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Mulheres indígenas se preparam para o Enem: 'Quero obter conhecimento para defender minha aldeia'

Iniciativa da Associação Nacional de Ação Indigenista com a L'Oréal, curso pré-universitário vai receber alunas de 50 etnias diferentes e de todo o Brasil
Mulheres indígenas: Jéssica Tupinambá, Clarisse Pataxó e Glicéria Tupinambá Foto: Acervo pessoal/Arte / Gisele Araújo
Mulheres indígenas: Jéssica Tupinambá, Clarisse Pataxó e Glicéria Tupinambá Foto: Acervo pessoal/Arte / Gisele Araújo

Em 2019, quando fez as provas do Enem pela última vez, Glicéria Tupinambá teve dificuldades para responder às questões dos cadernos de Linguagens e de Exatas e perdeu a oportunidade de entrar em uma universidade pública. Porém, hoje, a artesã de 38 anos, moradora da aldeia Tupinambá da Serra do Padeiro, Sul da Bahia, está mais confiante para prestar o próximo exame. Ela faz parte do grupo de 120 mulheres indígenas que irão ter aulas no Pré-Universitário Jenipapo Urucum.

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O curso, organizado pela Associação Nacional de Ação Indigenista (Anaí) em parceria com a  L’Oréal Para o Futuro, vai preparar para o Enem mulheres indígenas de 50 etnias diferentes de todo o Brasil. As aulas acontecerão de segunda à sexta-feira, virtualmente e no turno da noite. O projeto se preocupou em montar um plano curricular pedagógico com material de estudos que atendesse às necessidades específicas de cada aluna.

— É um projeto interdisciplinar que a gente adaptou para fazer com que essas estudantes entendam o que vai ser abordado nas questões do Enem. No curso, a gente vai esbarrar em mulheres com um entendimento menor do português do que outras. O indígena compreende alguns termos e palavras, às vezes, diferente do que é visto como certo pela Língua Portuguesa. Isso ocorreu comigo ao entrar na faculdade — explica a coordenadora do preparatório, Rutian Pataxó.

Formada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), e agora graduanda em Direito pela mesma instituição, Rutian conta que as alunas foram divididas em duas turmas para que as diferenças de idade servissem também de aprendizados entre elas. Assim, meninas mais novas poderiam ter trocas de conhecimentos com mulheres mais velhas, já que a faixa etária das participantes varia entre 16 e 54 anos, e compreende estudantes de ensino médio, artesãs e mulheres caciques.

— Quando fomos convidados a integrar o projeto da Anaí com a L’Oréal, pensamos em como diminuir as dificuldades para que essas mulheres entrassem nas universidades. Por exemplo, um dos grandes problemas enfrentados é com a internet. Nós pudemos entender entender e fornecer apoio a quem não tem acesso a ela — justifica Rutian Pataxó.

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Desde que entrou na faculdade, em 2008, a coordenadora do projeto anseia pelo preenchimento das vagas do ensino superior disponibilizadas para povos originários. De acordo com o último levantamento feito pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), o número de indígenas nas universidades brasileiras saltou de 2.780, em 2009, para 17.269, em 2018. Os maiores índices de ingresso aconteceram em anos posteriores à implementação da Lei de Cotas pelo governo federal em 2012, com mulheres correspondendo a 52% desses ingressantes.

— Sempre discutimos na faculdade sobre o acesso aos cursos de graduação. Antes do Pré-Universitário Jenipapo Urucum, já tínhamos outro projeto de formação política para meninas indígenas, que acabou influenciando no preparatório pré-universitário — conta.

Morar em territórios rurais, sem acesso à internet e a computadores é um dos fatores que dificultam os estudos para quem quer se preparar para o Enem. Ainda segundo o Inep, 52% da população imdígena com até três salários mínimos não têm acesso à internet no país e 69% não possuem computadores.

Clarisse Pataxó, de 17 anos, estudante do ensino médio do Colégio Estadual da Aldeia Indígena Caramuru e moradora da Comunidade Indígena Pataxó Hã-Hã-Hãe, da Aldeia Caramuru, sul da Bahia, também irá frequentar as aulas do cursinho. Ela afirma que essa é uma oportunidade para pleitear uma vaga no curso de Direito na universidade pública.

— A internet que uso para estudar é do meu irmão, e a gente usa o roteador para ter acesso em casa. É a primeira vez que vou fazer cursinho e pretendo me dedicar bastante para conseguir entrar no curso que quero. Estou em busca de obter conhecimento para defender e ajudar a trazer mais conhecimento para minha aldeia — diz.

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Essa também é a primeira vez que Jéssica Tupinambá, de 29 anos, da Terra indígena Tupinambá de Olivença, também no sul da Bahia, vai ter aulas em um preparatório para o exame nacional. Atualmente, ela já está no ensino superior, porém tem a esperança de sair da universidade particular.

— Fiz ensino médio em escola pública, o que dificultou meu aprendizado. E, também, moro distante da cidade e não tenho como pagar o cursinho. Já fiz o Enem antes e foi uma experiência horrível, pois tive dificuldades em todas as disciplinas. Agora, com o pré-universitário, eu tenho mais chances — reflete.

Glicéria Tupinambá afirma que, antes do pré-universitário, era necessário pagar um cursinho para ser aprovada no Enem.

— Antes de entrar na faculdade, a gente tinha que pagar um pré-vestibular. Agora, com esse curso, vamos ter acesso a informações que antes não tínhamos. Eu acho que a prova tem uma linguagem muito dura, por exemplo, e estou na expectativa de superar minhas médias do ano anterior — conta.

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Pluralidade de vozes

A inclusão de mulheres indígenas nas universidades do país é um compromisso assinado pela Anaí L'Oréal Para o Futuro, o compromisso de sustentabilidade da L’Oréal Brasil. O propósito da empresa é empoderar mulheres indígenas que encontram dificuldade de acesso à universidade, por, geralmente, estarem viverem em lugares mais distantes dos grandes centros. Há ainda as barreiras financeira e tecnológica, além do preconceito com os costumes e a dificuldade da língua.

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— Eu acredito que, quem tem um poder, tem um dever. E a L’Oréal é uma empresa cujo compromisso social e de um mundo mais sustentável caminham juntos. Ao assumir a responsabilidade de ser um catalisador de mudanças, nós buscamos repensar as relações de lideranças na sociedade referente à igualdade de gênero e impulsionar a representatividade feminina — defende a diretora de sustentabilidade da L'Oréal Brasil, Maya Colombani.

O Grupo L’Oréal vai investir 50 milhões de euros para apoiar iniciativas relacionadas à integração social e profissional de mulheres na educação e no mercado de trabalho em todo o mundo. O projeto Pré-Enem Jenipapo Urucum integra as ações desenvolvidas no Brasil.

— Sem dúvidas, uma sociedade justa é uma sociedade diversa, onde tudo está conectado. Junto com a Anaí, nós adaptamos o curso pré-vestibular para atender as necessidades das mulheres indígenas. Isso tudo está alinhado a nossa visão de beleza universal, que não diz respeito somente à aparência, mas sim da beleza da diversidade cultural. Essa pluralidade de vozes na universidade pode transformar a sociedade ao redor — encerra.

O curso Pré-Universitário Jenipapo Urucum será lançado no Dia Internacional da Mulher, e o início das aulas está marcado para 11 de março. O projeto está no Instagram: www.instagram.com/jenipapo_urucum/