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Brasil

MEC quer acessar dados sigilosos de alunos para emitir nova carteirinha estudantil

Área técnica do Inep barrou decisão e conflito interno levou à queda do presidente da autarquia
O presidente do Inep, Elmer Vicenzi, durante audiência na Câmara Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados
O presidente do Inep, Elmer Vicenzi, durante audiência na Câmara Foto: Cleia Viana/Câmara dos Deputados

BRASÍLIA. No centro da demissão do presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira ( Inep ), Elmer Vicenzi, estão relatórios internos da autarquia obtidos pelo GLOBO que contrariam pedido do Ministério da Educação (MEC) para usar dados sigilosos de alunos na emissão de uma nova carteira estudantil, que seria digital.

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A intenção do MEC é esvaziar o poder de entidades como a União Nacional dos Estudantes (UNE), que têm na emissão de carteirinhas sua principal fonte de receita. A medida, no entanto, não contou com respaldo da área jurídica nem do departamento técnico do Inep, que coleta e armazena as informações pessoais de alunos por meio dos censos educacionais.

O tema abriu uma frente de batalha entre Vicenzi e a Consultoria Jurídica do Inep. Ele chegou a determinar a demissão de um dos advogados que assina o parecer contra o pedido do MEC. Os profissionais disseram então que voltariam para a Advocacia Geral da União, onde são lotados.

A briga interna no Inep chegou ao MEC. A equipe do ministro da Educação, Abraham Weintraub, que já estava insatisfeito com o presidente do Inep, convenceu-o da exoneração, mesmo que nesta disputa específica Vicenzi estivesse ao lado do titular da pasta. Oficialmente, o ministério diz que Vicenzi pediu para sair.

Pareceres internos apontam que a intenção do MEC de usar os dados para fazer as carteirinhas contraria a legislação em vigor sobre sigilo de dados pessoais. A pressão pela obtenção das informações se intensificou a partir de pedido formal da pasta ao instituto para acessar a base do Censo da Educação Superior, que traz informações de alunos e profissionais individualmente, inclusive das redes privadas e estaduais.

Segundo a análise jurídica, a legislação atual protege o sigilo de dados estatísticos de caráter pessoal e só permite sua utilização para os fins aos quais foram coletados. Ou seja, o censo serve para orientar as políticas de governo, fazer estudos e avaliações, mas não pode ser usado para pegar as informações individuais de cada estudante.

"O preço a ser pago pela quebra de sigilo estatístico será a inviabilização do planejamento de políticas públicas. O sigilo contribuiu para a veracidade das informações prestadas pelo cidadão e, consequentemente, para a elaboração de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento nacional e à melhoria da qualidade de vida dos brasileiros", afirma o parecer. O documento endossa conclusão da Diretoria de Estatísticas Educacionais do instituto, que também se opôs ao pedido do MEC, em nota técnica, com a mesma justificativa.

De acordo com o parecer jurídico, uma série de leis e decretos, a começar pela Constituição Federal, vedam o repasse e uso dos dados da forma que o MEC quer. Cita o sigilo de informações como garantia constitucional e menciona também a Lei de Acesso à Informação, que resguarda "informações pessoais" como de acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de cem anos.

Depois, passa a legislações específicas, como o decreto 6.425/2008, que trata do censo anual da educação a ser feito pelo Inep. O artigo 6º dessa norma estabelece que "ficam assegurados o sigilo e a proteção de dados pessoais apurados no censo da educação, vedada a sua utilização para fins estranhos aos previstos na legislação educacional aplicável".

O parecer assinala ainda que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) está submetido às mesmas regras. A única hipótese legal para a quebra do sigilo estatístico, segundo a análise jurídica, é apurar infrações relacionadas à própria questão da preservação dos dados pessoais.

Questionado pelo GLOBO se usará os dados sigilosos, o MEC não retornou até o fechamento da reportagem. Nesta sexta-feira, informou em nota que "busca o constante aprimoramento de suas políticas educacionais e da qualidade da educação para instituições e estudantes". E conclui: "nesta perspectiva, há o entendimento de simplificar e melhorar a gestão dos dados educacionais, maximizando a utilização de recursos existentes, respeitando fielmente a legislação vigente".

O Inep afirmou, em nota, que "tem respeitado todas as normas e entendimentos jurídicos acerca do tratamento de informações e bases de dados sob sua responsabilidade". E destacou que "trabalhará para construir políticas públicas educacionais em prol do bem comum, alinhados com o Ministério da Educação, órgão do qual faz parte".

MEC tenta 'jeitinho' para acessar dados

Autora do pedido, a Secretaria de Educação Superior do MEC se antecipou a eventuais impedimentos argumentando, na solicitação, que obstáculos legais podem ser afastados se fosse obtida a concordância das pessoas para uso dos dados. O parecer jurídico, no entanto, assinalou que tal medida não tem respaldo.

Isso porque, ao colocar essa autorização como requisito para acesso a uma política pública, tal consentimento deixaria de ser livre, destaca o documento. E, de qualquer forma, permaneceria o impeditivo do uso dos dados obtidos para outra finalidade, ainda conforme o parecer.

O MEC fez também pedido para acessar dados do Censo da Educação Básica, com o objetivo de subsidiar cruzamentos no cadastro do Bolsa Família para identificar fraudes. O posicionamento das áreas jurídica e técnica do Inep foi o mesmo.

O plano do governo com a carteirinha é minar as entidades estudantis. Além da UNE, a União Nacional dos Estudantes Secundaristas (UBES) e a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) executam o serviço hoje, embora a emissão do documento seja permitida a outros centros estudantis, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF). A carteira garante meia entrada em espetáculos artísticos e culturais.

A intenção do governo de acessar dados sigilosos de estudantes pode até chegar o Supremo Tribunal Federal (STF). Foi o que ocorreu no ano passado, quando o Tribunal de Contas da União determinou que o Inep repassasse dados do Censo da Educação Básica e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para equipes do Bolsa Família.

O Inep ingressou com mandado de segurança no Supremo contra a medida, que foi deferido pelo ministro Luís Roberto Barroso, que derrubou em caráter liminar a determinação do TCU. "A transmissão a outro órgão do Estado dessas informações e para uma finalidade diversa daquela inicialmente declarada subverte a autorização daqueles que forneceram seus dados pessoais, em aparente violação do dever de sigilo e da garantia de inviolabilidade da intimidade", escreveu Barroso na decisão.

O governo tenta colocar em prática a nova carteira de estudante em meio a protestos que tomaram as ruas de mais de 200 cidades em todos os estados do país e no Distrito Federal, nesta quarta-feira, contra cortes na educação. Foi a primeira grande manifestação contra o governo do presidente Jair Bolsonaro.