foto: Reprodução do site da Edem
Fachada do colégio Edem, em Laranjeiras Foto: Reprodução do site da Edem

RIO - Os pais de uma menina de 6 anos estavam na confraternização da turma de sua filha na Escola Dinâmica de Ensino Moderno (Edem), em 2018, quando ouviram a menina ser destratada por um(a) colega: "Deixa essa pretinha pra lá". Eles entenderam ali que a criança, única negra na sala, teria que lidar com a discriminação em seu novo colégio, uma instituição particular em Laranjeiras, na Zona Sul do Rio. Nos meses seguintes, o casal criou grupos de discussão e procurou o diálogo frequente com a escola, mas os insultos racistas continuaram, esporadicamente. No início deste ano, a menina passou a relatar, aos prantos, ofensas diárias e agressões físicas por parte de outras crianças. A situação ficou insustentável para a família. Cansados de pedir providências do colégio sem ver uma solução efetiva, os pais tiraram a filha da escola, mesmo antes de decidir onde matricular a pequena, agora com 7 anos.

Em carta enviada à escola e encaminhada ao grupo de pais da turma no WhatsApp na segunda-feira passada, o casal informou sobre sua decisão, lamentando que “o racismo institucional nos venceu!”. No texto, conforme noticiou a coluna de Ancelmo Gois , do GLOBO, eles relatam seus esforços para contornar o problema e ampliar o respeito à diversidade no colégio, mas afirmam que "pouco avançamos, pouco dialogamos... nada transformamos". A carta gerou comoção entre pais e professores da Edem, cuja diretoria fez circular um posicionamento , na última quinta-feira, garantindo que se mobilizou em torno da questão. Segundo a unidade de ensino, a equipe fez “intervenções” imediatas após cada episódio relatado pelos pais da menina. Além disso, após uma reunião com 11 pais e mães de famílias negras, pautou grupos de estudo permanentes na equipe para elaborar maneiras de levar o tema do racismo aos ensinos infantil e fundamental.

- A gente foi surpreendido por essa decisão da família. O trabalho educativo estava em andamento, o tema estava sendo discutido com as crianças. O dever da escola é mostrar, de forma pedagógica, a importância de se conviver com as diferenças - diz a diretora da Edem, Judy Galper. - A gente estava sensível ao sofrimento da aluna. Tivemos conversas com pais das crianças envolvidas na situação e estamos abrindo o diálogo para toda a escola. Está sendo programando pra abril um fórum para discutir a questão racial.

Escola debateu samba da Mangueira

A Edem é uma institução disposta a dialogar sobre questões atuais. Em 2015, para protestar contra agressões homofóbicas, estudantes do ensino médio organizaram na festa de São João uma quadrilha na qual meninos dançaram com meninos e meninas, com meninas. As duplas se formaram com base na afinidade e amizade dos estudantes. Recentemente, a escola criou uma horta mantida com ajuda dos alunos e promoveu discussões sobre a Reforma da Previdência. Depois do carnaval, as turmas do 6º ano assistiram a uma palestra do compositor Deivid Domenico, um dos nomes que assina o samba campeão da Mangueira no carnaval deste ano, "Histórias para ninar gente grande". Esse estímulo à diversidade e ao pensamento crítico leva muitos pais e mães a escolher o colégio.

Desde que começou a circular pelo WhatsApp e pelas redes sociais, a carta sobre a menina vítima de ofensas de cunho racial gerou uma onda de comoção no colégio. O grupo "Diversidade Racial - EDEM" ganhou dezenas de novos integrantes. Entre as manifestações no ambiente, há mensagens de apoio à família, de preocupação em proteger a escola de críticas externas e de pressão para o colégio rever totalmente sua abordagem sobre o racismo estrutural na sociedade. Mas, afinal, o que uma escola particular com grande maioria de alunos brancos, cujas famílias querem promover a diversidade, deve fazer para, de fato, realizar uma transformação? A professora da Faculdade de Educação da UFRJ Giovana Xavier, formada em História, com mestrado e doutorado na área, é criadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras. Ela tem muito a dizer sobre o assunto.

- O problema é que as escolas tendem a tratar o racismo como mal-entendido ou problema pontual, quando, na verdade, o racismo é uma estrutura que define as relações sociais no Brasil. Por exemplo: Não basta, como no caso da Edem, a qual conheço, realizar feiras e projetos pedagógicos com a temática negra ou afro-brasileira se a gestão não contrata mais professoras negras. Nessas escolas, em geral, pessoas negras trabalham realizando segurança, serviços gerais e alimentares. O corpo da escola também é um conteúdo que ensina as crianças sobre concepções de gênero, raça, classe. É papel da escola primar pela contratação de pessoas negras na mesma porcentagem que a população se apresenta.

Não confundir racismo com bullying

Segundo a professora e pesquisadora, que tem estágio de doutoramento sanduíche na Universidade de Nova York e pós-doutorado pela UFF, os casos de racismo, mesmo entre crianças, precisam ser enfrentados sem eufemismos.

- Para ter avanços, a escola e as famílias precisam estar abertas e reconhecer que o racismo existe. Porque o que geralmente acontece é dizer que "foi só uma brincadeira", confundir com bullying ou, pior, falar de forma superficial e despolitizada que "somos todos iguais" - analisa a professora e ativista, que se dedica à criação de práticas educativas para a sala de aula. - De forma geral, crianças são puras, inteligentes e sensíveis. Costuma dar certo operar pela via do afeto e explicar como provoca dor ofender os amigos os comparando a animais, fazendo piada com seus cabelos, indumentárias religiosas. Essas "brincadeiras" não acontecem, por exemplo, com crianças brancas. Então, mostrar que existem desigualdades, e não diferenças organizadas pela cor da pele.

Para Giovana Xavier, a responsabilidade dos adultos é enorme:

- Conversar desde cedo que o Brasil é um país desigual ajuda bastante. Mostrar situações cotidianas. Quem é a maioria da população em situação de rua? Geralmente, crianças perguntam coisas como: "Só negros moram na rua?" Nesta hora, precisamos falar, perguntar, interagir com os saberes infantis.

De acordo com a pesquisadora, cabe aos adultos apresentar uma diversidade de experiências do que é ser negro. Pessoas negras não têm as mesmas oportunidades que as brancas justamente por causa do racismo estrutural. Por isso, as crianças devem ser apresentadas a profissionais negros de todas as áreas, e é preciso priorizar materiais didáticos com esse compromisso.

- Um exemplo simples que geralmente é problemático. As revistas que juntamos para fazer atividades de corte e colagem geralmente são integradas quase que exclusivamente por pessoas brancas, com padrões de beleza europeus. Como selecionamos o material que levamos para as aulas? Que brinquedos compramos para nossos filhos? Todas essas perguntas entram no que exige a lei federal 10639/03, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira. Ou seja, reeducar as relações raciais no Brasil. Quando a escola se omite desse papel, não é que seja uma instituição "do mal". Mas, sim, uma instituição que não cumpre a lei federal e, por cometer esse crime, precisa ser monitorada para que as mudanças realmente aconteçam.

'Racismo pode gerar problema de aprendizagem'

A urgência do tema se justifica, entre outros fatores, pelo mal que ofensas racistas podem fazer a uma criança que deveria encontrar na escola um ambiente seguro.

- O racismo provoca traumas muito graves. Pode gerar medo de ir para escola (com razão), problemas de autoestima e até mesmo de aprendizagem. Por isso, é importante, sim, criar uma "ética da responsabilidade", dentro de cada faixa etária, claro. Responsabilizar as crianças não é julgar ou punir. Pelo contrário, é educar e acolher, mostrando que elas estão machucando uma pessoa e que isso pode durar a vida toda. Vale perguntar: Por que você está falando essas coisas? Onde aprendeu? O que podemos juntos fazer para mudar? Esta última pergunta responsabiliza a criança a pensar tanto no seu ato quanto a construir a solução. Tudo isso, claro, precisa ser feito de forma cuidadosa com a criança que agride e especialmente com a que é agredida, uma vítima que vai para escola para ser cuidada e chega em casa cheia de feridas.