Rio Bairros Barra da Tijuca

Educação antirracista: escolas investem em ações contra o preconceito

Instituições promovem debates, mudanças no currículo e iniciativas de valorização da cultura negra entre alunos, responsáveis e funcionários
A professora de língua portuguesa do Faria Brito, Lais Campos, com parte dos alunos que elaboraram uma cartilha antirracista Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
A professora de língua portuguesa do Faria Brito, Lais Campos, com parte dos alunos que elaboraram uma cartilha antirracista Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo

RIO — Roberta Rosa se lembra bem quando, ainda estudante, ouviu a professora pedir a uma aluna que se sentasse no fundo da sala porque seu cabelo atrapalhava a visão de quem estava atrás. Segundo ela, era a realidade de muitas jovens negras de sua geração que assumiam o cabelo black power. Mas não a sua. Filha de um homem negro e de uma mulher branca com cabelo liso, conta que a mãe não sabia o que fazer para cuidar de seus cachos. A solução, então, era o alisamento. Hoje, aos 33 anos, e coordenadora do ensino fundamental II do Colégio Marista São José, em Jacarepaguá, está engajada, assim como a escola, na promoção de ações antirracistas que visem a desconstruir estereótipos e ideias preconcebidas. A questão do cabelo, por exemplo, será abordada em um painel de debates sobre racismo, padrões estéticos e identidade que o colégio fará em 19 de novembro, véspera do Dia da Consciência Negra. Não é uma ação isolada. Outras unidades de ensino se mobilizam nessa direção.

Novo ensino médio: Escolas e alunos se preparam para novas regras em 2022

— O cabelo afro é símbolo de empoderamento e resistência para nós, pessoas negras. Hoje, quando vejo as meninas chegando no colégio com o cabelo armado fico feliz e orgulhosa — comenta Roberta. — Ele já foi muito marginalizado. Hoje é valorizado. Vamos levar essa discussão para o painel.

Marista São José. A coordenadora Roberta Rosa (à esquerda, de pé), Raiane Letier (no centro, sentada) e participantes do Painel da Consciência Negra, que será relalizado no dia 19 de novembro Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
Marista São José. A coordenadora Roberta Rosa (à esquerda, de pé), Raiane Letier (no centro, sentada) e participantes do Painel da Consciência Negra, que será relalizado no dia 19 de novembro Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo

Aluna do Marista entre 2015 e 2020, Rayane Letier espera que suas experiências voltem a  contribuir para a discussão. Ela particiou de outro painel no ano passado e foi uma das que sugeriram temas para o encontro de novembro.

— Logo que entrei na escola, uma professora perguntou em sala quem se considerava negro. Fo i um momento de muita reflexão para mim. Até então, eu nunca tinha me feito esse tipo de questionamento. Quando se é um negro com um tom de pele mais claro, como eu, tendem a querer distanciá-lo da raça. Quando você se entende como negro, faz outra leitura de mundo. A partir da provocação da professora, ganhei esse lugar crítico dentro de mim — diz a jovem de 19 anos, hoje estudante de Comunicação Social na UFRJ, apõs ser aprovada com uma nota 980 em Redação no Enem.

O evento do dia 19 é um dos vários que o Marista organiza desde 2015, quando começou a desenvolver projetos que estimulassem os alunos a refletirem sobre a condição do negro no Brasil e no mundo.

—Naquele ano e em 2016, levamos os estudantes do 9º ano do ensino fundamental ao Cais do Valongo, à Pedra do Sal e à Cidade do Samba, na Zona Portuária. O objetivo foi fazê-los entender como surgiu o carnaval e as escolas de samba e ajudá-los a ter uma visão menos estereotipada da festa. Eles visitaram barracões, conversaram com trabalhadores e aprenderam sobre a confecção das fantasias — lembra.

'En français' ou em português: Aliança Francesa oferece podcasts gratuitos

Nos anos seguintes, foram organizadas visitas a outros espaços simbólicos, como o Instituto dos Pretos Novos e o quilombo São José da Serra, em Valença, interior do Rio.

Atentos aos fatos os estudantes também apresentam seus questionamentos. De acordo com Roberta, um tema que mexe muito com eles é a violência contra o negro. Casos como os assassinatos da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em 2018, e a morte de George Floyd, nos Estados Unidos, em 2020, foram amplamente debatidos em sala.

Os professores, por outro lado, participam de uma formação continuada toda quarta-feira, na qual refletem sobre práticas pedagógicas voltadas para a proteção a crianças e adolescentes. Um trabalho que foi útil quando um aluno negro, ao se sentir ofendido por um termo pejorativo usado por um colega branco, foi ao Núcleo de Apoio Pedagógico se queixar.

Funcionários e estudantes do colégio Marisa São José se unem para debater o racismo Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo
Funcionários e estudantes do colégio Marisa São José se unem para debater o racismo Foto: Fabio Rossi / Agência O Globo

— Cuidamos dos dois e chamamos as famílias. Entendemos que não é brincadeira e não queríamos que isso voltasse a se repetir, pois é grave. Se banalizamos esses pequenos conflitos, banalizamos o fato. Mas houve um pedido de desculpas e ficou tudo bem — conta Roberta.

De volta à praia: projetos sociais com atividades à beira-mar iniciam retomada

Famílias e funcionários envolvidos

Assim como no Marista, a formação continuada de professores é estimulada no pH. A rede conta com um Programa de Convivência Ética — até 2015 chamado de Aula de Vida —, em que professores, psicólogos e psicopedagogos discutem com os alunos, uma vez por semana, durante uma hora e meia, temas como racismo, xenofobia, assédio e bullying.

Este corpo docente faz parte de uma coordenação especial e se preparou durante três anos para conduzir as classes, voltadas para alunos do 1º ano do ensino fundamental até o ensino médio. Também participaram da formação inspetores e colaboradores das equipes pedagógicas de todas as unidades do pH.

— A mudança de chave foi entender que não adiantaria trabalhar a convivência ética isoladamente na aula se isso não impactasse o ambiente escolar como um todo e também os responsáveis pelos alunos — diz Vicente Delome, diretor de planejamento do pH e diretor da unidade Barra. — Para isso, contamos ainda com um programa chamado pH Conectado a Você, que são palestras para as famílias sobre temas variados.

Debate : Livro discute importância da educação antirracista

Em relação ao racismo, uma das ações adotadas em sala de aula é a leitura de obras de autores negros.

— A cultura africana também é estudada organicamente nas aulas de história, geografia, literatura e artes — diz Delome.

No momento, as três turmas de 9º ano do ensino fundamental realizam um trabalho sobre grafite, que inclui um apanhado histórico, a origem nos guetos americanos e a relação com o hip hop.No final, cada grupo fará um desenho num muro interno do pH.


Visitas a lugares simbólicos

Na opinião da educadora e historiadora Thayara Lima, integrante do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Antirracista (Gepear) da UFRJ e responsável pelo podcast “Não serei interrompida”, o racismo no Brasil e na educação é marcado pelo silenciamento. Portanto, é preciso rompê-lo.

— As visitas ao Centro do Rio são fundamentais. Quando isso acontece, o professor coloca a população negra dentro do debate e do processo histórico do país. São lugares onde se vê a marca dela — diz Thayara , que discute as relações raciais no Brasil a partir de narrativas femininas negras.

O professor Rafael Duarte, do Mopi, com alunos na Pedra do Sal Foto: Divulgação
O professor Rafael Duarte, do Mopi, com alunos na Pedra do Sal Foto: Divulgação

Tais passeios também são organizados pelo professor de História do 2º ano do ensino médio do Mopi, Rafael Duarte, desde 2017. Só não aconteceram em 2020 e neste ano por causa da Covid-19.

— Um dos muitos objetivos é mostrar aos alunos como a reforma urbana orquestrada pelo prefeito Pereira Passos, em 1904, teve um caráter excludente e gerou uma reação popular de resistência. Isso os ajuda a entender que o racismo vai além da ofensa. Eles refletem sobre o aspecto estrutural — diz Duarte. — O antirracismo, afinal, é uma prática e é difícil efetivá-la. Mas, pelo menos, os alunos saem das aulas questionando, o que já é um ganho.

Em sala, Duarte aborda a abolição da escravidão de forma diacrônica a partir do Censo 2010 do IBGE, que constata que a população negra e parda é majoritária no Brasil. A informação serve como estímulo para diferentes reflexões e a elaboração de uma redação junto com a professora de língua portuguesa.

Aprenda: Coletivo ensina a cultivar horta comunitária

Cartilha sobre palavras discriminatórias

No colégio Faria Brito, no Recreio, as palavras também ocupam um lugar de destaque no debate antirracista. A partir de um documento lançado pela Universidade do Pará e apresentado em sala de aula pela professora de redação e língua portuguesa Lais Carballal Campos, os alunos do 1º ano do ensino médio criaram a cartilha “O racismo sutil por trás das palavras”. Nela, os estudantes explicam a origem de diversas palavras e expressões e afirmam por que não deveriam mais ser utilizadas. Uma delas é “a coisa tá preta” (originalmente uma referência às péssimas condições dos escravos vindos da África). Ou ainda “mercado negro”, “lista negra” e “ovelha negra”: nos três casos, designa-se algo negativo.

—A escravidão é pautada na ideia de que uns grupos sociais são superiores a outros. É oque hoje classificamos como darwinismo social. Aquelas pessoas foram retiradas de sua humanidade, consideradas seres sem alma. Pensar que a linguagem tem uma parcela de culpa nesse contexto é importante, pois é uma forma de reproduzir o racismo — diz Lais. — A língua é um fenômeno vivo. Há termos que se transformam ou deixam de existir porque não utilizamos mais. É o que deveria acontecer as palavras incluídas na cartilha.

Especialização: Senac oferece cursos de beleza e bem-estar

Para Efraim Isaac Mendes Pinheiro, um dos estudantes que ajudaram a elaborar a cartilha, a maneira como as palavras foram criadas é “lamentável”:

— A opressão do negro não é de hoje em dia. Por isso mesmo é tão difícil mudar esses pré-conceitos.

Para Beatriz Machado Peixoto Monteiro, colega de Efraim, a mudança aconteceu não apenas dentro dela.

— Já usei e ouvi muita gente usando a expressão “criado-mudo”. Depois que entendi o significado, parei. Comuniquei à minha família e eles também pararam — conta a jovem. — Essa cartilha vai ajudar muita gente a se conscientizar.

'É para todas as cores e etnias': Autor escreve livro infantil sobre ancestralidade africana

Em breve, o documento começará a ser divulgado nas redes sociais do Faria Brito.

Em tempo: criado-mudo é uma referência aos escravos que tinham que segurar os objetos de seus senhores e não podiam fazer barulho.

‘Qual o problema do lápis cor da pele?'

"Mas tio, por que isso?”, costumam perguntar alunos do 3º ao 5º ano do ensino fundamental do colégio Inovar Veiga de Almeida ao professor de língua portuguesa Thiago Labre.

— Eles têm dificuldade de entender por que as pessoas são discriminadas por causa da cor — diz Labre.

O professor de língua portuguesa do Inovar Veiga de Almeida, Thiago Labre, parte de livros e filmes para abordar a cultura negra e o racismo Foto: Divulgação
O professor de língua portuguesa do Inovar Veiga de Almeida, Thiago Labre, parte de livros e filmes para abordar a cultura negra e o racismo Foto: Divulgação

“Mas tio, esse negócio de racismo também tá muito chato. Tudo é racismo. Qual é o problema de usar lápis da cor da pele?”, questionou, por sua vez, uma aluna do 4º ano após a exibição do curta “Dudu e o lápis cor da pele”.

— Mas quem deu essa aula não fui eu e sim a irmã dela, que já tinha compreendido melhor o que estávamos discutindo — lembra o docente.

“Deixa eu falar, tio? Então, quando você fala lápis cor da pele e ele é bege, você está dizendo que temos uma cor só e na verdade temos várias....”. “Até azul, né, tio? Tem o Avatar...”, interrompeu outro aluno.

— Quando, através da literatura, os alunos se enxergam e começam a repensar o seu modo de agir, não tem como dar errado — diz Labre.

Este ano, ele também refletiu sobre o racismo através de livros como “Amoras”, de Emicida, “Martin e Rosa”, de Raphaële Frier e Zaü, e “Com que penteado eu vou?”, de Kiusam de Oliveira.

— Neste último, em nenhum momento do livro tem uma menina que fala que sofreu racismo ou chora por causa da cor da pele. É uma festa de 100 anos do bisavô em que cada um vai com um penteado diferente e cada um dará a sua virtude de presente para ele. Não falamos sobre essa questão doída que é o cabelo, e sim de representatividade. Nosso objetivo é despertar consciência. Fazer os alunos entenderem que eles são agentes transformadores — diz o professor.

Aulão rompeu preconceitos

A troca entre alunos e professores estimula ambas as partes e revela necessidades. Ano passado, Labre e a também professora de língua portuguesa Valeria Raick organizaram um aulão on-line sobre África.

— Estava lendo com a turma de 6º ano “O diário de Pilar na África” (de Flávia Lins e Silva) quando um aluno disse: ‘Minha mãe não quer que eu leia essas coisas de candomblé. A gente não gosta disso". Eu confesso que, num primeiro momento, fiquei completamente arrepiada. Aí eu disse para ele: "Você não estuda mitologia grega na aula de história? Por que não pode estudar nossa cultura afrodescendente?’. Mas achei que ia ser pouco ficar nesse discurso. Então, fizemos um aulão. Falamos de todos os aspectos da cultura africana e foi fantástico como mudou a visão de muitos deles. Sem dúvida, carregam um preconceito muito forte — lembra Valéria.

Ainda este ano, o Inovar Veiga de Almeida vai levar os alunos 7º ano em diante ao quilombo Cafundá Astrogilda, em Vargem Grande.

Jonathan Aguiar, doutorando em Educação pela UFRJ e autor dos livros “Os excluídos podem sonhar, brincar e criar” e “Educação, lúdico e favela”, ambos pela Wak Editora,  aprova:

— Sou super a favor de uma educação fora dos muros da escola. É importante para que a cultura afro-brasileira não se torne invisível. Também defendo uma educação que inclua jogos e brinquedos africanos. O lúdico ajuda a criar vínculo com o outro. Quando as crianças estão manipulando brinquedos, não estão olhando para a cor do pele de outro e sim para a relação.

Rede pública tem comitês para tratar o tema

Na rede pública, o combate ao racismo também merece atenção. A Secretaria municipal de Educação informa que criou, em janeiro, a Gerência de Relações Étnico-Raciais, que, entre outras ações, "está reformulando as matrizes curriculares com o objetivo de transversalizar a temática étnico-racial por todas as áreas do conhecimento” .

Já a Secretaria de Estado de Educação explica que, conforme a Resolução Seeduc nº 3991, de 2008, foi criado o Comitê Estadual Étnico-racial, responsável por acompanhar e formular o desenvolvimento de ações voltadas para a valorização da cultura dos afro-brasileiros, dos africanos e dos povos indígenas em toda a rede estadual de ensino.

Acrescenta que uma equipe multidisciplinar trabalha junto aos gestores escolares e às equipes técnico-pedagógicas, oferecendo orientações e suporte preventivo em casos de violações de direitos. Se necessário, os envolvidos são encaminhados para redes de assistência social ou outros equipamentos públicos de referência.