Lugar de mulheres é na educação científica – e onde mais elas quiserem - PORVIR
Crédito: MachineHeadz/iStock

Inovações em Educação

Lugar de mulheres é na educação científica – e onde mais elas quiserem

Mesmo com o apoio de programas que fomentam a presença feminina nos cursos STEM (sigla em inglês para ciências, tecnologia, engenharia e matemática), ainda há necessidade de equidade de gêneros

por Ana Luísa D'Maschio ilustração relógio 8 de março de 2022

Em 1893, ano em que a Nova Zelândia se tornava o primeiro país a conceder o direito de voto às mulheres, a polonesa Marie Curie (1867-1934) se tornava pioneira: concluía a graduação em física, curso majoritariamente masculino, na Universidade Sorbonne, na França. Anos depois, seria a primeira professora da instituição entre os educadores homens. Marie também desbravou o Prêmio Nobel, ao se tornar a primeira pesquisadora laureada na área da física, pelos estudos relacionados à radioatividade, em 1903. Pouco depois, em 1911, conquistaria o segundo Nobel, desta vez por ter descoberto os elementos químicos Polônio e Rádio. Mais de cem anos se passaram e apenas Maria Goeppert-Mayer (em 1963), Donna Strickland (em 2018) e Andrea Ghez (em 2020) figuram ao lado de Marie na lista do principal prêmio do mundo na física.

“Quer dizer que não existem outras cientistas? Onde elas estão?”, questiona Maria Inês Ribas Rodrigues. Física formada pela USP (Universidade de São Paulo), ela é idealizadora do Projeto Menina Ciência – Ciência Menina, que visa minimizar as questões de gênero encontradas na área. “A ausência de mulheres no Nobel é apenas um exemplo e se trata de uma conjunção de fatores. Mas, por meio do conhecimento sobre estes fatos, poderemos ampliar as discussões e reflexões. Vemos cada vez mais a relevância de apoio a projetos que visam atrair a atenção das meninas para as ciências”, ela responde. Maria Inês é professora do Centro de Ciências Naturais e Humanas da UFABC (Universidade Federal do ABC) e, por meio do Menina Ciência – Ciência Menina, organiza palestras e atividades práticas destinadas às estudantes em fase escolar.

Para ela, o apoio dos pais, professores e familiares no suporte às meninas em suas escolhas é fundamental. “Desde criança eu era motivada a procurar soluções para problemas complexos. Meu encantamento pela área das ciências surgiu no nono ano, com o ensino sobre a natureza da matéria e dos átomos. No ensino médio escolhi as exatas”, diz. “Quando me formei em física na IFUSP [Instituto de Física da Universidade de São Paulo], muitas vezes eu era a única mulher em sala de aula. Como professora da mesma disciplina, no início da minha carreira, era recebida pelos alunos como a suposta professora de ‘Educação Física’, pois não acreditavam que eu pudesse ser mulher e física. Eu precisava deixar claro que era física!”, recorda.

Segundo Claudia Bauzer Medeiros, professora titular do Instituto de Computação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), onde ingressou como docente doutora em 1985, é preciso modificar a cultura de que há profissões para homem e profissões para mulher.

Coordenadora do Programa FAPESP de Pesquisa em eScience e Data Science e primeira mulher da área de computação a ser eleita para a Academia Brasileira de Ciências, Claudia acredita que a mudança não acontece na universidade, e sim no ensino fundamental, bem como junto aos familiares. “Programas bem-sucedidos nos Estados Unidos promovem eventos para meninas envolvendo também as famílias, para que todos entendam o contexto e, inclusive, para que pais e mães incentivem as meninas a essas profissões. Em muitos casos, a família desconhece opções de carreira”, declara a pesquisadora, que coleciona prêmios em seu currículo. Entre eles, o Anita Borg Agent of Change Award (2006) e o Google Brazil Award (2008), ambos pela criação de programas a fim de atrair mulheres para a computação.

Questão de representatividade
Dados da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) mostram que apenas 28,8% dos pesquisadores em todo o mundo são mulheres. Ainda assim, meninas costumam se interessar pelas áreas STEM (sigla em inglês para ciências, tecnologia, engenharia e matemática) por volta dos 11 anos e meio, mas acabam se desmotivando a partir dos 15 anos: 60% das jovens entrevistadas pela pesquisa da Microsoft ficariam mais confiantes em seguir carreiras nessas áreas apenas se homens e mulheres trabalhassem em condições de igualdade.

“A falta de representatividade é um fator preponderante no caso das meninas. E isso está presente nos livros didáticos, nos filmes, nas propagandas, onde a figura do cientista está relacionada ao masculino. Veja nos livros a figura do pai realizando experimentos com seu filho e não a mãe com a menina”, observa Maria Inês. “O mesmo vale para os professores, tanto homens quanto mulheres, pois a concepção sobre a desigualdade de gênero nas ciências está presente também nas salas de aula – ‘meninas não gostam de matemática’, ‘meninos são melhores nas exatas'”, argumenta.

Na mesma linha de raciocínio, Carine Roos, CEO e fundadora da Newa (empresa de impacto social que apoia a diversidade, inclusão e inovação) conta que passou por obstáculos até ser ouvida e respeitada ao ocupar um cargo de liderança na Unesco. Por isso, antes de criar a Newa, fundou o Programa Elas, que apoiava mulheres nas áreas de liderança.

“São vários os fatores que fazem com que as meninas se afastem das áreas de ciências, tecnologia, engenharia e matemática, áreas predominantemente dominadas por homens. Essas são questões que vão desde o componente educacional, quando se educam meninas e meninos de maneira diferente, incentivando-as geralmente às áreas de humanas, saúde, relacionamento e comunicação, por exemplo, enquanto os meninos são incentivados a seguirem áreas mais racionais”, comenta Carine. “Essa diferenciação acontece desde a base e isso faz com que baixe a autoestima das meninas, fazendo com que elas não se reconheçam em profissões como ciência, pesquisa e programação”.

Claudia Bauzer Medeiros concorda, e reforça a importância da conscientização. “Nas escolas e, a seguir, nas universidades, há muito trabalho para que os rapazes consigam enxergar como praticam discriminação sem mesmo senti-lo. Já organizei debates e mesas redondas para turmas da Unicamp sobre o assunto, e a grande maioria dos alunos afirma que nunca se tinha dado conta de que havia ou que praticava discriminação. Quando uma aluna é discriminada por uma turma majoritariamente masculina por causa de gênero, muitas vezes desiste ou desanima”, exemplifica.

Superando preconceitos
Fascinada por astronomia durante a infância, Carolina Brito herdou de um tio, químico, a paixão pela pesquisa científica. Mas não se esquece da influência negativa de um professor sexista que quase a fez mudar o sonho de criança. Professora associada do Instituto de Física da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) e coordenadora de um grupo de trabalho sobre questões de gênero da Sociedade Brasileira de Física, Carolina, quando vestibulanda, deu uma entrevista ao jornal Zero Hora, falando sobre a vontade de se tornar astrônoma.

“Um professor ligou na minha escola para me procurar e fez um drama, dizendo que eu deveria prestar atenção, pois era uma carreira muito complicada”, relembra. “Reencontrei com esse professor na faculdade. Ele ficou chocado quando eu disse que estava estudando física três. Os cálculos são grandes vilões do curso de exatas e eu tinha ido bem. Nós, mulheres, sempre temos de mostrar competência para justificar porque estamos em uma determinada posição”, afirma Carolina.

Atualmente, na extensão universitária da UFRGS, Carolina produz o podcast Fronteiras da Ciência e coordena o programa Meninas na Ciência que, assim como a iniciativa de Maria Inês, da UFABC, tem como meta atrair meninas para as carreiras nas ciências exatas e tecnológicas.

A maior presença de mulheres nas áreas ligadas ao STEM começou a ganhar força nos anos 1990, pela constatação de que havia necessidade de maior diversidade na força de trabalho nas áreas associadas à ciência, engenharias e tecnologia. Em paralelo, faltava mão de obra qualificada nessas áreas, independentemente do gênero, e assim surgiram programas e treinamentos específicos para jovens, expõe Claudia Bauzer.

“A demanda por mulheres foi impulsionada por estatísticas de mercado, que comprovavam que produtos e patentes desenvolvidos por equipes com diversidade obtinham mais sucesso no mercado e tinham maior usabilidade. Tais estudos levavam também em consideração o perfil de compradores – afinal, mulheres são aproximadamente 50% da população”, explica Claudia, ressaltando que as grandes empresas de TI americanas têm estudos de mais de 20 anos que mostram quanto as mulheres predominam entre os compradores de computadores pessoais e equipamentos eletrônicos.

“No mundo inteiro, entre os anos 1970 até meados dos anos 1980, havia muito mais mulheres que homens nas profissões voltadas a TICs [Tecnologias da Informação e da Comunicação]. Esta tendência começou a ser revertida à medida que os salários passaram a ser mais competitivos, atraindo mais homens”, diz Claudia. A computação não seguiu o mesmo caminho das engenharias, na maioria das quais tradicionalmente sempre houve menos mulheres. “Há áreas da engenharia, como alimentos, em que há total predominância de mulheres. Assim, não é possível generalizar”, resume.

Valorização e reconhecimento
No entanto, pesquisas revelam que, à medida que a carreira progride, as mulheres passam pelo chamado efeito tesoura, conforme esclarece Carolina Brito, e são menos representadas no topo da carreira. “No Brasil, 50% dos formandos são mulheres. Quando falamos de bolsa de produtividade em pesquisa, o número cai para 36% de mulheres. E na Academia Brasileira de Ciências, que é o topo da carreira, elas representam apenas 14%.”

A ciência é pouco valorizada no Brasil e há quem duvide de sua eficácia, aponta a professora da UFRGS. “Apesar do arsenal de informações, observamos movimentos antivacinação, pessoas que defendem a terra plana ou o kit para a cura da Covid-19. Parte do problema transcende o gênero, temos ainda outras questões, como raça e estereótipos. Creio que deveríamos fazer mais campanhas mostrando o quanto essas áreas são interessantes, têm boa empregabilidade e as pessoas que nelas atuam poderão fazer grandes revoluções na sociedade”, sugere.

Claudia Bauzer ressalta que nos EUA, Canadá e países europeus, a situação é bem mais equitativa. Mas o fato de haver, no Brasil e no mundo, associações, iniciativas e movimentos para mais mulheres nas áreas STEM mostra que ainda há muito a se fazer. O caminho é ir muito além de um Dia Internacional da Mulher ou de fazer uma ação de marketing, sublinha Carine Roos.

“As empresas devem se preocupar genuinamente como as mulheres se sentem dentro da organização. É um processo de diagnóstico, de escuta, de acolhimento, de entender as necessidades que não estão sendo atendidas e criar estratégias para acolher essas mulheres com políticas, plano de carreiras, com desenvolvimento dessas mulheres”, diz a empreendedora.

Redes de apoio
Se o preconceito ainda perpassa, por vezes, pelo meio familiar, pela cultura e pela sociedade, mulheres bem-sucedidas como as entrevistadas desta reportagem mostram, cada uma à sua maneira, a possibilidade de conscientizar acerca da alfabetização científica e da equidade de gênero nas ciências.

“Eu diria para as mulheres se unirem e criarem suas redes de apoio para esse fortalecimento, porque não é fácil. Aconselharia buscar mentorias, treinamentos de liderança feminina para se tornarem mais estratégicas dentro das organizações, se fortalecendo dentro desse processo para que consigam aprender a lidar com as adversidades. É claro que isso não é suficiente, mas cuidar da saúde mental e buscar de maneira estratégica essas redes de apoio e alianças, faz com elas consigam passar por esses desafios com um pouco mais de tranquilidade”, sugere Carine Roos.


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ciências, gênero, stem

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