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Lugar de negro é onde ele quiser

Não basta criar ministérios específicos para combater o racismo estrutural, diz Macaé Evaristo

A educação é instrumento para perpetuar a Casa-Grande e a senzala, diz a educadora - Imagem: iStockophoto e Redes sociais
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O descaso pelo ensino público está no cerne do racismo estrutural, afirma Macaé ­Evaristo,­ recém-eleita deputada estadual em Minas ­Gerais e uma das maiores referências na militância negra e na defesa da educação universal. Na entrevista a seguir, ­Evaristo analisa a pequena presença dos negros nos espaços de poder e diz que não basta criar pastas “segmentadas” para contemplar as minorias e os excluídos. “A gente quer estar no BNDES, quero a presença negra na Petrobras, no Ministério da Economia. Tem uma questão que é muito séria no racismo brasileiro. Quando a gente alcança algum espaço de poder, você pode olhar, o poder já não está muito ali. A nossa luta é desconstruir o racismo, fazer o poder estar onde nós estamos”.

“A GENTE QUER ESTAR NO BNDES, QUERO A PRESENÇA NEGRA NA PETROBRAS, NO MINISTÉRIO DA ECONOMIA, ONDE ESTÁ O PODER”

CartaCapital: Como pensar a escola, em especial a pública, na perspectiva dos direitos humanos?
Macaé Evaristo: Essa questão tem a ver com a minha própria história. A escola pública foi muito importante para mim, mas também foi um lugar onde convivi com o racismo, o preconceito, a desigualdade. Sei os desafios de ser pobre e lutar para estudar. A consciência do racismo me levou a participar de movimentos sociais, do movimento negro, a militar na educação. Fui trabalhar na periferia de Belo Horizonte, numa região com o menor IDH da cidade, com muita fome. Pensar política pública, política educacional, é olhar para os sujeitos, não adianta só pensar em um projeto, uma política. Falam muito dos conteúdos, das métricas, dos resultados, mas pouco das condicionalidades, de estabelecer condições objetivas para as crianças terem uma trajetória de sucesso. É preciso combater o racismo na escola, olhar para essas famílias imersas num racismo institucional, segregadas em bairro sem nenhuma qualidade de vida. As crianças chegam na escola e precisam ser alimentadas, pois não têm condição física devido à fome. E isso marca profundamente o jeito de o educador pensar a política. O empobrecimento no Brasil é uma construção social e política. Não se é pobre por natureza, mas pela desigualdade social. O racismo e o patrimonialismo institucional estão na raiz da estruturação do capitalismo no Brasil.

CC: A senhora costuma dizer que a desqualificação da escola pública é uma estratégia do racismo estrutural. Por quê?

ME: Existe no Brasil um processo de construção da desigualdade, da segregação, da exclusão, a partir da escola pública. A gente vê no noticiário as contradições. Dizem ser preciso investimento em educação, mas, quando se sugere eliminar o teto de gastos, o mercado fica nervoso. Mas nervosos estamos nós, trabalhadores e trabalhadoras. Queremos que os nossos filhos tenham direito à escola pública e acesso a uma universidade de qualidade. Precisamos do SUS e do Sistema Único de Assistência Social. O desmonte foi produzido em todos os níveis, da creche à pós-graduação. Todos os setores da sociedade concordam, a educação é direito. Ora, então como manter um teto de gastos que não permite garantir direitos mínimos? Atacar escola pública é atacar seus sujeitos. A desconstrução é tamanha que, hoje, o ataque se dá sob a formação de professores, na tentativa de retirar as universidades do processo de formação de professores e colocar isso na mão do setor privado.

Imagem: Christiano Antonucci/GOVMT

CC: Qual deveria ser a política pública para os povos originários?

ME: O primeiro ponto é respeitar a Convenção 169 da OIT. Qualquer política pública para a população indígena precisa ser discutida com ela. Bolsonaro não reconheceu essas populações, queria avançar sobre os territórios e reverter a demarcação de terras. Declarou guerra a essas populações. O presidente Lula comprometeu-se com o Ministério dos Povos Originários e tivemos neste ano parlamentares indígenas eleitas para a Câmara, esperamos que isso faça diferença. O Brasil precisa garantir os direitos e a cidadania às etnias.

Houve avanço na representação parlamentar de indígenas, negros e mulheres. Mas ainda é pouco – Imagem: Jefferson Rudy/Ag. Senado

CC: A senhora acha que o próximo governo será capaz de mudar os rumos da educação?

ME: O que sempre faltou na educação foi investimento. Os governos Lula e Dilma inverteram essa lógica, ousaram ao investir nas escolas públicas, nas universidades, na constituição de institutos federais. Muita gente ficou horrorizada ao ver os filhos de porteiro aprovados no ensino superior. É um equívoco o Ministério da Educação separar, criar uma subsecretaria para as escolas cívico-militares, pois sempre tivemos a Secretaria de Educação Básica, que articula as ações com estados e municípios. A outra secretaria, de educação continuada, alfabetização, diversidade e inclusão, cujo foco era a redução das desigualdades, atuava numa perspectiva de pensar a diversidade de maneira afirmativa. A gente tem de combater o racismo no Brasil. É preciso olhar para a educação quilombola, para as relações étnico-raciais, as diretrizes curriculares nacionais, educação indígena, de jovens e adultos. Eles zeraram o financiamento da educação de jovens e alfabetização de adultos no País. Tínhamos o monitoramento da frequência escolar, era uma condicionalidade para transferência de renda do programa Bolsa Família. Eles zeraram qualquer apoio e financiamento para esse monitoramento. No governo Dilma, conseguimos monitorar 95% da frequência mensal dos estudantes beneficiários do Bolsa Família. No Auxílio Brasil não conseguem, não chegam a 60% dos estudantes beneficiados. A gente precisa dialogar com a pluralidade da sociedade brasileira e para isso precisa de um Ministério da Educação que compreenda essa diversidade.

CC: Ter um ministério para os povos originários ou de igualdade racial é suficiente para atender a essa representatividade, como propõe o governo eleito?

EM: Não, não é suficiente. É importante o Ministério dos Povos Originários, da Igualdade Racial, mas isso não contempla a presença negra e indígena no governo. Não queremos ficar segregados em uma ou outra pasta, precisamos de presença em outros ministérios, ter política de saúde para a população negra, no Ministério da Educação ter o monitoramento da implementação da lei de cotas e acompanhar a política de assistência estudantil. Como os estudantes das escolas públicas, indígenas e pretos têm acesso à assistência estudantil? Isso para falar só no campo da educação. Mas a gente quer estar no BNDES, quero a presença negra na Petrobras, no Ministério da Economia. Tem uma questão muito séria no racismo. Quando a gente alcança algum espaço de poder, observe, o poder não está muito ali. A elite brasileira sempre atua para o poder estar onde ela está. Onde nós negros estamos, nunca está o poder. A nossa luta é desconstruir o racismo no Brasil, fazer o poder estar onde nós estamos. A luta dos movimentos populares, de mulheres, do MST, dos movimentos negro e indígena. Esta é a construção de um poder popular, com a nossa cara.

“SÓ ELEGEMOS UM NÚMERO MAIOR DE MULHERES E HOMENS NEGROS NESTA ELEIÇÃO PORQUE TIVEMOS O FINANCIAMENTO PÚBLICO DE CAMPANHA”

CC: Durante a campanha de Lula, a diversidade não ficou clara. Não se viam nas fotos negros, indígenas, LGBTQIA+. Apareciam poucas mulheres, não havia a pluralidade, a diversidade da sociedade.

ME: É preciso, antes, compreender a construção desses lugares, pensar na formação dos partidos. O PT é uma legenda grande, de massas, com processos, vamos dizer, populares de discussão. Mas também perpetua vários vícios da sociedade, entre eles o machismo e o racismo. É muito recente na história do PT eleger mais de uma parlamentar negra. Em Minas Gerais, pela primeira vez, elegemos três mulheres negras para a Assembleia Legislativa e uma para a Câmara dos Deputados. No geral, elegemos uma. Muitas vezes eles querem nos reduzir. A gente precisa entender quem está no topo das estruturas partidárias. Não são negros. Temos de alçar outros lugares da estrutura partidária. E esse processo, que se dá internamente nos partidos, se materializa no palanque. Não vai ter um palanque com negros e indígenas se na estrutura não tem negros nem indígenas. Se no PT é assim, nos outros partidos é pior. Então, quem nos vê no palanque ou numa entrevista de Lula, muitas vezes não imagina o quão duro é chegar ali. É ter de sair quase na guerra física. É triste, mas é a verdade. A gente faz microrrevoluções cotidianas, transforma progressivamente, mas falta um longo caminho. A gente viu a guerra que se deu neste ano no financiamento de candidaturas negras e de mulheres. Somos contra o financiamento privado de campanha. Eles (políticos tradicionais) são todos herdeiros e acham não ser necessário o financiamento público. Sabe por quê? Porque eles passaram a vida inteira pendurados no orçamento público. Nós não, não tivemos direito nem à escola pública. Então, só elegemos um número maior de mulheres e homens negros nesta eleição porque tivemos o financiamento público de campanha. Caso contrário, não teríamos condições de disputar a eleição. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1240 DE CARTACAPITAL, EM 28 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Lugar de negro é onde ele quiser”

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