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Muitos bacharéis, pouca competência?

Por Roberto Lobo
Atualização:

Muitos bacharéis, pouca competência?

Roberto Lobo

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Maria Beatriz Lobo                                                                     23 de novembro de 2023

O Brasil vem, recentemente, demonstrando maior preocupação com a qualidade dos egressos dos cursos superiores, em particular com os formados pelos cursos na modalidade de Ensino a Distância-EaD.

Estudos baseados em levantamentos estatísticos mostram que os alunos formados nessa modalidade (EaD) apresentam no ENADE desempenho inferior aos dos cursos presenciais. Outros estudos, também utilizando métodos estatísticos, já mostram uma aproximada igualdade entre as duas modalidades.

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Sem dúvida, o Ensino a Distância chegou para ficar, porque reúne muitas qualidades importantes como a capacidade de atingir regiões distantes, grande flexibilidade de horário e localização para os estudantes, redução de custos de transporte, alimentação e moradia, maior relação aluno/professor (se não houver exagero), possibilidade de apresentar aulas e palestras de grandes especialistas em localidades remotas e carentes, que jamais teriam condições de recebê-los presencialmente, entre outras tantas.

No entanto, cursos mal preparados, sem o atendimento adequado ao estudante, com pequeno investimento, oferecido com mensalidades muito baixas (alguns de até R$ 100,00 por mês), não parecem ser a melhor solução para o Brasil no longo prazo.

Não é surpresa que diferentes estudos cheguem em resultados distintos. Respostas a este tipo de questionamento dependem de como a pergunta é feita. Quanto mais específica é a pergunta mais precisa será a resposta.

A maneira de agrupar os dados e escolher as amostras influenciam decisivamente os resultados obtidos.

Erro comum é confundir o comparativo com o superlativo: ser melhor não é necessariamente ser bom, da mesma forma que ser pior não é necessariamente ser péssimo quando fazemos análises relativas, ou seja, comparando uns com os outros e não com uma meta, ou uma baliza, ou um nível definido de suficiência.

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Assim acontece, por exemplo, com o ENADE[1] aplicado pelo INEP periodicamente para os cursos de graduação no Brasil.

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Em sua metodologia, o INEP ajusta os conceitos a uma curva aproximadamente normal e, a seguir, estratifica os cursos entre si em conceitos que vão de 1 a 5. Os cursos de conceito 1 são os de pior desempenho e os de conceito 5, por óbvio, os de melhor desempenho, sempre relativamente ao conjunto de cursos analisados.

Em nenhum momento o INEP afirma que cursos 1 são péssimos nem os de conceito 5 são ótimos, mas cursos 1, por exemplo, são sujeitos a uma auditoria e correm o risco de serem fechados.

No entanto, não há um resultado de curso considerado pelo INEP como o mínimo satisfatório diante do exame feito. O ENADE não é um exame de suficiência, mas de hierarquização. Infelizmente, nem os órgãos de imprensa parecem entender isso e fazem matérias sem levar em conta essa questão fundamental.

Não haver um conceito de suficiência é um erro, um defeito do ENADE que vem sendo apontado há bastante tempo e que deveria ser corrigido. E ao longo desse artigo ficará claro o quanto isso é necessário, entre outras medidas.

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Como exemplo deste problema, vamos supor que, em um determinado exame, o conceito bruto (obtido após as correções das questões propostas) varie, para todos os cursos, de 9,5 a 10 (é claro que nesse caso as provas teriam sido muito fáceis, mas essa não é a questão). Nesta situação hipotética, a nota 9,5 seria classificada como de conceito de desempenho 1 e a nota 10 como de conceito de desempenho 5.

Poder-se-ia dizer que o curso de nota 9,5, por ter obtido conceito 1, é péssimo porque ele ficou abaixo dos outros, ou seria mais prudente e adequado dizer que o curso se situa entre os mais mal avaliados? É claro que a última opção é a correta e a que reflete a realidade do que o ENADE de fato pode comprovar pela forma como disponibiliza os resultados.

O mesmo ocorre se todos os cursos tiram notas brutas entre 0 e 1. Neste caso os cursos com nota mais próxima de 1 ficariam com conceito 5. Assim também fica claro que esses cursos conceito 5 - oriundos das melhores notas entre um conjunto de notas bem baixas - não são bons ou, como explicação, pode ser que as provas do ENADE tenham sido muito mal formuladas. Podem ser somente os melhores entre cursos ruins.

Esse é o problema da interpretação dos conceitos quando a metodologia não fica clara quando não é divulgada, de forma clara para os leigos, a nota máxima e a mínima tirada pelo conjunto dos cursos. Esse problema deveria ser sanado para que se possa de fato fazer uma avaliação da qualidade do sistema do ensino superior.

Voltemos ao desempenho dos cursos das diferentes modalidades[2], presencial e de EaD.

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Para usar um exemplo concreto, escolhemos o curso de Administração avaliado pelo ENADE de 2022, por ser um curso bastante popular, oferecido largamente tanto na modalidade presencial como no EaD, por IES públicas e privadas.

Primeiramente, analisamos as diferenças entre as modalidades sobre os resultados dos cursos (média do total de alunos do curso no ENADE) tomados como unidades, não importando o número de alunos matriculados, ou concluintes. Neste caso, verifica-se que a diferença entre as modalidades é real, mas não muito significativa: média 3 para os presenciais e 2,7 para os EaD (menos de meio desvio padrão de diferença).

Entretanto, é preciso salientar que somente 26,5% dos cursos presenciais apresentaram conceitos 1 e 2 enquanto 40,6% de cursos EaD se encontram dentro desses mesmos conceitos.

Vamos adiante e nos perguntemos qual seria o resultado, se não tomarmos um curso como unidade, mas sim levarmos em conta o número de alunos concluintes de cada curso. Um curso pode ser ótimo, mas formar 3 alunos o que tem pouco impacto na formação dos profissionais da área, enquanto outro pode formar um contingente expressivo do total de egressos em determinada área, tendo enorme influência nas características destes profissionais, se analisarmos esse tipo de conjunto.

Se atribuímos a cada estudante o conceito de seu curso, como se comparam os cursos nas modalidades presencial e em EaD de Administração? Feitas as contas, a média dos alunos concluintes em cursos presencias é de 3,2 enquanto na modalidade de EaD é 2,3. Esse resultado mostra que os cursos de Administração em EaD estão cerca de um desvio padrão abaixo dos cursos na modalidade presencial. É uma diferença bastante significativa. Em termos de número de concluintes em cada nota, o sistema presencial leva nítida vantagem de desempenho.

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Outro fator importante é que na soma dos cursos de Administração do Brasil, avaliados pelo ENADE, 73% dos estudantes oriundos da modalidade EaD saíram de cursos de desempenho 1 e 2, contribuindo fortemente para que 45% de todos os bacharéis formados em Administração saiam de cursos de conceitos 1 e 2 (nesse caso, independentemente da modalidade).

Por outro lado, somente 4,3% dos egressos em Administração na modalidade de EaD provêm de cursos com conceitos 4 e 5.

Apenas 5 IES privadas, todas com fins lucrativos, foram responsáveis, sozinhas, pela formação de 31 mil bacharéis em Administração em 2022 (26 % do total de formados e 75% do total dos formados por EaD), e todas elas receberam o conceito ENADE = 2. Além disso, são cursos com índices de evasão maiores do que 60%.

São dados preocupantes, sem dúvida.

Não se trata de ser contra ou a favor da modalidade EaD, ou negar sua importância, mas de apontar a questão da qualidade dos cursos, independentemente de sua modalidade de oferta e é sobre isso que cabem essas várias reflexões.

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Será isso o que queremos de nosso ensino superior? O que dizem os empregadores? Será que um curso conceito 1 ou 2 consegue formar, em média, profissionais competentes? Eles passariam, porventura, em um exame de suficiência (que não existe, ainda...)?

Ou será que o conceito 1 ou 2 é significativo porque nossos cursos de Administração são extraordinariamente bons e conceitos 2, ou até inferiores, ainda comprovam competência profissional de qualidade?

Essa é a questão que não pode deixar de ser analisada com profundidade e o ENADE teria que sanar essa dúvida avançando seu trabalho para mostrar o real desempenho em termos de nota de cada curso, e aluno, e apontando qual seria a nota aceitável para que tanto o curso, quanto os alunos pudessem ser "aprovados" em termos de suficiência em relação à prova aplicada.

Pelo menos deveriam indicar no diploma do aluno a nota obtida no ENADE para informação aos interessados em utilizar seus conhecimentos profissionais, como tentou sem sucesso o ex-ministro da educação Paulo Renato.

Diante destes dados precisamos, sem melindres, nos perguntar se estamos abastecendo o mercado profissional com bacharéis bem formados capazes de responder às exigências do mercado. A probabilidade maior é de uma resposta negativa.

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Uma maneira de aumentar o grau de exigências e induzir estudantes e seus responsáveis a encarar a formação com mais responsabilidade seria a introdução de critérios mínimos para a confirmação do diploma, ou da autorização ao exercício profissional de algumas áreas.

Afinal, quem gostaria de ser tratado por um médico que tirou zero (ou algo parecido) no ENADE? Ou contratar um engenheiro que não pode garantir a segurança do teto sobre as cabeças da família que o contratou? O mesmo vale para pelo menos duas dezenas de profissões.

Por que gastamos tanto avaliando centenas de cursos superficialmente, cujos resultados negativos não mudam em nada a vida do aluno e muito pouco a vida das IES que os oferecem, enquanto cursos que formam profissionais que podem colocar em risco a saúde, a segurança e o bem estar do cidadão continuam abertos, muitos deles aumentando suas matrículas quanto mais barato se apresentam?

A avaliação pelo MEC, por meio do ENADE e outras, tem de fato surtido o efeito que a sociedade deseja, após tantos anos de sua existência? Será que de fato a sociedade tem noção de que o diploma no Brasil não é garantia alguma de que o aluno- individualmente, ou como representante dos egressos de determinado curso - está capacitado para o exercício profissional?

Enquanto houver como objetivo de muitos a busca somente pelo diploma em si e não pela formação profissional com a garantia de um mínimo de suficiência de qualidade do concluinte, que tipo de instituição de ensino tende a prosperar? Como proteger as IES sérias que por formarem melhor seus alunos apresentam preços que muitas vezes diminuem muito a sua competitividade?

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É claro que muitos educadores defendam o explosivo crescimento das matrículas que se observou no ensino superior como um ganho para a democracia e a inclusão. Será democrático multiplicar a ignorância diplomada?

Qual a nossa responsabilidade como educadores? Qual a responsabilidade dos órgãos de fiscalização para garantir segurança à população em assunto tão grave?

Se as empresas conseguem selecionar por meio de seu RH's os administradores a serem contratados, como fará a população desinformada que não tem condições de analisar a qualidade da formação do profissional de saúde ou do engenheiro que vai contratar, pois tem que confiar no diploma dado pela IES, muitas delas com cursos de conceitos muito abaixo da média das demais?

Será que alguém acredita que, salvo o renome das IES que sugere um reconhecimento nacional de qualidade, alguma informação relevante sobre a qualidade do formado está disponível à população, em especial àquela mais carente que precisa dos serviços profissionais, a maioria públicos, e que não tem condições de escolha?

Mesmo no conjunto dos formados em boas e renomadas universidades e faculdades, com conceito 4 e 5, não haveria entre esses alunos de cursos com bons conceitos, alunos que não atingiram o mínimo de suficiência em uma prova com esse fim? Certamente que haveria, e o exame da OAB é uma comprovação inequívoca disso, pois há milhares de alunos diplomados por boas IES que não passam no crivo do exame profissional na área do Direito e não seria diferente em outras áreas.

Hoje o ENADE, o CPC[3] e o IGC[4] podem ajudar uma IES a corrigir seus processos e, em alguma medida, sinalizar à sociedade algum dado de valor relativo, mas está ainda longe de ser uma verdadeira avaliação dos cursos e dos alunos.

Precisamos superar a fase de, por todo e qualquer motivo, sempre isentar os alunos das consequências de não terem feito um bom curso (até porque eles são parte integrante fundamental do processo de ensino-aprendizagem) e fazer com que os estudantes, as famílias e a sociedade passem a cobrar mais eficácia geral e transparência sobre os resultados das avaliações, para que essas ajudem a melhorar o sistema como um todo e a qualidade dos formados.

Dessa forma, os alunos terão como saber que ao escolher um curso que dá facilmente diplomas aos seus formados, mas que grande parte deles depois não consegue passar nos exames para o exercício profissional, ou de suficiência em exames feitos pelos órgãos de fiscalização da educação superior, estão se expondo ao risco da perda irreparável de tempo e de recursos pela escolha de um caminho mais fácil em detrimento do caminho certo para o seu futuro.

Da mesma forma, os órgãos de fiscalização passariam a dar mais ênfase aos resultados (que ao final é o que importa) do que aos insumos e processos nas instituições de ensino, pois muitos cursos com conceito baixos são de instituições que tiveram alta nota na avaliação "in loco" dos avaliadores dos respectivos órgãos que autorizam e credenciam os cursos superiores no país, assim como há vários exemplos de cursos com alto desempenho e que não atendem aos critérios valorizados por esses mesmos órgãos.

Distribuir diplomas de bacharel (ou de qualquer tipo de curso superior, inclusive - e com muita ênfase - as licenciaturas) sem a competência correspondente é como servir comida estragada para combater a fome, ou receitar remédio de validade ultrapassada como medida de saúde pública!

[1] Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes

[2] Não consideraremos a modalidade híbrida por não constar na classificação do INEP.

[3] Conceito Preliminar do Curso

[4] Índice Geral de Cursos

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