A chamada Lei de Cotas, que reserva parte das vagas em universidades públicas para afrodescendentes e outros grupos minorizados, ainda espera a revisão prevista no texto pelo Congresso após o seu décimo aniversário, ocorrido em agosto. No entanto, não há previsão para isso acontecer. Os parlamentares paralisaram a análise em meio ao período eleitoral e agora a nova configuração política deve direcionar o debate. Para os defensores da manutenção das cotas, não há dúvidas sobre o bom resultado da lei em relação ao seu principal objetivo: aumentar a presença negra e de outros grupos sub-representados nas melhores universidades do país e consolidar esse instrumento de mobilidade social ampliando o acesso de pretos e pardos a melhores empregos.
- Dia da Consciência Negra: Mudança é lenta e trabalhadores negros ganham 30% menos que brancos de igual perfil
- A receita de quem chegou ao topo: Três executivos negros contam como venceram obstáculos na carreira
Pesquisas apontam que mais da metade dos brasileiros apoia a Lei de Cotas. A maior diversidade nos campi é visível e o desempenho dos cotistas não difere do dos não-cotistas, mas ainda é preciso aperfeiçoar instrumentos financeiros que possam ajudar estudantes pobres a se manterem nas salas de aula. Um estudo da USP apontou evasão de 25% entre pretos e pardos cotistas, frente a uma taxa de 17,6% entre brancos sem cota.
O 7º artigo da lei recomenda uma revisão a cada dez anos, mas, além de não ser obrigatória, uma reformulação pode ser adiada por meses ou até anos com as regras em vigor. O relator do projeto, deputado Bira do Pindaré (PSB-MA), sugere que a revisão seja feita só em 2027, livre de turbulências eleitorais. Ele diz que o tema é conduzido com cautela no Legislativo:
— A principal preocupação é que a lei seja preservada e que não haja retrocesso.
A Lei de Cotas reserva 50% das vagas em universidades e institutos federais para egressos de escolas públicas e embute nessa parcela outros filtros para elegíveis, como renda familiar per capita abaixo de 1,5 salário mínimo, pretos, pardos, indígenas e pessoas com deficiência. Segundo o Consórcio de Acompanhamento das Ações Afirmativas (CAA), em 2001, antes da entrada em vigor das cotas em todo o país, negros e indígenas representavam apenas 31% das matrículas nas instituições federais. Pessoas das classes C, D e E, eram 19%. Em 2020, o primeiro grupo saltou para 52% e se tornou majoritário. O segundo manteve a mesma proporção.
— Houve uma mudança na história da própria universidade e do debate sobre acesso à educação, que tem um reflexo no país. A Lei de Cotas proporcionou condições para que aqueles que trabalham, sustentam e produzem neste país possam se formar em nível acadêmico e alcançar novos lugares na sociedade, diminuindo as desigualdades de representação e sociais — avalia Douglas Belchior, um dos fundadores da UneAfro Brasil, que atua na educação de jovens pobres e negros, e da Coalizão Negra por Direitos, e que integra o grupo de igualdade racial da equipe de transição do futuro governo Lula.
Frei David Santos, coordenador da Educafro, uma das entidades pioneiras na defesa das cotas, cobra um debate sobre estratégias para manter os cotistas nos cursos:
— Conseguimos aumentar a presença de pessoas negras nas universidades, mas precisamos avançar nas políticas de permanência — frisa. — Muitos desses estudantes não têm condições de se dedicar somente aos estudos ou enfrentam dificuldades financeiras que devem ser levadas em conta quando se pensa na inclusão deles.
Para José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares — instituição privada voltada para a valorização da cultura afro-brasileira no ensino superior —, um desafio maior que a revisão da Lei de Cotas é transpor os seus resultados para o mercado de trabalho. Se a desigualdade de oportunidades é justificada com frequência por empresários e altos executivos com uma suposta falta de mão de obra negra qualificada, Vicente avalia que a manutenção das cotas deve ser um interesse prioritário das corporações.
— Sem isso, as empresas acabam perdendo o talento e a criatividade dos profissionais negros. Sem nós, negros, o mercado de trabalho se constitui num ambiente de segregação e exclusão racial.