Lei do celular: escolas relatam primeiras impressões após reorganização
Com a restrição do uso de dispositivos eletrônicos em sala de aula, escolas brasileiras buscam mostrar benefícios da tecnologia quando aplicada com intenção pedagógica
por Bruna Ribeiro 26 de março de 2025
Imagine duas cenas na escola: em uma, estudantes se distraem com as redes sociais do celular, dificultando o andamento da aula; na outra, utilizam o dispositivo para desenvolver um guia de aves da Caatinga. Ambas demonstram como a tecnologia pode influenciar o aprendizado.
Diante desse cenário, escolas brasileiras adotaram, neste início de ano letivo, a Lei 15.100, que regulamenta o uso de dispositivos eletrônicos na educação básica. Nesta segunda-feira, 24 de março, o CNE (Conselho Nacional de Educação), órgão de participação social do MEC (Ministério da Educação), publicou a Resolução nº 2/2025, que detalha as diretrizes para a implementação da lei do celular.
Inscreva-se no canal do Porvir no WhatsApp para receber nossas novidades
Elas estabelecem que o uso de dispositivos digitais nas escolas é permitido exclusivamente para fins educacionais, sob mediação dos professores e de acordo com a etapa de ensino. Há exceções em casos de pessoas que necessitem de apoio do aparelho para acessibilidade tecnológica ou por alguma necessidade de saúde. O uso para outros fins não é permitido, inclusive durante os intervalos.
Para que o uso da tecnologia na educação seja realmente transformador, é necessário ir além do simples controle do uso dos celulares, como explica Israel Batista, relator das diretrizes do CNE, em entrevista recente ao Porvir. As escolas ainda enfrentam o desafio de desenvolver práticas pedagógicas com tecnologia que vão além do uso básico de dispositivos móveis.
“A educação tecnológica deve ir muito além do uso de celulares ou de qualquer dispositivo específico. Precisamos garantir que os estudantes desenvolvam um pensamento crítico sobre o mundo digital, o que inclui ensinar sobre segurança digital, ética online, combate à desinformação, criatividade midiática e muitos outros temas correlatos”, destaca.”
Novas regras e potencial pedagógico
Com a nova legislação, o desafio agora é equilibrar os efeitos negativos dos celulares com seu potencial pedagógico.
“A tecnologia deve ser vista como meio para potencializar o aprendizado”, afirma o professor de biologia João Paulo dos Santos Silva, vencedor do Prêmio Professor Porvir 2024 na Categoria Ensino Médio. “A regulamentação é uma oportunidade para orientar os estudantes sobre o uso responsável e produtivo dos celulares, aliado ao processo educativo”, acredita.

Seu projeto “As aves que aqui gorjeiam não gorjeiam como lá”, realizado na ECIT (Escola Cidadã Integral Técnica) Jornalista José Itamar da Rocha Cândido, em Cuité (PB), traz o celular como ferramenta de apoio para a educação ambiental. Em 2024, seus estudantes criaram guias de identificação da biodiversidade local, em especial dos pássaros da Caatinga, com registros feitos pelo aparelho.
Com a chegada da lei, o acesso ao celular na escola paraibana só é permitido quando solicitado pelo professor, decisão que passou a ser bem aceita pelos estudantes. “Vejo na restrição uma maneira de orientar o manuseio dos aparelhos. É uma necessidade essencial para promover a inclusão digital e a conscientização sobre tecnologia. Não é o fim, mas uma maneira de potencializar o aprendizado.”
Celular como aliado no ensino de matemática e computação
Willmara Marques Monteiro, da Escola Municipal Paulo Freire, em Petrolina (PE), compartilha a opinião. Também vencedora do Prêmio Professor Porvir na Categoria Tecnologia, com o projeto “Hackers da Caatinga”, a proposta da professora de computação, matemática, robótica e games é reforçar o aprendizado matemático dos estudantes do 8º ano e o senso de pertencimento à região.
No Hackers da Caatinga, a tecnologia é utilizada como ferramenta para desenvolver o pensamento matemático e computacional dos alunos. “Nesse contexto, o celular pode ser um grande aliado quando usado de forma planejada e com propósito pedagógico”, pontua.

Para Willmara, a lei não deve ser vista como uma barreira, mas sim como uma oportunidade de repensar a tecnologia na educação. “Sabemos que o uso indiscriminado dos celulares pode ser uma grande distração para os alunos, prejudicando a concentração e o engajamento nas aulas. A lei garante um ambiente mais focado no aprendizado”, reforça.
Responsabilidade dentro e fora da escola
De acordo com Ellen Regina Barbosa, designer de experiências de aprendizagem em metodologias ativas e aprendizagem criativa, mais do que pensar nos desafios, é preciso refletir sobre a responsabilidade de toda a sociedade em relação ao desenvolvimento saudável das crianças e dos adolescentes.
“O acesso à tecnologia começa em casa, onde as famílias têm a responsabilidade de regular e mediar o uso do celular pelas crianças”, explica Ellen, que também é especialista em práticas inovadoras na educação infantil e atua no Laboratório de Aprendizagem, Tecnologias, Inovação e Criatividade da UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul).
Já a escola, segundo a especialista, deve criar um ambiente que favoreça a aprendizagem e promover o uso consciente das tecnologias. “No caso das redes públicas, as secretarias de educação precisam garantir infraestrutura adequada e formação para educadores. Aos governantes, cabe não apenas criar leis, mas também assegurar a presença de profissionais essenciais, como psicólogos e educadores da educação especial, trabalhando de forma integrada para enfrentar esse desafio que é de toda a sociedade”, sugere.
Materiais de referência |
---|
O MEC (Ministério da Educação) tem lançado guias de apoio voltados às redes, escolas e famílias. Produzidos com a consultoria técnica do Porvir, os documentos apresentam diretrizes e estratégias para o uso crítico e seguro da tecnologia, além de reforçar a importância da supervisão e do diálogo sobre bons hábitos digitais também fora do ambiente escolar. Clique para baixar os guias: |
Impacto na dinâmica escolar
De acordo com o MEC, o objetivo da lei do celular “é proteger as crianças, promover a saúde mental, física e emocional, além de contribuir para a melhora da aprendizagem e do desenvolvimento socioemocional”. As escolas ouvidas pela reportagem têm observado esses benefícios na prática. Simone Gomes Pereira, diretora da Balão Vermelho, escola particular em Belo Horizonte (MG) que atua com todos os segmentos da educação básica, percebeu a rápida adaptação dos alunos. “Todos se encaixaram sem necessidade de reforço das normas”, conta.
Contudo, por lá, o celular não é permitido em nenhuma situação. “Em caso de pesquisa, temos os computadores de sala de aula para estudos. Acreditamos que não dá para flexibilizar quando é favorável para a escola e depois proibir novamente. Isso confunde o estudante”, comenta Simone.
Em outra instituição particular, desta vez no Rio de Janeiro (RJ), os professores do Elite, rede do Grupo Salta, também relataram mais prazer em lecionar sem a concorrência dos celulares. Na escola carioca, que também conta com turmas da educação infantil ao ensino médio, os alunos podem manter os aparelhos guardados nas mochilas. “Investimos fortemente na conscientização dos alunos sobre os benefícios de reduzir o uso dos dispositivos tecnológicos durante as aulas e os intervalos”, explica a diretora de ensino, Deborah Anastácio.
Os impactos são visíveis também nos momentos de descanso: “Os alunos recuperaram brincadeiras antigas e interagem mais”, destaca Deborah. Nessas interações, as escolas observaram também o aumento de conflitos: se antes ocorriam virtualmente, agora ocorrem presencialmente, permitindo maior mediação escolar e promovendo o desenvolvimento de habilidades socioemocionais, a partir de um convívio real com os colegas.
Além disso, surgiram desafios práticos, como a busca por alternativas para pagamentos na cantina e chamadas de transporte, que antes eram facilmente resolvidos pelo celular.
Leia também
O que significa, na prática, uso pedagógico do celular?
12 sugestões pedagógicas para usar celulares e computadores em sala de aula
O que recomendam os guias do MEC sobre a restrição do uso de celular na escola
Formação e apoio
A regulamentação da lei do celular também trouxe desafios para os professores. Ellen Regina Barbosa acredita que a identificação de sofrimento psíquico por conta da abstinência do uso do aparelho não deve recair sobre os educadores, já sobrecarregados. Ela defende políticas públicas para garantir profissionais especializados nas escolas.
Segundo a especialista, o governo deveria garantir profissionais de apoio socioemocional nas escolas públicas, sem recorrer à terceirização, que, segundo ela, tem mostrado resultados insatisfatórios. Contudo, a Lei 13.935, que foi aprovada em 2019 e torna obrigatória a presença de psicólogos e assistentes sociais nas equipes multiprofissionais das escolas, é pouco respeitada, conforme mostrou recente reportagem do Porvir.
Já nas escolas particulares, como as do Grupo Salta Educação, há mais estrutura para capacitação e suporte. “Nossas unidades passaram por jornadas pedagógicas (sessões formativas) sobre o tema e contam com um setor psicossocial que apoia gestores na identificação e manejo dessas questões”, destacou Deborah.
Monitoramento e avaliação
A avaliação da lei do celular nas escolas particulares inclui indicadores como participação nas aulas, enquetes com funcionários e estudantes, feiras de ciência e atividades extracurriculares, além do comportamento nos intervalos.
Nas redes públicas, o cenário é diferente. O professor João Paulo Silva conta que não recebeu formação sobre a lei nem conta com um profissional fixo para apoio socioemocional. “Temos uma psicóloga e uma assistente social, mas elas atendem várias escolas e seguimos a agenda do núcleo”, explicou. “A regulamentação deve ser encarada como uma oportunidade para redefinir a relação dos estudantes com a tecnologia”, reforça.
As sanções para descumprimento das regras variam de advertência verbal ao registro de ocorrências. Segundo Deborah Anastácio, os dados indicam resultados positivos, e as diretrizes seguirão sendo aplicadas.
Na rede pública, Willmara Monteiro observa que a concentração dos alunos melhorou e as interações sociais se fortaleceram. “A restrição permitiu um ambiente mais saudável para o aprendizado”, afirma.
Armazenamento dos celulares
As escolas adotaram diferentes estratégias para armazenar os celulares. No Elite, os estudantes guardam os aparelhos nas mochilas. Na Balão Vermelho, utilizam sapateiras nas salas. João Paulo Silva explica que, em sua escola, os celulares são guardados na gestão e devolvidos apenas ao fim do turno em caso de uso indevido.
Ellen destaca a importância de protocolos claros para evitar a responsabilidade da escola sobre os dispositivos. Para ela, as regras devem ser construídas em conjunto com a comunidade escolar, garantindo mais eficiência na aplicação das regras.
Diálogo sobre a lei do celular com a comunidade
Para garantir que as diretrizes fossem bem compreendidas, as escolas adotaram diferentes estratégias de comunicação, como reuniões presenciais, comunicados eletrônicos e grupos de WhatsApp.
Na escola Elite, Deborah destaca a importância do encontro com famílias, responsáveis ou cuidadores. Além da reunião com a comunidade escolar, Simone Gomes Pereira apostou na assinatura do manual do aluno – que centraliza a comunicação e demanda ciência formal das famílias por meio de assinatura. Da mesma forma, Willmara Monteiro conta que valorizou o diálogo contínuo entre gestão, famílias e estudantes.
Embora já utilizasse o celular como ferramenta pedagógica antes da lei, João Paulo Silva destacou que a ampla divulgação midiática facilitou sua aceitação pela comunidade escolar. Segundo ele, estudantes e famílias começaram o ano letivo cientes tanto das novas regras quanto dos riscos do uso inadequado.
Já Ellen lembra que cada escola deve encontrar o melhor caminho para dialogar com sua comunidade. Ela cita o exemplo de uma escola rural que usou rádio local para informar as famílias. “Sempre há soluções criativas para garantir a inclusão e a comunicação”, afirma.
“Não existe uma fórmula perfeita, cada escola é única. O mais importante é que a escola conheça bem a sua comunidade, para encontrar o melhor caminho de comunicação”, conclui. A implementação da lei segue sendo um aprendizado contínuo, ajustado conforme necessário para garantir um ambiente escolar mais produtivo e equilibrado.