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Ela Luana Génot

Luana Génot: O adiamento do Enem para 2021 se faz urgente

Essa decisão favorece a todos, ao frear ações que cooperam com o desenho de um país que se molda por poucos e para poucos

Quando vejo as calorosas e atuais discussões sobre a realização do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) diante de um cenário de pandemia como o que estamos vivendo, coloco-me no lugar de muitos estudantes. Lembro-me até hoje dos dias que antecederam a prova. Estes momentos me marcaram profundamente e olha que já faz mais de uma década. Estava com coração a mil por hora, um frio na barriga e a cabeça pesada de tanto estudar madrugadas adentro. Com muita insegurança, pensava: “Será que eu estou preparada?”

Na verdade, fiz a prova mais de uma vez. Em 2007, havia tentado Medicina, motivada por ter passado parte da vida dentro de um hospital acompanhando minha mãe que trabalhava em enfermarias e se alternava entre dois empregos. Um em Niterói e outro na Cidade Alta, Zona Norte do Rio. Lembro que conversava horas e horas com doentes, enfermeiras e médicos. Por não ter referências de outras profissões, achei, então, estar decidida: seria pediatra, pois amava crianças. Seguiria os passos e os desejos da minha mãe em ser a primeira da família a cursar a faculdade e daria um passo além do dela, usando aqui suas próprias palavras. Quem sabe até passaria em um concurso público e conseguiria um bom salário. Esta seria a realização do sonho completo.

Na época, fiz um pré-vestibular comunitário na UFRJ, no Campus do Fundão. Pagar um cursinho era impensável e fora do nosso orçamento. Os professores eram brilhantes. Os recursos escassos. Todos os dias, eu ia de Nova Iguaçu, onde estudava, à Ilha do Governador para me preparar para aquela prova que mudaria a minha vida. Era muito cansativo. Às vezes, eu cochilava nas aulas. Resumo da ópera: arrebentei na redação, mas me arrebentei em Biologia. Naquele mesmo ano, a oportunidade de desfilar e ser modelo me desviou da universidade por algum tempo. Dois anos mais tarde, quando decidi voltar a estudar, entendi que minha praia era Comunicação Social, também muito influenciada por um tal jornalista com quem me casei. Descobri que, além dele, o que mexia com o meu coração era a possibilidade de bater papo com as pessoas, de me comunicar e construir narrativas.

Para me preparar nessa nova tentativa, fiz diferente. Fui para um intensivão aos sábados, graças a uma bolsa que ganhei em uma escola particular. Cada um dos estudantes tinha acesso a laboratórios com computadores, um luxo para a época. Fazíamos simulados constantemente. Tínhamos acesso aos jornais para nos inteirarmos das notícias. Percebi que meus colegas daquele momento, mais do que bons alunos, eram pessoas com recursos e estrutura para estudar por anos e anos. Comparar os artifícios e as condições dos dois preparatórios por onde passei era mais do que injusto. E isso num mundo sem pandemia. Imagina agora.

Quando penso na realidade que vivi e nas condições físicas e psíquicas de muitos estudantes de hoje, vejo o quanto é impossível não colocar em pauta que, infelizmente, poucos alunos das escolas públicas têm acesso à internet e a aulas remotas com seus professores para, assim, se prepararem dignamente para a prova. Estamos falando de um cenário de isolamento social instaurado por uma pandemia mundial, em que o Brasil já quase lidera o ranking de mortes. Chega a ser absurdo cogitar a possibilidade de realização do Enem, acirrando ainda mais as desigualdades evidentes sem pandemia e colocando em jogo o futuro pessoal e profissional de boa parte do país. O adiamento do Enem para 2021 — e não por alguns meses, como já foi ventilado — se faz urgente e não deve ser visto como um ato para beneficiar a população pobre e vulnerável, maioria neste país. Essa decisão favorece a todos, ao frear ações que cooperam com o desenho de um país que se molda por poucos e para poucos. E que, se continuar assim, nunca chegará ao seu pleno desenvolvimento e será para sempre da “elite do atraso” como diz Jessé Souza. Este certamente não é o Brasil que queremos. Portanto, #enem2020em2021.