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Brasil Educação

Mais de meio milhão de alunos no Brasil não teve aula nem à distância em 2020

Elas formam o contingente de estudantes mais prejudicado no ano da maior crise educacional no Brasil; em 34 municípios, mais de 90% das escolas fecharam
Marcelle Sant Anna, com as filhas Lara e Sara, e a sobrinha Sophia Foto: Alexandre Cassiano / Alexandre Cassiano
Marcelle Sant Anna, com as filhas Lara e Sara, e a sobrinha Sophia Foto: Alexandre Cassiano / Alexandre Cassiano

RIO - O Brasil teve, em 2020, mais de meio milhão de crianças sem nenhum tipo de ensino durante o fechamento das escolas. Elas formam o contingente de estudantes mais prejudicado no ano da maior crise educacional no Brasil.

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Esses alunos estão espalhados por 2.666 escolas em torno de 450 municípios do país. Em 34 deles, mais de 90% dos colégios não ofereceram aulas a distância. Isso significa que praticamente cidades inteiras ficaram sem o ano letivo.

O caso mais dramático foi o de Breves, município na Ilha do Marajó, no Pará. Breves tem 261 escolas públicas e 96% delas (251, todas municipais) não tiveram nenhum tipo de ensino a distância. Foram mais de 33 mil estudantes sem estudar ao longo do primeiro ano da pandemia.

— Começamos a entrega de material em 2021 e nos distritos mais distantes levamos de 18 a 24 horas de viagem de barco para chegar nas escolas. Mas nada foi feito no ano passado porque não houve empenho da prefeitura. e também era um ano de eleições — afirma Manuelle Espindola, técnica de carreira na rede e, desde janeiro, secretária de Educação de Breves.

Moradora da Reserva Extrativista Mapuá, no município, Luani Nascimento, de 25 anos, matriculou o filho na pré-escola em 2019. Aquele seria o único ano em que a criança, agora com seis anos, atravessaria o Rio Mapuá de canoa com a avó para chegar ao colégio, num trajeto de dez minutos. Em 2020, nem material o menino recebeu, e só em 2021 passou a ganhar apostilas, uma vez por mês.

— Meu filho está no segundo ano e só sabe o alfabeto. Não lê nem escreve nada — conta Luani.

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Referência para o ensino fundamental de todo o país desde o ano passado, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) prevê que toda criança esteja plenamente alfabetizada até o final do segundo ano — etapa que o filho de Luani completa ao fim de 2021. O alfabeto, segundo o documento, deve ser aprendido no 1º ano.

— Ele está atrasado, mas a boa notícia é que crianças ainda jovens conseguem recuperar o que não foi aprendido. Vai precisar de bastante trabalho — prevê Cláudia Costin, diretora do Centro de Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro (FGV-RJ).

Marcelle Sant Anna, com as filhas Lara e Sara, e a sobrinha Sophia Foto: Alexandre Cassiano / Alexandre Cassiano
Marcelle Sant Anna, com as filhas Lara e Sara, e a sobrinha Sophia Foto: Alexandre Cassiano / Alexandre Cassiano

Na avaliação da especialista, é de se comemorar que a maior parte dos alunos brasileiros conseguiu algum tipo de ensino remoto durante a pandemia, mas as cidades que pararam a educação em 2020 terão mais dificuldade para recuperarem a aprendizagem.

— Alunos da rede estadual de São Paulo, com ensino remoto de alguma qualidade, regrediram ao patamar de 11 anos em algumas etapas escolares. Imagina quem não teve nada durante o ano inteiro — diz.

Melhora insuficiente

No Brasil, o ensino remoto foi, na média, ruim em 2020, melhorou neste ano, mas ainda não é bom, na avaliação do estudo “Covid-19: Políticas Públicas e as Respostas da Sociedade”, da Rede de Pesquisa Solidária, que criou um índice de análise dos planos de ação na educação durante a pandemia.

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Em geral, as crianças brasileiras aprenderam com uma combinação de ensino pelo WhatsApp e material impresso. Os mais privilegiados acessaram as aulas ao vivo pela internet e plataformas educacionais virtuais.

Os mais prejudicados são os que não tiveram aula de forma alguma. De acordo com dados do Inep, órgão responsável pelas estatísticas do Ministério da Educação, essas escolas estão concentradas nas áreas rurais, especialmente nos estados da Bahia e do Pará, com cerca de 157 mil e 97 mil alunos, respectivamente, sem aulas em 2020.

— As famílias ficaram muito preocupadas com a falta de aulas durante o ano inteiro — conta Maria do Carmo Santos, que faz parte da diretoria da Reserva Extrativista Mapuá e liderança em Breves do Observatório do Marajó.

Rondônia foi, proporcionalmente, o estado com mais escolas desativadas na pandemia, com 9,1% paradas.

Fora das regiões Norte e Nordeste, apenas a cidade de Quatis, a 156 quilômetros do Rio, teve mais de 90% das escolas sem ensino à distância. Lá, nove dos 10 colégios no município não propiciaram nem apostilas impressas.

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— Foi um ano perdido para todas as crianças da cidade. Por mais que agora estejam dando apostila do ano anterior, sei que minhas filhas não vão recuperar o que perderam — diz a moradora de Quatis Marcelle Sant Anna, de 32 anos, mãe de Lara e Sara, de 10 e 13, respectivamente. — E se continuasse a prefeitura antiga nem isso ia ter.

Também moradora de Quatis, Angélica Barros, de 40 anos, conta que a escola do filho, de 9, é de profissionais qualificados e comprometidos. Mas, na avaliação dela, faltou a prefeitura garantir as condições para o trabalho.

— Gosto muito da escola onde ele estuda. Meu filho mais velho terminou o ensino fundamental no mesmo lugar e agora está na faculdade — conta.

A prefeitura de Quatis mudou de comando em 2021. O GLOBO não conseguiu contato com a administração.

Perdas de aprendizagem

Há um certo consenso na literatura educacional sobre os impactos do fechamento prolongado das escolas no aprendizado. Uma das pesquisas mais recentes, publicada pela Universidade de Oxford em maio de 2020, analisou o impacto de um terremoto no Paquistão em que uma parcela de escolas ficou fechada por três meses em 2005.

Quatro anos depois, as avaliações mostravam que as crianças de 3 a 15 anos que ficaram sem aulas naquele período estavam um ano e meio atrasadas em relação aos colegas que moravam mais longe da tragédia e seguiram estudando.

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“Isso, apesar do fato de que as famílias afetadas pelo terremoto receberam uma compensação financeira significativa, o que permitiu que os resultados de saúde dos adultos e a infraestrutura da comunidade se recuperassem totalmente”, diz o estudo.

Outra descoberta foi a de que crianças com mães mais instruídas não ficaram para trás, de modo que o terremoto aumentou as desigualdades nas áreas afetadas . Ainda segundo a pesquisa, a volta às aulas é um desafio ainda maior: “O fechamento de escolas foi responsável por apenas 10% da perda nas pontuações dos testes. Muito mais foi perdido depois que as crianças voltaram à escola, possivelmente devido ao atraso das crianças no currículo e à impossibilidade de acompanhar os novos conteúdos”.

Os autores do estudo de Oxford calculam que se as crianças atingidas pelo terremoto no Paquistão não recuperassem o déficit educacional, podem perder 15% de seus ganhos a cada ano pelo resto de suas vidas .

Nômade da educação

Também no Pará, Daniele Azevedo, de 17 anos, no segundo ano do ensino médio, estudou até 2019 na comunidade ribeirinha Aramã Grande, onde completou o ensino fundamental. No ano seguinte, mudou-se para a cidade de Anajás. No entanto, com a crise sanitária a partir de março, a escola fechou e Daniele não teve nenhuma atividade durante o ano, assim como 98% das 106 escolas públicas no município. Em 2021, a jovem decidiu que se mudaria novamente. Dessa vez, escolheu a capital, Belém, para “um estudo melhor”.

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— Fiquei na pandemia em casa, fazendo trabalho doméstico, comendo e dormindo — reclama a estudante, que foi morar com um primo de segundo grau para poder seguir na escola. — Passei para o segundo ano sem ter feito nada no primeiro. Até pedi para repetir, mas a diretora falou que não podia. Saí super prejudicada. Já voltei a estudar presencialmente e estou tendo muitas dificuldades com inglês agora.

Casos como o de Danielle são, na avaliação de Costin, os mais preocupantes. A adolescente tem pouco tempo em sala de aula para recuperar o que perdeu, já que se forma em 2022.

— A aprendizagem se recupera. Mas esses jovens vão ficar apenas poucos meses a mais na escola para poder saírem sabendo o que deviam — diz . — No Brasil, a falta de aulas se deu porque nem o Ministério da Educação coordenou a resposta na pandemia nem esses municípios acharam que deviam lidar com uma crise tão grave. Na Saúde, tiveram que agir. Mas ninguém morre imediatamente por falta de educação, e algumas autoridades acham que podem não fazer nada — critica Costin.