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Por Juracilda Veiga e Maria Cecilia de Sá Porto


Territorio Indigena Xingu, Mato Grosso — Foto: Claudio Belli/Valor
Territorio Indigena Xingu, Mato Grosso — Foto: Claudio Belli/Valor

Iniciada em janeiro, a Década Internacional das Línguas Indígenas, instituída pela Unesco, está chegando ao fim do seu primeiro ano, depois de definir o caminho de projetos e ações a ser percorrido até 2032. A brasileira Altaci Rubim, da etnia kokama, foi eleita representante da América Latina e Caribe no grupo de trabalho (GT) mundial. Doutora em linguística e especialista em educação indígena, Altaci é professora no Instituto de Letras da Universidade de Brasília (UnB) e uma das coordenadoras do Movimento de Vitalização da Língua Kokama. Ela define o momento atual como “um grande chamado para construirmos um novo tempo para as línguas indígenas brasileiras: fortalecendo nosso espírito, nossa ancestralidade, nosso território, nossa língua”.

A missão da Década é salvar da extinção as línguas indígenas, que são hoje cerca de 4 mil em todo o planeta. Muitas delas são faladas por poucas pessoas, e, de acordo com relatório da Unesco, a cada duas semanas, uma delas desaparece para sempre. No Brasil, há pelo menos 150 línguas indígenas, pertencentes a 18 famílias derivadas de dois troncos linguísticos já conhecidos, o tupi e o macro-jê, além de outras 22 derivadas de troncos ainda não definidos.

Muitas destas línguas se encontram, no momento, em avançado processo de extinção, o que significa que poucos falantes ainda dominam o idioma, quase sempre pessoas idosas que, ao morrerem, levarão consigo suas línguas ancestrais. A covid-19 teve um impacto destruidor sobre as línguas indígenas no Brasil, pois muitos dos que faleceram na pandemia eram falantes destas línguas “moribundas”.

A criação da Década se fundamentou nos princípios do artigo 13 da Declaração dos Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas (ONU) quanto à revitalização, ao uso, desenvolvimento e à transmissão às futuras gerações de suas línguas, sua tradição oral, seus sistemas de escrita e literatura. Segundo a ONU, esses direitos devem ser garantidos e postos em prática pelos estados onde os povos indígenas vivem, e devem incluir sistemas educacionais e meios de comunicação em seus próprios idiomas nativos.

No Brasil, a Década mobilizou um contingente de milhares de adeptos com um perfil multiétnico e socialmente diverso, composto por lideranças indígenas aldeadas e urbanas, além de estudantes e professores indígenas de instituições acadêmicas de todas as regiões do país, incluindo entidades de pesquisa e movimentos políticos dedicados às causas dos povos originários.

Eles apelidaram a Década de “Levante das Línguas Indígenas”, por estar inserida dentro de uma mobilização política em torno da percepção de que algo precioso está na iminência de se perder: suas línguas ancestrais, vistas não apenas como conjuntos de léxicos, sintaxes e sonoridades familiares e específicas, mas como registros de memória e de identidade, de histórias de luta e de modos de ver e estar no mundo. Ou seja, a língua, o corpo, a terra e a cultura são uma coisa só.

Aldeia Ipavu, do povo Kamaiura — Foto: Claudio Belli/Valor
Aldeia Ipavu, do povo Kamaiura — Foto: Claudio Belli/Valor

“Nada para nós sem nós”

A perda da língua, portanto, é mais do que parece. É a perda de si mesmo, vivida por cada membro de uma coletividade humana particular e insubstituível. O Levante das Línguas Indígenas organiza-se, então, como um grande movimento político. Desde os primeiros debates, em 2019, na sede das Nações Unidas, e no ano seguinte na Cidade do México, quando os princípios-chave da Década foram definidos, os indígenas participantes assumiram o protagonismo do grande evento, tanto no que se refere à organização quanto à definição das temáticas e estratégias de enfrentamento, que resultaram no lema “Nada para nós sem nós”.

O foco do “Levante” está na resposta dos povos indígenas a um chamado geral, percebido como um momento histórico, em que pretendem estancar e reverter o processo de “repressão linguística”, o silenciamento imposto aos povos originários pelas sociedades dominantes que implica a perda cotidiana de espaços sociais e institucionais de fala e de transmissão de suas línguas às novas gerações. No Brasil, a violência contra as línguas indígenas — e contra os direitos dos seus falantes em geral — teve uma escalada vertiginosa a partir de 2018, com o aparelhamento da Funai e a invasão maciça de garimpeiros e madeireiros ilegais em terras indígenas, mesmo as já demarcadas.

Políticas linguísticas

Os integrantes da Década no Brasil organizam-se a partir de dois grupos de trabalho, o GT das Línguas Indígenas e o GT do Português Indígena, e de uma Rede de Pesquisadores Indígenas de Línguas Ancestrais que realiza os estudos de apoio em cada área, com representantes das cinco regiões do Brasil. A ideia é aproveitar estes nove anos que têm à frente para elaborar algo sólido, amplo e duradouro a partir de seus debates, suas pesquisas e ações.

Os membros dos GTs estão empenhados na articulação de um Instituto Indígena de Políticas Linguísticas, que pretende deixar o caminho já definido e organizado para as ações de longo prazo. As determinações desta política linguística estão sendo definidas com base em um mapeamento e diagnóstico das línguas mais vulneráveis em cada região do país, suas necessidades específicas e estratégias de enfrentamento mais adequadas.

Dentro da perspectiva do “nada para nós sem nós”, as estruturas políticas e de comunicação já criadas e gerenciadas pelos povos indígenas estão no centro das decisões e do planejamento. Entidades nacionais e regionais como a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), redes de comunicação como a Mídia Índia, a Rede Wayuri e a Rádio Yandé, dirigem e veiculam as atividades com o apoio de entidades não indígenas parceiras, como a Associação Brasileira de Linguística (Abralin), o Museu Paraense Emílio Goeldi e a Kamuri, além de universidades públicas e centros de pesquisa que ajudam na produção de materiais e de eventos, presenciais e online.

Apesar da soma de iniciativas de professores, ativistas e pesquisadores indígenas, de instituições públicas e organizações parceiras, que conquistou avanços importantes na luta pela preservação e pelo respeito às línguas indígenas no Brasil, há uma percepção geral de que somente a aprovação de políticas linguísticas amplas e incorporadas à legislação brasileira vai poder reverter, em longo prazo, as arbitrariedades impostas aos falantes dessas línguas, e a consequente perda de oportunidades e espaços necessários para sua reprodução social e cultural.

Estas arbitrariedades são ilustradas em uma tese de doutorado, defendida há poucos meses na USP pela advogada Maria Teresa de Mendonça Casadei, que constatou que o grau de acessibilidade linguística pelos indígenas no Brasil é quase inexistente. Não há lei ou ato normativo que garanta essa acessibilidade, a não ser em caso de processos criminais, quando a legislação prevê acompanhamento de tradutores e intérpretes. Mas, mesmo nestes casos, o indígena não tem o direito de se comunicar e ter acesso aos processos em sua própria língua.

A autora da tese avalia a situação de inacessibilidade linguística dos indígenas brasileiros como uma violação aos seus direitos humanos fundamentais, por atingir a liberdade do sujeito, causando segregação e discriminação. No seu estudo, ela indica a ausência de ferramentas de tradução e interpretação em postos de saúde, instituições financeiras, em grande parte das escolas, universidades e agências públicas em geral e também ausência de versões nas línguas indígenas de textos de interesse coletivo, como os que se referem à legislação e ao exercício da cidadania. Sem poder entender nem serem entendidos, muitos dos indígenas são forçados ao isolamento no próprio território nacional em que suas terras ancestrais estão inseridas.

Yanomami — Foto: Otavio Cury
Yanomami — Foto: Otavio Cury

Educação, revitalização e documentação

Mas se por um lado a discriminação e o risco de extinção de línguas indígenas no Brasil são um problema e uma ameaça real que pairam sobre os povos originários, por outro há toda uma tradição de resistência, conquistas, revitalização e até de recuperação de línguas extintas, como é o caso do esforço de reconstrução da língua patxohã pelo povo pataxó, da Bahia, que foi buscar em arquivos e outros registros antigos as palavras e os significados de que nenhum membro da comunidade se lembrava mais.

Outro exemplo é o Programa de Revitalização de Línguas Indígenas coordenado pela ONG Kamuri em parceria com a Unicamp e a Funai, em resposta aos pedidos de professores das etnias guarani-nhandewa e kaingang. O programa, iniciado em 2013, foi estendido também aos krenak e terena, todos no estado de São Paulo. O trabalho tem sido feito periodicamente, na forma de oficinas, diretamente nas aldeias, envolvendo os professores das escolas indígenas com a assessoria de linguistas e antropólogos. Além da retomada e revitalização das línguas, os encontros resultaram em dicionários, gramáticas pedagógicas, livros de narrativas míticas e etnografias, compartilhados com professores de outras etnias, interessados em produzir seus próprios materiais a partir das experiências bem-sucedidas das escolas indígenas de São Paulo.

Em outro tipo de trabalho, o Encontro de Leitura e Escrita em Sociedades Indígenas (ELESI) acumula 27 anos de experiências de revitalização de línguas nativas em várias regiões do país. Também coordenado pela Kamuri, em parceria com universidades públicas, o ELESI realiza encontros com professores e lideranças indígenas de várias etnias, que compartilham problemas urgentes relacionados à prática escolar nas aldeias e aos fatos e processos relacionados ao impacto da leitura e da escrita na vida dos povos indígenas e suas línguas. O próximo encontro (XII ELESI) vai acontecer em 2023 na Universidade Federal da Bahia.

Com um propósito semelhante, o Seminário Internacional Viva Língua Viva também traz para o centro das discussões, com pesquisadores indígenas e não indígenas, as formas de documentação e revitalização das línguas indígenas, como estratégias de preservação e recuperação daquelas que já passam pelo processo de enfraquecimento e de perdas significativas. Promovido pela Associação Brasileira de Linguística (Abralin), o seminário é organizado neste mês de novembro pela Universidade Federal do Pará e pelo Museu Paraense Emilio Goeldi, que também atua como um centro de documentação permanente, em Belém. As discussões também vão abordar o envolvimento dos membros das comunidades indígenas nas práticas de revitalização linguística, a produção de material escolar de apoio à valorização das línguas e os prejuízos enfrentados pelas sociedades indígenas com a perda dos idiomas nativos.

Também o Museu do Índio, localizado no Rio de Janeiro, tem um acervo de documentação textual e audiovisual de várias origens étnicas, inclusive com materiais antigos, de mais de 200 anos. Para os coordenadores do acervo, a documentação deve ser um registro sistemático que proporciona exemplos do uso da língua “em seus contextos culturais apropriados”. Produzidos a partir de vários recursos tecnológicos, os acervos digitais multimídias estão à disposição das comunidades indígenas e de pesquisadores em geral.

Uma plataforma digital, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp também se propõe a construir e guardar corpora linguísticos indígenas. Batizada de Tycho Brache — uma alusão ao astrônomo dinamarquês do século XVI, cujas anotações detalhadas das constelações inspiram os apontamentos minuciosos das línguas pesquisadas —, a plataforma oferece, por enquanto, narrativas, traduções e registros sobre a gramática somente da língua kadiwéu.

O kadiwéu tem cerca de mil falantes, que moram em Mato Grosso do Sul. A língua é a única da família guaikuru, de tronco ainda desconhecido. A plataforma foi elaborada em parceria com professores de ciências da computação e se propõe a acomodar no futuro corpora de outros idiomas indígenas. A ideia é que a plataforma ofereça subsídios para o ensino bilíngue e para preservação de materiais que possibilitem o conhecimento e futuras pesquisas de línguas em perigo de extinção.

Cooficialização

Enquanto isso, a deputada federal Joenia Wapichana (Rede-RR) conseguiu aprovar em julho deste ano um projeto de lei que torna os idiomas indígenas línguas cooficiais em todos os municípios brasileiros que têm comunidades indígenas. O projeto aguarda a aprovação do Senado. Em sua proposição, a deputada — que durante todo o seu mandato foi a única representante indígena no Congresso Nacional — defendeu a tese de que a cooficialização das línguas indígenas proporciona a oportunidade de manifestação oral e escrita destas línguas, garantindo assim que não se percam “os conhecimentos culturais, ecológicos, elementos sobre a pré-história humana, informações sobre as estruturas e funções das línguas de modo geral”.

Ela buscou a fundamentação destas premissas nos textos que garantem os direitos linguísticos dos povos indígenas na Constituição brasileira, na convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e na declaração universal dos direitos dos povos indígenas da ONU. Atualmente, dez municípios brasileiros já têm 13 línguas indígenas cooficiais. As três primeiras a serem incorporadas foram o baniwa, o tukano e o nheengatu, em São Gabriel da Cachoeira (AM), em 2002. Esse município amazonense ganhou sua quarta língua cooficial indígena, o yanomami, em 2017. Os outros municípios ficam nos estados do Pará, de Roraima, do Maranhão, Mato Grosso do Sul, Tocantins e Ceará.

A conquista mais importante, no âmbito da legislação brasileira, para a preservação das línguas e das culturas indígenas em geral, foi assegurada pela Constituição de 1988, que garante aos povos indígenas o direito à educação diferenciada, específica e bilíngue. Com isso, os povos indígenas conseguiram aprovar uma série de garantias que lhes atribui a prerrogativa de conceberem currículos interculturais baseados em seus conhecimentos tradicionais, suas formas de aprendizagem e o uso da língua indígena como primeira língua.

Essas conquistas, porém, em várias partes do país, estão mais próximas do ideal do que do real. Com o desmantelamento da Funai na atual gestão federal, muitos programas foram desativados, embora alguns tenham conseguido se manter, sobretudo quanto à formação de professores indígenas e à ampliação da produção de material didático por eles próprios. Dentre os principais problemas para a realização plena da educação indígena concebida pela Constituição de 1988, destacam-se a recorrente falta de recursos, de apoio técnico e também a resistência de várias das administrações educacionais estaduais, cujas burocracias e práticas pouco flexíveis criam obstáculos difíceis de transpor.

Com a promessa do novo governo federal, que toma posse em janeiro de 2023, de criação do Ministério dos Povos Originários, a expectativa é de que a Década Internacional das Línguas Indígenas e os muitos projetos que trabalham com a mesma causa possam realizar a sua missão no país, e tornar finalmente possível o resgate das dívidas históricas que a sociedade brasileira ainda mantém com suas populações nativas.

Juracilda Veiga é antropóloga e coordenadora-geral da KAMURI Indigenismo
Maria Cecilia de Sá Porto é antropóloga e coordenadora de programas da KAMURI Indigenismo

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