Topo

Mesmo obrigada, gestão Bolsonaro ignora fiscalização da tortura da cura gay

O presidente Jair Bolsonaro em cerimônia no Conselho Nacional de Justiça - ADRIANO MACHADO/REUTERS
O presidente Jair Bolsonaro em cerimônia no Conselho Nacional de Justiça Imagem: ADRIANO MACHADO/REUTERS

Do UOL, em São Paulo

18/09/2022 04h00

Prática proibida no Brasil desde 1999, a tortura da "cura gay" está sem fiscalização efetiva no país desde o início do governo Bolsonaro, que esvaziou o MNPCT (Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura) em 2019. E, desde a aprovação de uma lei no ano passado, durante a gestão do atual presidente, o financiamento para locais que praticam essa tortura pode crescer ainda mais.

Em 2018, no governo Michel Temer (MDB), das 28 comunidades terapêuticas inspecionadas, 14 praticavam a "cura gay" em dez estados e no Distrito Federal. Esse foi o último ano em que o MNPCT fez fiscalizações.

Depois, no governo Bolsonaro, nenhuma nova inspeção foi feita após o decreto 9.831, exonerando, em junho de 2019, todos os peritos do órgão e suspendendo seus salários.

A ação enfraqueceu as fiscalizações. Foi necessária uma ação judicial, de autoria de Raquel Dodge, então procuradora-geral da República, para que os peritos foram recontratados e tivessem seus salários regularizados, de acordo com decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) de março de 2022. Foram dois meses sem receber remuneração e três anos até o processo ser finalizado.

Atualmente, o MNPCT possui nove peritos para fazer a fiscalização em todo o país. Na estrutura antiga, o órgão contava, além da equipe dos peritos, com mais duas equipes: uma de assessoria e uma administrativa. "O governo voltou com a equipe de peritos e seus salários, mas a estrutura não voltou", explica o perito Rogério Duarte Guedes. "Hoje, a gente só tem só uma pessoa que faz todo trabalho administrativo, por exemplo."

Para o defensor público federal Thales Arcoverde Treiger, que atuou na ação no STF, o decreto do governo tinha como objetivo desprofissionalizar o órgão. "O funcionamento do mecanismo é importante de forma renumerada, mas o governo quis transformar em uma atividade de prestação de serviço."

Procurado, o governo não respondeu perguntas sobre o esvaziamento do órgão antitortura e ignorou as perguntas sobre a prática da "cura gay".

O que é a "cura gay"? Com intuito de "curar" pessoas LGBTs, a prática busca readequar pessoas para um padrão social em que todas as pessoas precisam ser heterossexuais.

A "cura gay" era muito comum nos sanatórios nas décadas de 1930 e 1940, mas, em 2019, o UOL trouxe relatos de 32 pessoas LGBTs que passaram pela "cura gay".

Desde 1990, porém, a OMS (Organização Mundial de Saúde) não reconhece mais a homossexualidade em seu rol de doenças. Ela retirou pessoas trans e travestis da lista de doenças em 2019.

Como é a tortura da "cura gay"? Uma pesquisa feita em agosto de 2022 pela All Out Brasil, em parceria com o Instituto Matizes, apontou que existem ao menos 26 práticas de "cura gay" no país neste momento, em quatro contextos diferentes: religioso, familiar, saúde e escolar.

A All Out Brasil é movimento global que luta pelos direitos da população LGBT, e o instituto produz dados sobre a comunidade LGBT.

Entre as práticas, estão:

  • ameaças,
  • profecias,
  • punições,
  • castigos físicos,
  • internações,
  • uso forçado de medicamentos/hormônios,
  • aulas de educação religiosa na escola,
  • entre outros.

Os tipos de lugares são os mais diversos, como comunidades terapêuticas, consultórios, acampamentos, organizações da sociedade civil, igrejas ou até mesmo dentro de casa.

O que são comunidades terapêuticas? Elas são entidades privadas de privação de liberdade para tratamento de pessoas que fazem uso problemático de drogas ou têm questões de saúde mental.

O ex-perito do MNPCT Daniel Melo aponta que não há plano terapêutico nesses locais. "Há uma falta de cuidado em saúde. É uma prática de desassistência. Essa pessoa não vai ser olhada na complexidade que envolve o ser humano."

Quem as financia? De acordo com um levantamento feito pela Conectas, de 2017 a 2020, as CTs (Comunidades Terapêuticas) receberam um total de R$ 560 milhões do Poder Público, somando as esferas federal, estadual e municipal. A pesquisa também disse que não há padrão de fiscalização e transparência sobre o tipo de serviço contratado "e, principalmente, de seu impacto e de sua efetividade como política de tratamento, o que deveria orientar a administração pública".

No ano passado, foi aprovada a Lei Complementar 187/2021 que dá direito às CTs buscarem imunidade tributária, uma espécie de financiamento público indireto. Ela foi sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro. Com essa lei, o investimento em comunidades terapêuticas deve crescer ainda mais.

No Congresso Nacional, atualmente, há uma "Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Terapêuticas" composta por 180 deputados federais e vinte senadores, distribuídos por todos os espectros políticos. O líder é o deputado federal Eros Biondini (PROS-MG). Procurado, ele não quis se manifestar.

O que diz o governo federal? Procurado pela reportagem, o governo federal não respondeu as perguntas sobre as comunidades terapêuticas, o combate à "cura gay" e o enfraquecimento do MNPCT.

O MDH (Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos) informou que a competência é do Ministério da Saúde, que, por sua vez, informou que a pasta que cuida do mecanismo é o Ministério da Cidadania. Mas, no site oficial do governo, as informações do mecanismo são encontradas dentro da pasta do MDH.

Por sua vez, o Ministério da Saúde enviou informações sobre os cuidados realizados pelas comunidades terapêuticas em relação ao tratamento para pessoas com "transtornos mentais" e pessoas que fazem uso problemático de drogas, ignorando a tortura de "cura gay".