Brasil

Livros didáticos são triturados e transformados em papel higiênico por falhas de gestão no Brasil

País tem maior programa de distribuição de material didático do mundo, mas remanejo de sobras e falta de controle sobre pedidos causam prejuízo inestimável, mostra 'Fantástico'
Livros acumulados em depósito, incluindo exemplares lacrados, são exemplo do descaso com material didático oferecido pelo governo federal Foto: Reprodução TV Globo
Livros acumulados em depósito, incluindo exemplares lacrados, são exemplo do descaso com material didático oferecido pelo governo federal Foto: Reprodução TV Globo

RIO — Toneladas de material didático distribuído pelo Ministério da Educação (MEC) às redes de ensino estaduais e municipais acabam no lixo todos os anos por conta da ineficiência da gestão de sobras. Muitas vezes, livros lacrados e intocados saem de depósitos empoeirados de escolas direto para centros de reciclagem, onde são comprados por R$ 0,30 o quilo, triturados e transformados em outros materiais, como papel higiênico, enquanto outros colégios sofrem com a falta de materiais. As informações foram levantadas pelo "Fantástico", da TV Globo, neste domingo.

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No Brasil, os livros são distribuídos pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), considerado o maior do mundo. Na última compra, planejada em 2018, foram gastos R$ 2 bilhões em 126 milhões de livros, distribuídos, por sua vez, para 140 mil escolas brasileiras e beneficiando 35 milhões de alunos. Algumas escolas, no entanto, não recebem o número necessário, enquanto outras registram sobras que acabam abandonadas ou encaminhadas para a reciclagem pelos próprios colégios.

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Os repasses são definidos de acordo com o número de matrículas realizadas a cada ano informado pelos diretores dos colégios. O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), por sua vez, calcula a compra a ser feita pelo governo. Uma vez entregues aos estados e municípios, os materiais didáticos passam a ser responsabilidade dos gestores locais.

O MEC disponibiliza para as escolas de todo o Brasil uma plataforma digital para gerenciar o remanejo de livros, o Sistema de Controle de Remanejamento e Reserva Técnica (Siscort). Professores ouvidos pela TV Globo, no entanto, afirmam que a ferramenta não funciona. Alguns diretores dizem até desconhecer a possibilidade. Em outros casos, os livros encaminhados são diferentes dos escolhidos pelas coordenações pedagógicas e, por não atenderem às necessidades dos alunos, acabam inutilizados.

A denúncia da reportagem levou a Controladoria Geral da União (CGU) a anunciar uma auditoria geral do FNLD. Auditorias da CGU e do Tribunal de Contas da União (TCU) já haviam identificado o encalhe de livros didáticos no Piauí e no Paraná:

— A gente vai ter que estudar basicamente o processo como um todo, desde o pedido até a aquisição ocorrida aqui em Brasília — afirmou o ministro da CGU, Wagner Rosário, à TV Globo. — (O objetivo é) verificar como que a gente pode mudar o processo, porque pontualmente a gente já tem certeza que o sistema não tá funcionando bem.

Não há uma estimativa nacional sobre o desperdício de livros didáticos, mas a secretária de Controle Externo do TCU, Vanessa Lopes, não descarta que o fenômeno aconteça em todo o Brasil:

— Há um risco muito grande de que esses problemas de sistema e esses problemas de controle gerencial se repliquem no país inteiro.

Descarte ilegal

O MEC, por sua vez, anunciou uma campanha para conscientizar as redes sobre o uso adequado do livro didático. Segundo Karine Silva dos Santos, diretora de ações educacionais do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a pasta remanejou 48% a mais de livros neste ano do que em 2018. Ela pontua ainda que, se há descarte de livros dentro da validade, as escolas estão ferindo a lei.

— Todo descarte feito de livros válidos é contrário à legislação que preconiza o Programa Nacional do Livro Didático. E é preciso, de fato, apurar esse descarte — afirma Karine.

No Rio Grande do Sul, o "Fantástico" encontrou escolas em diferentes municípios que sofrem com o fenômeno. Enquanto algumas instituições têm sobras lacradas, outras não têm livros suficientes. Alguns alunos precisam sentar-se em duplas para que todos acompanhem o conteúdo, mas o aprendizado é prejudicado, garantem os professores.

Em São Lourenço do Sul (RS), uma escola que não conta com aulas de inglês na base curricular recebeu do governo uma quantidade expressiva de livros didáticos para classes da língua estrangeira. O problema recorrente chamou atenção do governo gaúcho, que autorizou a coleta de livros fora da validade guardados em escolas por ONGs.

O secretário de Educação do Rio Grande do Sul, Faisal Karam, disse à TV Globo que a chave do problema está na evasão escolar, que não é levada em conta pelo Ministério da Educação. Ele estima que só no ensino médio da rede gaúcha o desperdício ultrapasse a casa de um milhão de livros.

— Se faz o censo em abril de cada ano, onde ele aponta 900 mil alunos matriculados e quatro, cinco meses depois, efetivamente tem menos cem mil alunos (na rede pública) — diz Karam.