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Brasil

Na pandemia, tempo de estudo de adolescentes das classes mais altas é 64% maior do que dos pobres

Enquanto aluno da classe AB passou 3,33 horas em aula ou fazendo atividades escolares, os da classe E ficaram apenas em 2,03
O Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou por unanimidade a permissão para a continuidade do ensino remoto até dezembro de 2021 Foto: Reprodução
O Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou por unanimidade a permissão para a continuidade do ensino remoto até dezembro de 2021 Foto: Reprodução

RIO — Adolescentes de 16 e 17 anos das camadas A e B estudam 64% mais horas do que os da classe E, mostra estudo da FGV Social, com dados do IBGE. Os dados são de agosto, e os responsáveis pelo trabalho são os economistas Marcelo Neri e Manuel Camillo Osorio.

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De acordo com a pesquisa, os mais ricos passam 3h20min diárias, em média, em aulas à distância ou fazendo atividades propostas pela escola. Já os mais pobres, 2h02min. Na classe C são 2h21min e, na D, 2h02min.

Já alunos das classes A e B de 6 a 15 anos estudaram, em agosto, 3h11min diárias. Esse valor cai para 2h22min nas camadas C; 2h10min na D e 2h02min na E.

Segundo Marcelo Neri, diretor da FGV Social, a pandemia deve quebrar uma sequência de 40 anos de avanços, ainda que tímidos, na educação.

— O retrato da educação era e é muito ruim, mas o filme, não. Essa pesquisa é uma espécie de trailer de um filme de horror educacional — afirma Neri. — As desigualdades educacionais que estavam caindo vão voltar a subir. E esse impacto vai perdurar para depois da pandemia.

Ainda segundo o estudo, quanto mais pobre é o indivíduo, menos ele frequenta a escola e menor foi a quantidade dos que receberam exercícios. "É esperado, portanto, que o gap de desempenho educacional entre ricos e pobres também aumente durante a pandemia", afirma o texto.

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Os dados utilizados pelo estudo são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Covid. Já os critérios de poder aquisitivo são: classe E, alunos cujas famílias receberam até R$ 245 per capita; classe D, de R$ 246 a R$ 511 per capita; classe C, de R$ 512 a R$ 2.202 per capita; e classe AB, com renda per capita de mais de R$ 2.203.

"Focaremos nas classes AB e E, ambas com tamanhos parecidos de alunos (2,27 milhões e 2,36 milhões, respectivamente) com o objetivo de comparar o desempenho escolar durante a pandemia entre os extremos da distribuição de renda", diz o estudo.

Claudia Costin, diretora do Centro de Políticas Educacionais da FGV/RJ, avalia que a maior cobrança e supervisão dos pais dos alunos com melhores condições financeiras, que em muitos casos puderam fazer teletrabalho durante o isolamento, é um dos fatores que podem ter contribuído para esses dados, além do maior acesso a recursos que facilitam o aprendizado.

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— Para o estudante que está nas camadas mais altas há alguma supervisão em casa, além das maiores expectativas dos pais de que entre em boas faculdades. Ele está vendo a aula em um computador, com boa conexão, tem mais chances de ter um ambiente tranquilo para estudar, tem os livros didáticos em casa e outros, se precisar. Sem falar no repertório cultural que seus pais têm e que possibilita que o ajudem — explica.

Costin explica que a experiência de aprender em casa não é exatamente a mesma da escola e deixa de fora alguns momentos como o recreio, a troca de professores e a interação entre alunos, por isso o tempo dedicado ao estudo precisa ser adaptado.

— O que chama a atenção na pesquisa é a desigualdade educacional, que vai se aprofundar imensamente nesse período. Isso vai se fazer sentir também no acesso às universidades. Anos de avanço, apesar de pequenos, no acesso dos mais pobres às universidades vão ser perdidos — afirma.

Desigualdades

Hugo do Carmo Silva, de 17 anos, foi um dos estudantes de escola pública que passaram por dificuldades no acesso à internet e a equipamentos adequados para acompanhar as aulas. Ele estuda na Escola Técnica Estadual João Barcelos Martins, em Campos dos Goytacazes.

Desde o início da pandemia sua escola passou a oferecer uma plataforma on-line com trilhas formativas, mas os alunos não receberam nenhum tipo de assistência em relação à estrutura para acompanhar as atividades. Hugo conta ter problemas com a conexão, além de precisar participar das aulas pelo celular.

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— Eu moro com minha família e aqui no quintal são sete casas para uma única rede de internet. Não dá vazão. Quando tem aula on-line muitas vezes não consigo ver toda, quando chove também não consigo acessar. Só temos um computador, que é da minha prima, então fico à mercê do celular. A leitura também é muito ruim —  conta o estudante.

A falta de um espaço tranquilo para realizar as atividades é outro problema citado por ele, que divide o quarto com os irmãos. Hugo está no terceiro ano do ensino médio e vai fazer o Enem neste ano, mas não se sente preparado.

— Vou prestar Enem, mas não tenho pretensão de entrar porque não estou conseguindo me preparar. Estou em dúvida entre Direito e Medicina, que precisam de notas altas. Planejo continuar estudando no ano que vem e fazer a prova de novo — afirma.

O aluno, que faz parte do grêmio estudantil da sua escola, explica que essas dificuldades são uma realidade para muitos de seus colegas, que dizem que este foi um "ano perdido".

— Alguns estudantes têm pais que são grupo de risco e estão desistindo de estudar para trabalhar. Um amigo teve que abandonar os estudos para sustentar a família. Isso é preocupante — conta, e acrescenta: —  Acho que os alunos de escola particular, por terem mais condições financeiras, têm mais estrutura, e não enfrentam tantas dificuldades.

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Matheus das Neves, também de 17 anos, está no 3º ano do ensino médio e em dúvida entre cursar Direito ou Medicina. Mas suas condições de aprendizagem durante a pandemia foram bem diferentes. Ele mora em Chapecó, Santa Catarina, e estuda no Colégio Trilíngue Inovação, uma escola privada, que oferece atividades on-line desde o início da pandemia, no mesmo horário em que ocorria o ensino presencial. Matheus assiste às aulas pelo computador ou pelo celular, dependendo da matéria, no seu quarto ou na sala, que fica vazia durante o horário das atividades.

— Esse foi um processo de adaptação tanto para estudantes quanto para professores, inclusive estrutural. Tem professores que usam quadros, e para alguns a escola disponibilizou caneta digital para escrever na transmissão de tela, então foi bem tranquilo. Como moro na região central da cidade, minha internet funciona bem — diz ele.

Matheus conta que as dificuldades do período da pandemia foram muito mais pessoais do que sobre as condições da escola.

— Por conta de questões psicológicas o rendimento não é o mesmo da sala de aula. O ambiente escolar é moldado para estudar e a construção de conhecimento com os amigos, de forma mais coletiva, é muito importante. Mas dentro das possibilidades, as condições foram as melhores possíveis — afirma. — Minha mãe, apesar de ser trabalhadora assalariada, me dá condição de só me concentrar nos meus estudos, o que não é a realidade de todos os brasileiros.

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Mesmo com condições mais favoráveis de estudos, mesmo alunos de elite terão perdas educacionais em relação ao ensino presencial. Isso porque, segundo Marcelo Neri, em nenhum extrato social, de nenhum lugar do país o número de horas de aulas diárias alcançou o mínimo previsto na  Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), que é de quatro horas diárias.

—  E essas quatro horas já são ridiculamente baixas. No nosso melhor cenário, os alunos da elite de Alagoas estudaram 3h59min. Já no Acre, a média é de apenas 1h17min — diz Neri.

Sem atividade

O estudo ainda apresenta os dados por estado. Segundo o trabalho, Pará, Tocantins e Maranhão foram os que mais tiveram alunos sem qualquer atividade escolar. Os índices são de 45%, 41% e 34%, respectivamente. Nesse quesito, os melhores estados são Ceará (6% dos estudantes não receberam nada das escolas), São Paulo (5%) e Distrito Federal (4%).

Já em relação a tempo de estudo, os alunos Acre, Roraima e Amapá são os que estudam menos tempo. São 1h17min, 1h44min e 1h50min de aulas diárias, respectivamente. Os que mais estudam são o Distrito Federal (2h57min), Goiás (2h36min) e Ceará (2h34min).

"De uma maneira geral, os dados mostram que alunos da região Norte não só ficaram mais excluídos, mas também menos se envolveram com as poucas atividades que receberam, fatos sugerem um agravamento nas desigualdades regionais educacionais do país no Brasil pós-pandemia", afirma o estudo.

— Isso tem a ver não só com a região ser pobre ou não, mas também com o quanto secretários estaduais e municipais acharam que era papel deles assegurar alguma forma de ensino remoto. Foi impressionante o quanto alguns secretários se comprometeram, tanto que a maioria dos municípios teve essas atividades. Outros deixaram por conta das escolas escolher fazer ou não — explica Costin.

O estudo ainda critica a gestão do Ministério da Educação (MEC). Segundo os autores, o fato de que a pasta "gastou substantivamente menos que outros ministérios estratégicos (como Cidadania, Saúde e Economia) já revela que a educação não foi vista como área prioritária nesse momento, mesmo com a criação do Comitê Operativo de Emergência e de medidas de apoio financeiro via MEC".

A diretora do Centro de Políticas Educacionais da FGV/RJ avalia que vai demorar muito tempo para que o país se recupere dos impactos da pandemia na educação. Para Costin, a decisão tomada pelo Conselho Nacional de Educação, permitindo juntar os anos letivos de 2020 e 2021, foi acertada no sentido de buscar reverter esse cenário.

— É importante olhar para este ano letivo e o próximo como um contínuo, fazer uma avaliação formativa para saber o que os estudantes perderam e montar um sistema de recuperação de aprendizagem bem feito, estruturado, para recuperar e garantir que possam seguir em frente sem perdas tão grandes como as que estamos antecipando que vão acontecer — avalia.