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'Li 200 textos por dia e não recebi': corretores do Enem denunciam atrasos

Enem: corretores dizem que ainda não receberam pagamentos - 8.nov.2022 - Kevin David/A7 Press/Estadão Conteúdo
Enem: corretores dizem que ainda não receberam pagamentos Imagem: 8.nov.2022 - Kevin David/A7 Press/Estadão Conteúdo

Diego Albuquerque

Colaboração para o UOL

04/05/2023 17h15Atualizada em 04/05/2023 18h59

Em meio à enorme operação para realizar o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), uma das tarefas fundamentais é a correção das redações, que mobiliza cerca de 3 mil professores para dar conta de um universo de 2,3 milhões de estudantes.

A edição de 2022 já foi concluída e as notas, entregues, mas professores dizem que há atraso no pagamento e reclamam das condições de trabalho, que incluem corrigir centenas de redações por dia.

O pagamento, segundo eles, deveria ser liberado até março — mas ainda não ocorreu.

Não são só os atrasos: como são as correções?

O UOL teve acesso a um grupo com cerca de 200 professores que lutam para receber pelo trabalho prestado entre dezembro e janeiro. Segundo eles, nenhum dos 3 mil profissionais foi pago até o momento.

Os corretores afirmam que recebem R$ 3 para cada redação corrigida e que o valor não tem reajuste há anos.

Profissionais acumulam um número maior de correções para ter retornos financeiros mais significativos.

O processo de correção começou oficialmente no dia 12 de dezembro e, segundo os profissionais, até o dia 14 de janeiro eles chegaram a receber redações.

Professores relatam medo de denunciar

Ao UOL, professores relataram ter medo de falar sobre os atrasos e as condições de trabalho, devido a um termo de confidencialidade exigido no momento da contratação para corrigir as redações.

"A confidencialidade do processo está nas regras do edital e muitos de nós temos medo de sofrer alguma represália, como não ser mais chamados ou até não receber o pagamento", disse um corretor da Bahia, que pediu para não se identificado.

Enem - André Porto/UOL - André Porto/UOL
Prova é aplicada para milhares de estudantes em todo o país
Imagem: André Porto/UOL

"Corrijo desde 2018 e o valor sempre foi esse. Muitos recrutadores fazem parte do processo há mais de 10 anos e afirmam que não houve reajuste. O pagamento permanece o mesmo", afirmou uma corretora do Ceará que também não quis se identificar.

Devido ao grande volume de provas, há grandes montantes a serem recebidos.

"Corrigi mais de 3.500 redações e acredito que o bruto que tenho a receber chegue a R$ 10 mil", afirmou um corretor da Bahia.

O excesso causa cansaço, dores nas costas, visão cansada, enfim, vários problemas físicos e estresse. Deixamos de estar com a família, já que trabalhamos o dia inteiro no período de férias. Ao final, estávamos esgotados e loucos para que acabasse. Com certeza, a qualidade da correção diminui, pois temos de cumprir a meta. Ficamos extremamente desmotivados. Não participarei novamente
Professora de Minas Gerais, que pediu para não ser identificada

200 provas por dia

Beatriz Gama Rodrigues, do Piauí, é professora universitária há mais de 30 anos. Doutora em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem, ela se inscreveu para as correções após ver uma publicação da FGV (Fundação Getulio Vargas) em redes sociais.

A FGV é a empresa contratada pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais) para a aplicação e correção dos testes.

"Participei de um processo seletivo, que incluiu um curso que durou aproximadamente dois meses. Durante o curso, houve várias avaliações e, ao final, um teste final com correção de 50 redações. Fui aprovada em todas as etapas", contou.

"Hoje, diante dos problemas que estamos enfrentando, percebo que não deixaram claro no termo de adesão a data do pagamento. Durante o curso, nos informaram oralmente que o pagamento deveria acontecer em março ou abril", disse Beatriz, que também foi uma que sofreu com o alto número de correções que precisavam ser realizadas.

Cheguei a corrigir mais de 200 textos por dia, durante o recesso do final de ano. Para fazer o trabalho corretamente, cheguei a trabalhar mais de 12 horas por dia, inclusive à noite. Parei nos dias 24, 25, 31 de dezembro, e 1.º de janeiro. Tenho mais de R$ 6.000 para receber
Beatriz Gama Rodrigues

A professora diz que tentou entrar em contato com a FGV, assim como muitos outros corretores, mas não houve retorno. "A resposta, quando consigo uma, é que não há previsão de pagamento."

Isso levou um grupo de corretores, do qual Beatriz participa, a buscar aconselhamento jurídico.

"O fato de a instituição de ensino ter estabelecido com os professores obrigações relativas à confidencialidade sobre as provas não impede que eles cobrem os valores não pagos ou discutam o tema com a imprensa", afirmou Henrique Soares Melo, advogado especialista em direito do trabalho.

"E uma vez pactuada a prestação de serviços, caso esses profissionais não recebam os valores acordados, poderão ingressar com uma ação judicial de cobrança."

FGV e Inep

A FGV afirma que não recebeu os valores que deveriam ser repassados para realizar o pagamento dos professores.

A FGV, em função de pendências provenientes da gestão do Enem de 2022, ainda da administração passada, até a presente data não recebeu os valores referentes à correção das redações do exame, o que a nova direção do Inep está empenhada em solucionar, permitindo, com isto, que a FGV conclua, no menor prazo possível, o pagamento dos revisores que atuaram nas referidas correções
FGV, em nota

A fundação também citou que a "troca de governos causou pequeno, mas incontornável, reflexo no cronograma de conclusão do processamento do exame".

Já o Inep afirmou, por meio de nota, que "a seleção e o pagamento da equipe de correções do Enem fazem parte dos serviços contratados administrativamente pelo Inep" e não mencionou problemas de repasses.

A responsabilidade pela remuneração dos corretores das redações do Enem 2022 é da Fundação Getulio Vargas (FGV), instituição que faz parte do consórcio aplicador da edição
Inep, por meio de nota

O Inep afirmou, ainda, que entrou em contato com a FGV, para "obter esclarecimentos sobre o serviço, assim como a respeito da previsão de pagamentos dos profissionais contratados" e aguarda a manifestação.

O instituto também afirma que "não possui gerência sobre os valores executados pela aplicadora, de modo que a remuneração dos colaboradores para execução do serviço é definida pela instituição contratada".

O UOL também tentou contato com representantes das gestões passadas do Inep e do MEC (Ministério da Educação), mas não obteve retorno.