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Lição de casa ao governo: educação e inclusão são indissociáveis

Por Mara Gabrilli
Atualização:
Mara Gabrili. FOTO GABRIELA BILO/ESTADÃO  

Se tem algo que a pandemia já nos ensinou é que as desigualdades de um país, muitas vezes, podem ser mais nocivas do que um vírus. Por meses, temos visto que os brasileiros mais vulneráveis são também os mais afetados, esquecidos e negligenciados. Mas quando o assunto é educação, o recado é de abandono.

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Nessa área, o Brasil escancarou injustiças, com alunos sem conseguir assistir a aulas em casa e vestibulandos sendo colocados à margem de oportunidades por não terem as mesmas condições para estudar fora da escola. Um paradoxo contemporâneo muito perverso, porque progredimos em termos de tecnologia, mas continuamos atrasados no acesso à educação mais básica.

E esse cenário, por si só, já é lastimável. Contudo, quando falamos de alunos com deficiência, o retrato é ainda mais alarmante, porque não falamos de estagnação, mas de retrocessos.

A Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, criada pelo governo de Jair Bolsonaro por meio do Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, tem sido objeto de críticas e polêmicas. E com razão.

Logo de cara, essa nova política, construída sem o diálogo necessário e sem a transparência devida, já afirma que é a deficiência da criança que a impede de estar na escola comum, transferindo aos pais o peso da ineficiência do Estado de ofertar uma educação de qualidade para todos.

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O maior dano do decreto está na possibilidade de gestores de escolas regulares, especialmente as particulares, continuarem a negar o acesso e a inclusão escolar de pessoas com deficiência, sob alegação de que o melhor para elas é a escola especial.

O texto também contradiz nossa própria legislação em vigor, como a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei 13.1446/2015), relatada por mim enquanto deputada federal, que determina a oferta de sistemas inclusivos para todos e em todos os níveis de ensino. Além disso, é inconstitucional, pois vai contra disposições da Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificada pelo Brasil com status de emenda à Constituição.

Retornamos ao ultrapassado modelo médico, ao colocar claramente entre suas diretrizes e ações que cada aluno com deficiência será avaliado e poderá ser buscado um modelo alternativo à escola comum quando ele não se adequar ou não tiver condições. Voltamos a tempos em que as pessoas com deficiência eram avaliadas como máquinas com defeito que deveriam ser corrigidas para serem integradas.

A Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) levanta uma questão importantíssima nesse sentido. Para ela, já não se trata mais de debater os benefícios da educação inclusiva. Essa discussão seria o equivalente a debater os benefícios da abolição da escravatura ou mesmo do apartheid.

Costumo dar o exemplo do Stephen Hawking, que era um cientista brilhante que inspirou seus pares na universidade a criarem dispositivos e tecnologias que melhoraram todo o ambiente acadêmico. Imagine o quanto o mundo perderia se seguíssemos esse conceito retrógrado de que, devido à gravidade da sua deficiência, não seria permitido que Hawking continuasse estudando?

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Ao governo, faltou fazer a lição de casa na construção do decreto. É necessário compreender que a política de educação inclusiva deveria ser voltada para derrubar as barreiras físicas, comunicacionais e pedagógicas existentes para que a escola seja um espaço acolhedor e de conhecimento e aprendizagem para todos, sem exceção. Não podemos furtar as pessoas com deficiência de conviverem com sua geração nestes espaços comuns, assim como não podemos furtar as pessoas sem deficiência de conviverem, desde a mais tenra idade, com a diversidade humana, com os potenciais e com as características que cada indivíduo tem. Esse é o colorido da vida real, a sua riqueza, e só pode trazer benefícios a todos.

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Para sustar os efeitos do decreto, apresentei um PDL em coautoria com o senador Fabiano Contarato (Rede/ES). Nosso papel, no entanto, será bem maior que este, porque, diferentemente do governo, queremos ouvir toda a sociedade. O tema é de extrema relevância e não podemos permitir que ele seja inserido no atual cenário de polarização política, marcado por sectarismos e pouca tolerância.

Não por acaso, em uma espécie de presente pelo Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, que celebramos neste 3 de dezembro, o Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, concedeu uma liminar que suspendeu os efeitos do decreto. Essa é uma decisão provisória, mas que esperamos ser confirmada pelo Plenário do STF, na semana que vem. Afinal, a inclusão educacional não é uma opção a ser escolhida ou um fim em si mesma, mas sim um processo contínuo. Aliás, é um dever do estado brasileiro afastar qualquer ideia de vivência segregada das pessoas com deficiência, como bem apontou o ministro Toffoli.

É evidente que a escola que almejamos, feita para todos, ainda enfrentará muitos desafios para se tornar realidade -- inclusive para as pessoas que não têm deficiência, já que a educação como um todo no Brasil necessita de muitos investimentos --, mas não podemos alcançar mudanças positivas em cima de retrocessos.

*Mara Gabrilli, senadora (PSDB-SP), publicitária, psicóloga, foi secretária da Pessoa com Deficiência da capital paulista, vereadora por São Paulo e deputada federal por dois mandatos

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