Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Quando eu crescer, quero ser professora

Desejo respeito, reconhecimento e valorização para todos nós, de modo que ser professor faça parte dos sonhos das crianças

Foto: iStock
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Há algumas semanas, viralizou na internet uma foto em que crianças de uma escola privada de Belo Horizonte relataram seus sonhos. Os desejos dos pequenos iam dos mais simples aos mais inusitados, como “andar em uma bicicleta de doces”, “ter o poder do Homem-Aranha” e “ser um dinossauro”. Na lista, ainda havia aspirações profissionais, que incluíam ser ginasta, youtuber e engenheiro.

Obviamente, queria ter encontrado na lista de anseios a vontade de ser professor, o que não aconteceu. Convenhamos: dados os baixos salários, as dificuldades, os discursos de ódio, a retirada de direitos e a precarização do fazer docente, é natural que a sala de aula não esteja no horizonte da maioria das crianças.

Comigo foi diferente. Por volta dos 7 ou 8 anos de idade, qualquer pessoa que me observasse com um olhar mais atento saberia que lecionar seria o meu destino. Enquanto as meninas da minha idade se ocupavam com bonecas, panelinhas e papéis de carta, eu ficava completamente fascinada pelos livros e cadernos do Dennis e da Miriam, meus irmãos mais velhos. Ensinar era a minha brincadeira preferida.

Conforme contei no texto de apresentação de Outra educação é possível, meu primeiro livro, ao perceber minha inclinação para a docência, dona Nelita, minha mãe, fez de tudo para me dissuadir do meu sonho. Ela não pensou duas vezes antes de dizer: “Não quero uma professora aqui em casa!”. E não foi por maldade que ela se mostrou tão dura. Minha mãe queria evitar que eu passasse pelas dificuldades que permeiam a trajetória da maioria dos professores do Brasil, dentre elas, a desvalorização e a falta de reconhecimento.

Mas não teve jeito. Segui meu coração, fui em busca do meu sonho. Desde 2008, faço das salas de aula um espaço de celebração da diversidade, de formação de cidadãos críticos e participativos, de reivindicação de outro modelo de sociedade, orientado pela justiça e pela equidade. Afirmar minha paixão pela educação também é uma maneira que encontrei de insurgir contra os abusos, contra o autoritarismo, contra a barbárie e as tentativas incessantes de transformar o direito ao saber em mercadoria. Ter tido excelentes professores ao longo da minha caminhada foi fundamental para buscar praticas pedagógicas alicerçadas por esses princípios.

Na quinta-feira, véspera do dia dos educadores, descobri que o Paco, meu professor na antiga 8.ª série, me dará aulas no doutorado. Abrir a tela do computador e perceber que o terei como mestre depois de 23 anos do nosso primeiro encontro, deixou-me profundamente emocionada, revirada por dentro. O combinado era que cada aluno se apresentasse, falasse da sua pesquisa. Decidi subverter a ordem. Disse que nada disso tinha importância naquele momento. Para mim, importava somente dizer o que o Paco significava em minha vida.

Com a voz embargada e lágrimas nos olhos, contei sobre a crença do Paco de que nós, estudantes de uma escola pública da periferia de Belo Horizonte, éramos capazes de aprender Filosofia e, mais do que isso, de produzir conhecimento, de filosofar. Em nossas aulas, havia espaço para música, literatura, cinema e teatro. Era um verdadeiro caldeirão de saberes. Como relembrei em outra oportunidade, certa vez, ele pediu que fizéssemos uma redação. Ao devolver a minha, com um sorriso luminoso, ele disse: “Luana, isso aqui tá bom demais! Vou mostrar para o Roberto Drummond!”.

Naquele momento, um portal se abriu diante de mim. Além de ficar feliz com a avaliação dele, eu sabia quem era Roberto Drummond, autor do romance Hilda Furacão. Por um instante, tive a certeza de que eu era “diferente”, que a minha habilidade com a escrita seria um passaporte que me levaria a outra vida. Sem tanta dor e tantas humilhações.

Ao não permitir que eu ficasse invisível em sala de aula, assim como acontece com milhões de crianças e jovens negros desse país, Paco mudou a minha existência de forma definitiva. A menina que era chamada de macaca de maneira recorrente e ia para a escola com o uniforme sujo, em razão da falta de água encanada em casa, agora é aluna do doutorado de uma das universidades mais importantes do Brasil. Revê-lo foi um exercício emocionado de olhar para trás e perceber, mais do que nunca, o poder transformador da profissão de docente.

Nesse 15 de outubro, em que a pandemia ainda nos atravessa, em que as telas dos computadores nos esgotam e as ameaças nos assombram, desejo muitas coisas boas aos professores e professoras espalhados pelos quatro cantos do país. Mas não posso deixar de desejar que, enquanto educadores, não percamos de vista nosso poder de impactar a vida dos estudantes profundamente, assim como o Paco impactou a minha.

Desejo respeito, reconhecimento e valorização para todos nós, de modo que ser professor faça parte dos sonhos das crianças.

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