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Opinião

Mudar a data do Enem?

É precipitado cristalizar soluções aparentemente inócuas, mas que podem piorar a situação que se quer remediar

A polêmica em torno da data do Enem

Venceu a opinião pública: o governo decidiu mudar a data do Enem. A voz do povo também foi ecoada por diversos interlocutores e, de maneira mais forte, pelo Congresso Nacional. As motivações para tamanha unanimidade vão da compaixão ao oportunismo político, passando pela demagogia. Mas todos usam a equidade como argumento. Mas é importante ressaltar que não houve debate – e o que se viu na imprensa foi o MEC, de um lado, e o resto do outro. Não houve o contraditório. Mas há importantes lições a tirar.

O argumento para adiar a prova é duvidoso: dar melhores chances aos alunos das escolas públicas estaduais para competir. No mínimo, para “verem” toda a matéria. Associado a este há o argumento da percepção de desigualdade, especialmente por parte daqueles que poderiam efetivamente aumentar suas chances com a conclusão do programa de ensino. A decisão está tomada, Inês é morta. Mas vale refletir sobre o tema da equidade. O clamor popular deve ser ouvido. Mas isso não significa que decisões populares – ou populistas – sejam as mais adequadas. Ou mais justas. O que dizem as evidências?

Em alguns países houve algumas decisões de adiamento – mas cabe analisar com cuidado as diferenças. A França apenas mudou a forma de avaliar os alunos. Nos Estados Unidos os alunos que ingressarão nas universidades em setembro deste ano já fizeram seus exames antes da pandemia. E por aí vai: sem contextualizar, os argumentos não se sustentam. E mais: no Hemisfério Norte as aulas já estavam praticamente no final. Faz sentido adiar a data do Enem? Quem ganha e quem perde?

O Enem tem como principal objetivo selecionar alunos para o ensino superior gratuito, nas universidades públicas, ou via PROUNI, nas instituições privadas. Ao país interessa o acesso dos mais qualificados. Nesse sentido o adiamento dificilmente traria qualquer prejuízo ao país. Mas o Enem tem outro objetivo - dar acesso a alunos com potencial elevado, mas que não reúnem as mesmas condições de seus concorrentes. Para isso existem as cotas.

A pergunta fundamental é: o adiamento vai permitir que os alunos das escolas estaduais se preparem melhor? Não há evidências de que isso seja verdadeiro ou que venha a ser o caso – dado o perfil e a trajetória dos alunos que seriam beneficiados pela medida e as incertezas sobre a duração da suspensão do calendário escolar. Ademais – dada a movimentação que se vê até aqui - a diferença de comportamento das redes estaduais e de seus alunos varia muito nos diferentes estados.

Mas há uma outra pergunta: o adiamento dará tempo e condições suficientes para suprir as lacunas do período em que as aulas ficaram suspensas? Ou seja: aumentaria a chance desses alunos? Ninguém tem resposta para esta pergunta. Mas é possível suspeitar que a resposta pode não ser positiva: adiar significaria também dar mais prazo para os mais bem preparados se preparem ainda mais. Ou seja, apesar das boas intenções, o adiamento poderá ter o efeito exatamente contrário ao pretendido. Essas são questões empíricas para as quais é possível obter resposta, mas que só saberíamos a posteriori. Resta, portanto, apostar nas próprias convicções – correndo o risco de prejudicar ainda mais os que queremos ajudar.

O Brasil convive, há  séculos, com inúmeras injustiças que aumentam a desigualdade de oportunidades. O próprio Enem  permite que candidatos formados no passado concorram novamente ao exame. Em qualquer outro país o acesso das gerações anteriores fica sempre baseado na nota obtida no ano da formatura. Isso é uma forma de reduzir desigualdades – cada um compete com sua coorte. No Brasil não, a desigualdade no tempo para se preparar é assegurada em lei. O ponto é: se quisermos falar sério sobre desigualdade há muitas outras, históricas e mais fortes, que dificultam o acesso dos mais pobres a tudo na vida – inclusive ao ensino superior.

O argumento de que os alunos das escolas estaduais ficariam prejudicados sem o adiamento do Enem procede. Mas a correção sugerida pode ser inócua ou mesmo mais prejudicial aos grupos mais desfavorecidos.

Fazer o quê? Se o objetivo é reduzir desigualdades e mitigar danos aos alunos das escolas estaduais, talvez fosse mais simples, e sensato, alterar o mecanismo de quotas, criando condições para, no mínimo, assegurar o acesso desses alunos em quantidade equivalente ao que ocorreu no ano anterior, ou na média dos anos anteriores. Algo semelhante poderia ser feito em relação aos critérios de acesso ao PROUNI. Possivelmente seria mais eficaz corrigir lacunas para os admitidos do que tentar fazê-lo jogando a rede de maneira mais ampla e indiscriminada.

É louvável a mobilização da sociedade pela causa da equidade. Mas é precipitado cristalizar soluções aparentemente inócuas, mas que podem piorar a situação que se quer remediar. Aqui, como em tudo, somente o diálogo, o debate, os argumentos e contra-argumentos podem ajudar. Vale o velho ditado, o caminho do inferno é cheio de boas intenções!

João Batista Oliveira é presidente do Instituto Alfa e Beto