Laura Mattos

Jornalista e mestre pela USP, é autora de 'Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura'.

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'Caminhava 1h30 até a escola e, ao chegar, enfrentava bullying por estar sujo e suado', diz jovem

Luiz César da Silva narra os dramas que enfrentou para estudar

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Ele caminhava uma hora e meia em estrada de terra para ir de casa para a escola e, quando chegava, sofria bullying por estar suado e sujo de lama. Muitas vezes voltava para casa sem ter tido aula, ou porque o professor havia faltado ou por não haver água nem nos banheiros. Na volta, mais uma hora e meia a pé, sol forte e muita fome.

Aos 20 anos, Luiz César da Silva cursa duas faculdades, geografia e agropecuária, em instituições federais, e afirma que isso não pode ser romantizado: ‘Ah, ele é pobre e chegou à universidade.’ Sabe que é uma exceção dentre as tantas crianças da área rural que abandonam a escola diante de condições cruéis. Não há escolha para a maioria, diz ele, que perdeu a conta dos amigos que trocaram os cadernos pela enxada porque a família passava fome e ouviram dos pais que era "ou estudar ou comer".

Imagem em primeiro plano mostra jovem negro de camisa posando para foto.
Luiz César da Silva, 20, faz duas faculdades em instituições federais, lidera um projeto de visibilidade da infância e juventude da zona rural e sonha fazer mestrado e ser professor - Divulgação

Luiz tinha 12 anos quando reuniu um grupo para brigar por transporte escolar em Mata Grande, sua cidade, no sertão de Alagoas. Aguentou cara feia de político, mas seguiu adiante, desenvolveu um projeto para dar visibilidade a crianças e jovens de áreas rurais, conquistou o apoio de ONGs e hoje é uma referência em liderança jovem. Dentre as conquistas recentes, foi selecionado para a lista de Jovens Transformadores da Ashoka, rede internacional de empreendedorismo social, e tomou posse como membro do Conselho Estadual de Juventude de Alagoas, que reúne representantes do governo e da sociedade civil para acompanhar políticas públicas voltadas jovens.

A seguir, Luiz narra os dramas que enfrentou para estudar, inclusive o de chegar à escola sujo de lama, em um relato que é o retrato do lamaçal da educação brasileira.

Imagem em primeiro plano mostra jovem em pé com microfone na mão. Ao lado dele, há uma mesa com outras duas pessoas sentadas.
Luiz César da Silva toma posse no Conselho Estadual de Juventude de Alagoas - Divulgação

"Meus pais são agricultores e minha cidade é pequena, uns 25 mil habitantes. Muitas pessoas vivem em vulnerabilidade social, dependem do Bolsa Família, crianças trabalham e jovens vão embora para cidades grandes porque aqui não têm emprego. Sempre estudei em escola pública. Sofria com falta de água na escola, banheiros péssimos, sem higiene, e tinha que apoiar o caderno no braço ou nas pernas para escrever, porque não tinha mesa ou carteira. Uma vez o teto da sala caiu. Professores faltavam e eu também faltava muito porque não havia transporte. No inverno, quando chovia, a escola alagava e enchia de cobra. Um dia acharam um rato no bebedouro.

Muitos desistiram diante dessa situação, inclusive para trabalhar na roça. Sofríamos com a falta de transporte, quase não havia ônibus. Moro na zona rural, a oito quilômetros do centro. A estrada é de barro e muitas vezes íamos a pé para a escola, desde os 8 anos. O transporte escolar é um direito meu que foi violado, e não sabia como brigar por ele. Saíamos em um grupo de 15 primos e amigos, umas 5h, e andávamos uma hora e meia até a escola. As aulas acabavam meio-dia e encarávamos mais uma hora de meia para voltar, sob sol quente e com muita fome.

Tudo colaborava para eu desistir. Mas não devemos ser apaixonados pelos infortúnios, e sim pela persistência. Quando estava indo a pé para a escola, pensava: ‘Não quero isso para mim e para os meus filhos e tenho que persistir para dar a volta por cima’.

Muitos desistiram porque os pais falavam: ‘Ou você estuda ou come. Estudar é para rico’. Eles queriam ser médicos, artistas, mas a realidade matava os sonhos. Teve uma família inteira, oito irmãos, em que todos deixaram a escola porque não tinham condições de comprar caderno. Muitos falam que só depende de você o seu futuro, mas, para muitos amigos meus, não foi assim. Se estudassem, iam comer o quê? Poucas pessoas conseguiram seguir estudando. E há o caminho da prostituição, das drogas, do crime. Graças a Deus meus amigos preferiram as casas de família e a roça.


Paulo Freire já dizia que o desemprego é resultado da péssima educação no Brasil. O investimento é pouco, os professores são desvalorizados, e nós, alunos, somos os que mais sofremos. Na minha cidade, um tempo atrás, houve desvio de mais de R$ 12 milhões, dinheiro que era para reformar as escolas e para o transporte escolar. Enquanto autoridades luxavam em lanchas, nós sofríamos andando a pé ou pegando carona na caçamba de caminhonete e correndo risco. Uma vez, uma prima minha foi descer, a caminhonete andou, ela foi arrastada e teve as costas rasgadas.

Por que negros e pobres são poucos na universidade? A educação pública é péssima. Não quero que as pessoas tenham que ir até a cidade para se conectar à internet, que precisem colocar um caderno nas pernas para estudar e estragar a coluna ou que tenham que voltar para casa porque não tem merenda e água na escola.

Não pode romantizar a minha história: ‘Ah, ele é pobre e conseguiu entrar na universidade!’ Tem que aniquilar isso, é preciso que todos tenham direito à educação.

O meu projeto social foi criado por necessidade. Estava vendo o meu sonho de entrar na universidade se acabar porque não havia transporte, eu estava cansado, sentia dor. Tenho dores nos ossos até hoje. E era muita humilhação. Às vezes estourava a sandália, e colocávamos prego na alça. Sofríamos bullying do pessoal da cidade. Chegávamos suados, melados de lama e era uma zombaria, tinha gente que não entrava na escola por vergonha. O objetivo do projeto era parar de ir a pé, porque era uma violência. Eu me reuni com primos e amigos e fomos até a Secretaria de Educação. Olharam a gente com desprezo e arrogância. Se fosse alguém da cidade, com dinheiro, não iriam tratar daquela maneira. Foi quando criei o projeto Visibilidade da Juventude Rural e passei por capacitações para saber o que reivindicar e como.

Depois da questão do transporte escolar, começamos desenvolvemos um olhar ativista para a cidade e começamos a ver que passávamos fome, que havia trabalho infantil, prostituição, crime. E passamos a questionar: ‘Oxe, por que os jovens estão entrando no mundo da droga, por que tem gente passando fome e não se faz nada? Por quê?’ Começamos a buscar soluções. As pessoas dizem: ‘Ah, o jovem não quer nada com a vida!’ Não quer nada com a vida porque não há nada na vida para eles. Não tem projeto cultural, educacional, até o direito de ir para a escola está sendo tirado de nós!

Os políticos querem falar por nós, mas eles estão andando a pé? Estão passando fome? Então não podem falar do que a gente passa. Queremos mostrar nossa voz, ocupar nosso espaço. Temos várias ações no projeto. Levamos brinquedos e cadernos para crianças. Quando há pessoas passando necessidade, arrecadamos alimentos para elas. Fazemos palestras e conversamos com jovens em depressão, risco de suicídio.

Estamos apoiando o grupo de capoeira. Cultura e arte mudam vidas, tiram pessoas das drogas, do crime. Debatemos sobre violência contra as mulheres. Estamos trabalhando para dar informação sobre prevenção à Covid e aniquilar fake news. Na pandemia, nossa vida mudou totalmente, e não foi para melhor... A internet é difícil aqui, e muita gente desistiu de estudar para ajudar a família porque os pais perderam o emprego.

Meu projeto traz o jovem como protagonista. Não temos dinheiro, mas temos força de vontade e empatia. Todo mundo pode ser transformador, basta apenas se levantar. Quem vê um problema e fica calado está contribuindo para a permanência dele."

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