Ideias do século XIX, tarefas impossíveis de serem feitas em 45 minutos: os problemas do material didático de SP, segundo pesquisadores

Especialistas em educação apontam equívocos gritantes, como de contextualização, em slides oferecidos em sala de aula pela Secretaria de Educação em meio à polêmica sobre material 100% digital e recusa de livros do PNLD

Por Elisa Martins — São Paulo


Alunos assistem aula em escola de São Paulo Edilson Dantas

O material digital próprio do governo paulista aplicado nas escolas do estado apresenta problemas metodológicos, erros conceituais e má contextualização, afirmam pesquisadores da Rede Escola Pública e Universidade (Repu), formada por especialistas da UFABC e Unifesp. Eles analisaram séries de slides oferecidos pela Secretaria de Educação como apoio didático nas escolas estaduais, em meio a uma onda de críticas à pasta, que já anunciou a decisão de adotar material 100% digital em sala de aula e a de não aderir ao Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD), do Ministério da Educação (MEC).

No documento divulgado pela Repu e publicado como nota técnica, os pesquisadores analisam quatro exemplos concretos de slides oferecidos em sala de aula para exemplificar os problemas encontrados.

— O objetivo era analisar como a supressão do PNLD e a descontinuação da distribuição de apostilas impressas nas escolas estavam atreladas a uma maior distribuição desses slides. E analisamos quatro casos para exemplificar as categorias e seus problemas. Há erros grosseiros, aplicação de modelos científicos que levam os alunos a equívocos, problemas de contextualização, exemplos irrealistas. Fora problemas de método, como ter um slide cheio de atividades que não cabem em uma aula de 45 minutos, ou escritos em linguagem ambígua — afirma Fernando Cássio, professor de políticas educacionais da Universidade Federal do ABC, na Grande São Paulo, e integrante da Repu.

Em um material de Química para o 1º ano do Ensino Médio, os pesquisadores afirmam ter encontrado erros conceituais, imagens geradoras de concepções alternativas sobre o conceito de calor (o tema da aula era "Termodinâmica"), aplicação incorreta de princípios fundamentais da Química e má contextualização dos temas tratados.

"Logo no início da aula 1, os/as estudantes são instados a discutirem a relação entre as mudanças climáticas e a termoquímica, muito embora o conceito de “termoquímica” – que não é intuitivo – não tenha sido previamente definido. Em seguida, quatro imagens genéricas sem relação imediata com as perguntas anteriores são apresentadas para que os/as estudantes “virem e conversem com seus colegas”; uma atividade espontaneísta e de gritante ineficácia pedagógica", diz a nota técnica.

Já no início da aula 2, continua o texto, "apresenta-se uma imagem com setas saindo e entrando no fogo e no gelo, respectivamente, o que induz nos/as estudantes uma concepção substancialista do calor superada desde o século XIX. Abordagens desse tipo são contraindicadas na literatura científica sobre Ensino de Química há pelo menos 25 anos (Mortimer; Amaral 1998)".

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Mais atividades do que tempo

Em outro material, de Língua Portuguesa para o 1º ano do Ensino Fundamental, os pesquisadores indicam problemas na linguagem, que não seria inteligível a crianças de seis anos em ciclo de alfabetização e afirmam que "o conjunto de slides descreve uma sequência didática de realização impossível em uma única aula de 45 minutos".

A sequência em questão compreende para uma mesma aula a realização de uma brincadeira (corre cutia), exercício com duas perguntas e respostas orais, análise de imagens, leitura em voz alta, exercício com cinco perguntas e respostas escritas, sistematização dos registros da aula em cartolina e produção de um desenho.

Em outro exemplo, os pesquisadores se debruçam sobre um material de Sociologia para o 1º ano do Ensino Médio, e afirmam que o conteúdo traz trechos descontextualizados sobre o tema em questão, "Juventudes e Adolescências".

"O material negligencia o fato de os ciclos de vida serem compreendidos de forma culturalmente distinta, por exemplo, entre as populações indígenas brasileiras, uma vez que em muitas delas se transita da infância à vida adulta sem a fase intermediária da adolescência. O material prefere mencionar, nesse sentido, os povos originários a partir de trechos descontextualizados sobre os estudos de Margareth Mead em Papua-Nova Guiné extraídos da Wikipédia", diz a nota.

Os pesquisadores frisam ainda que a apresentação do material digital torna os professores "meros passadores de slides". "Não há tempo para pensar, já que os “comandos” sucedem-se uns aos outros de maneira frenética e os tempos das tarefas são minuciosamente exibidos na tela", diz o texto dos pesquisadores.

No quarto exemplo analisado, em um material sobre "Projeto de vida" para o 3º ano do Ensino Médio, os pesquisadores afirmam que a sequência de 13 slides dedicada ao tema “orçamento pessoal” traz atividades "com dados irrealistas sobre o salário-mínimo e o custo de itens como alimentação, cursos de inglês, roupas e lazer".

"Considerando que os slides, em tese, foram elaborados para uso no ano letivo de 2023 e que o valor atual do salário-mínimo no país é de R$ 1.320,00, o salário líquido de qualquer trabalhador/a do país não poderia ser inferior a R$ 1.200,00 (assumindo descontos de INSS e FGTS)", escrevem os pesquisadores.

A nota também menciona que o exercício em questão "pode ser encontrado ipsis litteris na apostila Introdução ao Mundo do Trabalho, desenvolvida em 2012 pelo Instituto Unibanco (p. 172) e utilizada sem qualquer atualização pela Seduc-SP nos slides para o 3º ano do ensino médio".

— Se compararmos o conteúdo dos livros selecionados com rigor do PNLD com o do material oficial do governo paulista, é indefensável a decisão de suspender o recebimento desses materiais do MEC para adotar os slides que estão sendo dados nas salas de aula do estado. Sem contar o empobrecimento de privar alunos e estudantes de múltiplos recursos pedagógicos. Não há evidências de que estreitar o acesso a diferentes recursos pedagógicos traz benefícios educacionais — completa Cássio.

Em nota, a Secretaria de Educação paulista afirma que, desde 2009, a rede “utiliza material pedagógico próprio”. Segundo a secretaria, uma equipe técnica multidisciplinar “composta por mais de 70 docentes especialistas em currículo” faz esse trabalho. Sobre a análise dos pesquisadores, “trata-se de um material descontextualizado, subjetivo e que ignora as premissas e conceitos básicos que ancoram a produção de material didático. Ao questionar o destinatário do material, por exemplo, ignora todo o processo de construção, revisão e análise realizados previamente”.

A secretaria afirma ainda que a pesquisa “erra” ao “desconsiderar a existência de uma série de materiais físicos e digitais disponíveis aos estudantes para alegar superficialidade em matérias específicas. A nota termina dizendo que a secretaria “reitera que todos os alunos da rede contam e seguirão contando com materiais físicos e digitais para o aprendizado, direito fundamental do aluno”.

Contexto

O currículo paulista contempla o uso de apostilas próprias da Secretaria Estadual de Educação, além de slides e outros materiais digitais produzidos pelo Centro de Mídias, ligado à pasta. Há duas semanas, o secretário de Educação, Renato Feder, anunciou que o estado passaria a usar apenas esse material próprio nas escolas, recusando quase dez milhões de livros do Programa Nacional de Livros Didáticos (PNLD), distribuídos gratuitamente pelo MEC.

Na ocasião, Feder chegou a dizer que o material usado no estado, além de próprio, passaria a ser 100% digital. Diante da repercussão negativa, o governador Tarcisio de Freitas anunciou que o estado imprimiria, sim, o material do 6º ao 9º ano — embora a não adesão aos livros didáticos do MEC tenha sido mantida.

Ambas as decisões — a de recusa do PNLD e uso de material 100% digital — valeriam apenas a partir de 2024. Mas professores e alunos reclamam que falta material impresso já neste segundo semestre, e que as aulas são ministradas apenas com o apoio de slides.

Os relatos sobre a falta de material impresso nas escolas são parte de um problema mais amplo. Mesmo impresso, dizem especialistas, o material do governo paulista não resolve a ausência dos livros didáticos, considerados essenciais para o aprofundamento do conteúdo.

A série de polêmicas eforça duas tendências já apontadas da gestão educacional de São Paulo: o afastamento da política conduzida pelo MEC (o que já aconteceu no caso das escolas cívico-militares e do Novo Ensino Médio) e o perfil centralizador das estratégias pedagógicas na secretaria.

Na semana passada, Feder defendeu a utilização de material próprio do governo paulista por ser “consumível” pelo aluno e para evitar "dupla orientação" de ensino na rede com os livros propostos pelo Ministério da Educação (MEC).

— Esse material (do governo paulista) é consumível. O aluno escreve, grifa, anota, rabisca aqui. E os livros do PNLD não são consumíveis no ciclo que estamos falando, nos anos finais do (ensino) Fundamental. O aluno tem que guardar, não pode anotar, guardar, circular, porque esse livro tem que estar disponibilizado para o ano que vem — disse em encontro com jornalistas na sede da secretaria, no Centro de São Paulo.

Outro argumento que pesou para o governo paulista recusar os livros didáticos enviados gratuitamente pelo MEC, disse, veio do fato de não querer passar uma "dupla orientação" nas diretrizes de ensino às escolas.

— Não queremos passar uma dupla orientação. Isso não vai ajudar, na nossa visão. Tirando as obras literárias, no PNLD cada escola escolhe seus livros. Então cinco escolas podem ter cinco livros diferentes. Imagina um professor que dá aula em três escolas. Tem que se adequar ao livro 1, livro 2, livro 3, e nenhum deles é consumível. Por isso, para dar um direcionamento claro e facilitar a vida de alunos e professores, vamos focar no nosso material dentro do currículo paulista, que são esses livros aqui — afirmou na ocasião.

Feder é investigado pela Procuradoria Geral de Justiça de São Paulo por suposto conflito de interesse. Entre 2003 e 2018, ele foi CEO da Multilaser, empresa que vende itens de tecnologia para a área de educação. Ele deixou o posto quando assumiu a Secretaria estadual de Educação do Paraná, mas segue sócio de uma offshore dona de 28,16% das ações da empresa.

— Fui presidente da Multilaser até 2018, quando saí para assumir primeiro a secretaria do Paraná, onde fiquei por quatro anos, e não compramos um alfinete da empresa na minha gestão. E também aqui na minha gestão em São Paulo, é o meu compromisso, e meu compromisso com o governo, de não comprar um alfinete, nada, via licitação, nada, da Multilaser enquanto eu for secretário — afirmou na semana passada.

Recentemente, em um novo capítulo da crise, professores e alunos da rede estadual de ensino tiveram um aplicativo da Secretaria de Educação instalado em seus celulares particulares sem que tivessem dado autorização para isso. Segundo informações do jornal "Estado de S.Paulo", o aplicativo Minha Escola SP foi instalado indevidamente no celular de quem já havia logado no sistema.

Não se sabe quantos aparelhos foram atingidos, mas a dimensão da rede é ampla: o estado de São Paulo tem mais de 3,5 milhões de alunos e cerca de 210 mil professores. A Secretaria de Educação afirmou que o programa foi instalado por erro, durante um teste da área técnica.

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