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'Lei de Cotas nasce com um problema: não tem dinheiro para implementação', diz pesquisador

Legislação que prevê reserva de vagas nas universidades federais completará uma década e deve passar por revisão em 2022; Valter Roberto Silvério, professor da UFSCar, avalia que financiamento é o grande desafio para os próximos anos
Valter Roberto Silvério, professor do Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Foto: Reprodução
Valter Roberto Silvério, professor do Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Foto: Reprodução

RIO — Sancionada em 2012, a chamada Lei de Cotas completará uma década no ano que vem, quando está prevista uma revisão, que avaliará se a política será estendida. O professor do Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Valter Roberto Silvério destaca que a lei proporcionou uma democratização do acesso à universidade pública no Brasil, com uma profunda mudança no perfil socioeconômico e étnico-racial dos estudantes, e defende a manutenção da política por mais dez anos. Mas Silvério destaca a necessidade de uma reestruturação da lei, com enfoque no financiamento para sua implementação, cuja importância recebeu pouca atenção até o momento, em sua avaliação.

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A lei 12.711 prevê que as instituições federais de educação superior reservem, no mínimo, 50% de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. As vagas reservadas às cotas são subdivididas entre candidatos de famílias com renda igual ou inferior a um salário-mínimo e meio per capita e candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas e pessoas com deficiência.

— A lei nasce com um problema, assim como toda lei no Brasil para inclusão étnico-racial: não tem orçamento para implementação. Há uma mudança de perfil fundamental na universidade pública no sistema federal de ensino, mas não temos recursos para programas de permanência dos estudantes — diz o professor.

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Silvério também é vice-presidente do Comitê Científico Internacional da Unesco para os volumes 9, 10 e 11 da História Geral da África. Ele escreveu sobre ações afirmativas pela primeira vez há mais de 20 anos, durante os encontros preparatórios para a comitiva brasileira da Conferência Mundial das Nações Unidas de 2001 contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância, realizada em Durban, na África do Sul.

Em entrevista ao GLOBO, o professor fala sobre o processo que culminou na aprovação da lei de 2012, os avanços observados nesses quase dez anos, e desafios futuros. Também defende que a educação deve ser pensada de forma sistêmica e afirma que a "educação superior coloca um horizonte de expectativa positiva para a juventude".

Como foi o processo que resultou na aprovação da Lei de Cotas em 2012?

A lei consagra um conjunto de projetos que já estavam em curso. O primeiro é a aprovação que já acontecia em várias universidades públicas das ações afirmativas, o que ficou conhecido como cotas, para negros e indígenas. Também houve um debate público, em que grandes veículos de imprensa fizeram uma intervenção no sentido de rejeitar cotas raciais e apoiar as sociais. É um debate estranho para um sociólogo, porque era como se o racial não fosse social. Outro aspecto é que em torno de 70% da população aprovavam a ação afirmativa. A lei nasce a partir de um fato consumado, não haveria como voltar atrás. E vem com triplo recorte, de ter cursado ensino médio em escola pública, ter renda inferior e só por último o pertencimento étnico-racial associado ao percentual da presença de negros e indígenas nos estados.

No que foi possível avançar nesses quase dez anos?

A lei passa a ser um mecanismo legal, com prazo para ser estabelecida e com reconhecimento do Supremo Tribunal Federal. Há instituições em que havia 70% de estudantes das camadas A, B e C na graduação e hoje têm 70% de estudantes das camadas C, D e E. É uma mudança profunda no perfil socioeconômico. E também do perfil étnico-racial. Pelo que tenho acompanhado nas Pnads [Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios], em torno de metade dos estudantes é de pretos e pardos no sistema federal de ensino. Temos um crescimento exponencial de jovens negros e principalmente negras e, em várias instituições, indígenas também. Ela de fato democratiza o acesso à universidade pública no Brasil. E algumas estaduais passaram a acompanhar o que o sistema federal tem feito.

E o que ainda não foi alcançado com a Lei de Cotas?

Ela nasce com um problema, como toda lei no Brasil para inclusão étnico-racial: não tem orçamento para implementação. Há uma mudança de perfil fundamental na universidade pública no sistema federal, mas não temos recursos para programas de permanência dos estudantes. Qualquer ação afirmativa mundo afora, na China, Malásia, Índia, EUA, foram aprovadas com possibilidades de financiamento desses estudantes, porque está mudando o perfil de entrada para compensar grupos sociais que foram obstaculizados na mobilidade social, então são pessoas que não têm recursos. Sem provisão orçamentária, a lei deixa a desejar. O financiamento para que alunos que entrem pela ação afirmativa tenham as mesmas condições de se manter é o grande desafio para o debate dos próximos dez anos, para o movimento por "cotas mais dez" que já está na praça.

Existem outros problemas?

Fiz um levantamento com meu grupo de alunos na universidade, no qual localizamos alguns problemas. Lá para 2006, 2010, os royalties do pré-sal foram pensados para criação de um fundo social com objetivo de financiar políticas públicas de educação, saúde e habitação. Mas esse fundo foi descaracterizado e hoje é para construção de gasodutos. Além disso, desde 2014 há um processo de sucateamento das universidades públicas, que se complicou nos últimos três anos.

E os dados mostram que mudança de perfil nas universidades não as piorou em nada,  inclusive em alguns casos estão produzindo mais e sobre temas novos. Essa pesquisa mostra que a ausência de financiamento para permanência dos estudantes é a grande fronteira para um novo projeto de desenvolvimento, que pluralize o perfil dos jovens presentes na universidade brasileira, que vão ocupar cargos técnicos, políticos e empresariais no futuro, o que chamamos de pluralização do perfil étnico-racial das elites.

Apesar do grande avanço na entrada de estudantes negros nas universidades públicas, levantamentos apontam que a participação ainda é menor em cursos como Medicina, Engenharia e Odontologia. Por que isso acontece, e esse ainda é um desafio?

Sim, é um desafio. A trajetória dos estudantes da educação básica reflete um pouco o que é a universidade pública entre os cursos que são considerados de maior dificuldade de acesso e os que não são. Os alunos que vêm do ensino privado têm maior chance nos cursos considerados de ponta. A ação afirmativa melhorou isso, mas ainda não equacionou. E em alguns cursos, como Medicina, Direito, Engenharia, há resistência em reconhecer a igual capacidade dos seres humanos e o impacto tem a ver com discriminação racial. Além disso, professores e gestores deveriam ser preparados para a mudança de perfil, pois é diferente dar aula para um estudante igualmente capaz, mas que não teve os benefícios de uma formação em escolas bem equipadas, com possibilidade de aprendizado de idiomas. Essas condições só podem ser melhoradas com a consciência sobre o significado da ação afirmativa e com o financiamento.

Qual sua expectativa para a revisão da Lei de Cotas, prevista para o ano que vem?

A manutenção por mais dez anos com reestruturações. O primordial é o financiamento. Entender que educação é investimento na juventude. O investimento na infraestrutura do sistema educacional também é importante. Tem existido uma discussão torta no Brasil de que apoiar a educação básica é mais importante do que a superior. A educação no mundo todo é pensada como sistêmica, não tem essa distinção. Quando se está apoiando o ensino superior, se está preparando um bom professor para educação básica. E a educação superior coloca um horizonte de expectativa positiva para a juventude.

Todo país tem obrigação de colocar para sua juventude um horizonte de expectativa favorável, e isso está se perdendo no Brasil. Seria o momento de um novo grande debate, levando isso em consideração. E acho que a manutenção da lei vai depender do cenário político. O atual governo não tem interesse em manter sequer o sistema público de ensino, quanto mais o que estimula a juventude dos grupos historicamente discriminados.

Em meio à pandemia da Covid-19, tivemos o Enem 2020 com recorde de abstenções e agora, em 2021, com menor número de inscrições desde 2005. Com isso, pode haver retrocesso nos objetivos da lei?

Não sei se haverá, pois mesmo quando a abstenção é alta, provavelmente não sobrarão vagas no sistema público. Mas a diminuição foi impactada pela pandemia e pelo processo de não planejamento da educação no Brasil. Há uma ausência de incentivo do atual governo para o acesso à universidade, claramente diz que não é para todo mundo, quando o horizonte dos países desenvolvidos é de cada vez ter um número maior de jovens no ensino superior. A pandemia pode ter algum impacto no perfil dos estudantes no Brasil, mas também vejo uma mobilização social importante, então acho que temos que esperar para avaliar.