Mais de 10 mi de jovens de 14 a 29 anos não concluíram ensino médio; 70% deles são pretos ou pardos

Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Educação 2019, feita pelo IBGE, mostra que metade dos jovens homens que abandonaram a escola precisava trabalhar; entre as mulheres, quase um quarto deixou os estudos por ter engravidado

PUBLICIDADE

Por Daniela Amorim e Ludimila Honorato
7 min de leitura

RIO E SÃO PAULO – Os dados sobre a escolarização da população brasileira vêm melhorando, mas ainda mostram uma forte desigualdade, especialmente a partir da adolescência, quando parte expressiva dos jovens ainda interrompe os estudos. O País tem 10,1 milhões de jovens de 14 a 29 anos que não frequentam a escola nem concluíram o ensino médio, sendo que 7,2 milhões deles são pretos ou pardos.

As informações são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua: Educação 2019, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Os dados mostram que o abandono escolar se agrava a partir dos 15 anos. Metade dos rapazes que abandonaram a escola alegar que precisavam trabalhar. Entre as mulheres, quase um quarto delas (23,8%), deixaram os estudos porque ficaram grávidas.

Câmara aprova projeto que afasta gestantes de trabalho presencial durante calamidade pública provocada pela pandemia do novo coronavírus. Foto: Nilton Fukuda/ Estadão

“Os motivos da evasão, do abandono, são diferentes. O que chamou mais atenção foi a diferença entre homens e mulheres. A questão do trabalho para os homens pesa muito mais. É óbvio, se olhar a realidade heterogênea do Brasil, a gente sabe que muita gente tem que trabalhar cedo porque precisa prover dinheiro para dentro de casa, para alimentação, para o sustento. Mas impressiona como a questão da gravidez entre as mulheres faz com que haja uma ruptura da questão escolar. Isso chamou a atenção. Óbvio que o trabalho é importante, mas, para as mulheres, a questão da gravidez foi também decisiva”, disse Marina Aguas, analista da Coordenação de Trabalho e Rendimento do IBGE.

Ricardo Henriques, superintendente-executivo do Instituto Unibanco, organização que atua para a melhoria da educação pública no Brasil, comenta que entre os diversos fatores que explicam a evasão escolar, como vulnerabilidade social e econômica, o racismo é o traço mais importante desse problema.

“Proporcionalmente, os negros estão em famílias mais vulneráveis. Esse número traduz a educação tanto no nível do fluxo como no nível da escolaridade e é talvez a expressão mais nítida de como a desigualdade racial é estrutural na sociedade”, diz. Segundo ele, o racismo estrutural que foi naturalizado e é negado ou ocultado no Brasil rebate em todas as estruturas do País, tendo a educação como espelho mais nítido.

Continua após a publicidade

O impacto do abandono escolar, independente do motivo ou gênero, é da mesma natureza. “Não entrar na escolaridade básica é preditor garantido de uma péssima inserção na vida adulta e tem uma implicação inequívoca que será a inserção precária no mundo do trabalho. Os casos excepcionais, em geral, são só uma alegoria de uma situação que teria sido melhor”, afirma Henriques. Ele indica, ainda, que parte da evasão tem a ver com o próprio ambiente escolar, como no caso de crianças que sofrem bullying.

Segundo o IBGE, elevar a instrução e a qualificação dos jovens é uma forma de combater a expressiva desigualdade educacional do País, mas também pode facilitar a inserção no mercado de trabalho, reduzir empregos de baixa qualidade e a alta rotatividade, especialmente em um contexto econômico desfavorável.

Para o porta-voz do Instituto Unibanco, o discurso de que bastaria dar oportunidades iguais a todos na base educacional não garante uma menor evasão. “Isso é uma tese abstrata sem vínculo à realidade brasileira, que não consegue dar conta do desafio histórico da sociedade que tem racismo estrutural e onde a população negra é majoritária. Igualdade de oportunidade deveria ser tratada como responsabilidade pública a ser garantida ao longo do processo da educação”, comenta.

Apenas 41,8% dos adultos pretos ou pardos acima de 25 anos tinham concluído o ensino básico obrigatório em 2019, contra uma fatia de 57% da população branca na mesma faixa etária. Os pretos e pardos tinham, em média, 8,6 anos de estudos, enquanto os brancos tinham estudado 10,4 anos, quase dois anos a mais.

“A população branca tem quase dois anos a mais de estudo que a população preta ou parda, mostrando aí mais uma vez essas diferenças de acesso à educação, ainda que à educação básica”, disse Adriana Beringuy, analista da Coordenação de Trabalho e Rendimento do IBGE.

As taxas ajustadas de frequência escolar líquida - que mostram as pessoas em idade escolar que cursam a etapa adequada de ensino para a respectiva idade – evidenciam que o atraso e a evasão afetam mais a população negra ao longo do progresso da vida escolar.

“O desequilíbrio, as desigualdades, o início dos gargalos já começa no ensino fundamental. As pessoas falam que o grande problema seria o ensino médio, ele não começa no ensino médio, ele jé se manifesta nesses anos finais no ensino fundamental”, ressaltou Adriana Beringuy, analista da Coordenação de Trabalho e Rendimento do IBGE.

Continua após a publicidade

Até a faixa de 10 anos, brancos e negros tinham uma taxa de frequência escolar líquida similar, perto de 96%. Entre os 11 e 14 anos, o resultado descia a 90,4% entre os brancos, mas despencava a 85,8% entre os pretos ou pardos. Quando considerada a taxa ajustada de frequência escolar líquida ao ensino médio entre as pessoas de 15 a 17 anos, o resultado foi de 79,6% para os brancos e de 66,7% entre os pretos ou pardos.

“Se o cara já vem atrasado, ele tem mais chance de sair (da escola) nessa idade, e tem o próprio trabalho concorrendo com o estudo. A gente queria mostrar esse marco que acontece de 14 para 15 anos, e como é importante pensar o que fazer nessa idade para que esse jovem permaneça na escola”, explicou Marina Aguas.

A pesquisadora do IBGE lembra que já existe uma discussão ampla sobre como tornar o Ensino Médio mais atraente para os jovens, mas ressalta que é preciso também levar em consideração a necessidade de parte expressiva dos alunos que precisa conciliar os estudos com o trabalho e afazeres domésticos.

“Não é só uma questão de atração pela escola, de querer aprender, estudar, mas a questão do trabalho, tem que fazer com que ele também tenha tempo para o trabalho”, opinou Marina. “Como tornar a educação mais atrativa e, principalmente, de conseguir conciliar nas idades já maiores com o trabalho, a questão da gravidez, dos afazeres domésticos. Tudo isso faz com que o tempo da pessoa seja dividido em várias tarefas”, concluiu.

Quatro perguntas para:

Ricardo Henriques, superintendente-executivo do Insituto Unibanco

Continua após a publicidade

Como avalia o fato de pretos e pardos terem menos acesso e menos anos de estudo do que os brancos?

A gente observa que é uma fotografia que segue coerente com o filme de discriminação e desigualdade racial que a gente tem ao longo da nossa histórica. Está reduzindo um pouco, mas segue altíssimo. A grande questão é que primeiro temos uma desigualdade racial na estrutura do País, e ocorre um racismo que em regra é negado ou ocultado. O que nós vemos mais ainda é que, de alguma forma, esse racismo estrutural naturalizado se traduz em mecanismos e práticas no interior da escola que mantém ou aumenta essa desigualdade racial. Como é um sociedade que ainda nega seus traços racistas, a escola é uma expressão desse racismo estrutural que pode ser ainda mais perverso. Acho que a história brasileira é atravessada pela desigualdade racial, que estrutura a desigualdade social brasileira e na educação como um todo isso acaba se revelando.

Por que o atraso e a evasão escolar afetam mais a população negra?

O traço mais importante é na origem, o racismo. Na evasão, os fatores que explicam são multidimensionais. A vulnerabilidade socioeconômica da família pressiona para que os mais jovens saiam da escola e vão trabalhar. Isso afeta desproporcionalmente os jovens negros do que brancos, porque proporcionalmente os negros estão em famílias mais vulneráveis. Há fatores econômicos associadas à evasão e o Brasil se organizou de forma que naturalizou o padrão de desigualdade. Isso rebate em suas estruturas e a mais nítida é a educação como um todo.

Ricardo Henriques, superintendente-executivo do Insituto Unibanco Foto: Werther Santana/ Estadão - 31/8/2018

A educação de jovens e adultos tem papel importante nesse ponto?

Com certeza. O ensino básico regular deveria estar obcecado em reduzir a defasagem e garantir que jovens concluam os 12 anos obrigatórios perto dos 17, 18 anos. Além disso, é muito importante ter EJA que seja sólida o suficiente para fazer essa correção de rotas na política educacional brasileira. É necessário ter EJA de qualidade, mas está tentando corrigir problemas estruturais que fizeram com que jovens não construíssem sua escolaridade na idade adequada.

Continua após a publicidade

Quais políticas públicas em educação poderiam ser adotadas para reverter esse cenário?

A desigualdade de acesso é baixa, a permanência é o desafio, de crianças negras que começam a sair mais cedo da escola. Tem problema no acesso, mas é mais intenso a permanência e a conclusão. Então, a política educacional deve reconhecer o racismo estrutural brasileiro e criar instrumentos no campo pedagógico que sejam capaz de ter estratégias adequadas a esses desafios. Em geral, as crianças negras vão estar submetidas a produzir defasagem, e a escola produz essa defasagem maior. É fundamental que a política educacional reconheça a desigualdade de origem, reconheça que o racismo organiza a sociedade, precisa formar professores e dar conta disso ao longo do processo. Dizer que desigualdade é na origem social é um modo de ocultar que ele é racial. O econômico e social, a desigualdade de classe, são secundários frente à desigualdade racial.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.