Por Unifor


Participação de mulheres em cargos de liderança e gestão nas universidades ajuda a combater a desigualdade de gênero — Foto: getty images

Maria Augusta Generoso Estrela. Eis o nome sonoro da primeira brasileira a colocar as mãos em um diploma universitário, ainda que fora do país. Ela cursou Medicina nos Estados Unidos, fazendo por merecer a bolsa de estudos que Dom Pedro II lhe concedera após descobrir sua participação em um ato heroico para salvar vidas. Era 1879 quando o Imperador, inspirado nela, também noticiaria a abertura da primeira instituição de ensino superior para mulheres. De lá para cá, incontáveis Marias ingressaram em universidades, fortalecendo carreiras profissionais e trajetórias acadêmicas tão sólidas e reconhecidas quanto a de seus antecessores homens e sucessores colegas de turma. Será mesmo?

Afinal, qual vem sendo o lugar ocupado pelas mulheres quando o foco recai particularmente sobre o ambiente acadêmico? O que dizer delas quando um dos chamados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU) reivindica, em pleno século XXI, igualdade de gênero, elegendo as universidades como locus fundamentais para o debate crítico e transformador em torno de desigualdades culturalmente arraigadas e nascidas à sombra de estereótipos, discriminações e preconceitos?

Sim, é verdade que no Brasil as mulheres já são maioria entre as matrículas realizadas em instituições de ensino superior, segundo fontes oficiais. Por outro lado, a mais recente pesquisa da Times Higher Education (THE), revista inglesa referência na área da educação, tomou a igualdade de gênero como indicador de qualidade das universidades brasileiras e descobriu: atualmente, das 68 universidades federais, apenas 12 delas (18%) têm mulheres como dirigentes máximas e poucas com maioria de mulheres na alta hierarquia (ex. pró-reitoras e diretoras) administrativa.

Há gloriosas exceções à regra na Universidade de Fortaleza, instituição de ensino da Fundação Edson Queiroz, como afirma Fátima Veras, reitora desde 2009, sendo a primeira mulher a assumir o cargo na Capital e a segunda no Estado.

A professora e médica Fátima Veras foi a segunda mulher a assumir o cargo de reitora no Ceará — Foto: Ares Soares

“São notórias e merecidas as conquistas históricas da mulher, seja nas áreas da economia, política, ciência ou tecnologia, fortalecendo sua formação profissional e acadêmica. Por outro lado, sabe-se que essas mudanças não têm reverberado necessariamente nos altos postos de comando de empresas e universidades. Portanto, quebramos paradigmas e nos encorajamos a mudar o curso da história quando escolhemos ter na Universidade de Fortaleza uma Reitora e uma Vice-Reitora de Ensino do sexo feminino, sem falar na presidente da Fundação Edson Queiroz, Lenise Queiroz, e nas diversas diretoras e coordenadoras em cargos de liderança, sendo estas maioria. Trata-se de uma política de afirmação contundente de igualdade de gênero e também de formação de quadros de valor para gestão pública e/ou privada”, Fátima Veras, Reitora da Universidade de Fortaleza.

Sociedade patriarcal. Machismo estrutural. Eis a combinação que está no cerne da desigualdade de gênero, segundo a Vice-Reitora de Ensino de Graduação e Pós-graduação da Unifor, Maria Clara Bugarim. “Tivemos que travar inúmeras batalhas e cavar oportunidades que historicamente nos foram negadas para estarmos aqui hoje. Por isso penso que gerar oportunidades de forma igualitária é algo necessário e urgente para a promoção da igualdade de gênero. Se temos oportunidades, ocupamos os espaços. Ou seja, a educação, que é a principal base de crescimento de qualquer sociedade, também é a grande mola geradora de oportunidades. Até bem pouco tempo nossa educação era voltada para o lar, éramos educadas para sermos boas donas de casa, boas mães, boas esposas. Mas ao acessar a formação superior a mulher foi virando o jogo e equilibrando a balança. A educação superior, portanto, é um divisor de águas para nós. Mas até hoje ainda existem certos cursos onde é preciso ter uma presença feminina mais marcante, como Medicina e reas das Engenharias e Tecnologias. Vamos buscar!”, convida.

Exemplar, a trajetória pessoal ligada às Ciências Contábeis, por si só, já fura o olho masculino discriminatório que não enxerga a mulher como protagonista ou nega sua aptidão para lidar com cálculos e números. Maria Clara Bugarim foi precursora em diversos cargos no seu estado-natal, Alagoas: a primeira mulher a ocupar a Auditoria Geral do Estado, a primeira presidente do Conselho Regional de Alagoas, a primeira presidente da Fundação Brasileira de Contabilidade, a primeira mulher a presidir o Conselho Federal de Contabilidade, depois de mais de 60 anos de regulamentação da profissão.

Professora Maria Clara Bugarim, vice-Reitora de Ensino de Graduação e Pós-graduação da Unifor, é a primeira mulher a presidir o Conselho Federal de Contabilidade — Foto: Ares Soares

“Hoje sou a primeira mulher presidente da Academia Brasileira de Ciências Contábeis. São posições que até então só homens ocupavam. Mas o que é importante em ser a primeira? Não basta ser uma Maria. Temos obrigação de trabalhar e lutar para que outras Marias possam ocupar esses espaços. Isso passa pela questão da competência? Sim, mas temos que romper todo um círculo vicioso para que essa competência se imponha, através de uma determinação pessoal e de uma educação de qualidade. Só assim podemos falar em meritocracia independente das questões de gênero”, Maria Clara Bugarim, Vice-Reitora de Ensino de Graduação e Pós-graduação da Unifor.

Nurse, palavra inglesa que vem do latim nutrix e significa “mãe que cria”. É de carona com a linguística que fica mais fácil entender o que leva a enfermagem a se constituir como área de conhecimento e atuação profissional predominantemente feminina. Afinal, são as mulheres que, entretempos, vêm assumindo a linha de frente do cuidado, em todos os setores da vida social. Coordenadora do Mestrado Profissional em Tecnologia e Inovação em Enfermagem da Unifor, Karla Rolim diz, com prazer manifesto, ser uma das que abraçou com gosto essa quase “sentença de gênero”, sem deixar de pontuar ressalvas.

A enfermeira Karla Rolim coordena o Mestrado Profissional em Tecnologia e Inovação em Enfermagem da Unifor — Foto: Ares Soares

“Nós mulheres somos maioria entre profissionais de saúde, mas ainda minoria em cargos de liderança. E isso torna ainda mais importante o fato de eu ter encontrado na docência e na pesquisa um cenário em transformação, onde com muita tenacidade, estudo e apoio familiar, a mulher pesquisadora pôde sim ascender e galgar espaços de coordenação e gestão. Isso vem acontecendo na Unifor e é muito estimulante me sentir alinhada a um dos Objetivos do Milênio, que visa justamente alcançar a igualdade de gênero, empoderando mulheres e meninas para garantir a participação plena e efetiva delas no mercado de trabalho, além da igualdade de oportunidades com vistas a conquistarem as mais altas patentes”, Karla Rolim, coordenadora do Mestrado Profissional em Tecnologia e Inovação em Enfermagem da Unifor.

Quem ama o que faz e passou a vida em hospitais tratando bebês prematuros para depois entrar em sala de aula e formar novas gerações de profissionais de enfermagem vê na qualificação profissional o atalho para uma consequente e merecida valorização. “Não foi nada fácil chegar a esse reconhecimento profissional e salarial que hoje tenho na Unifor, como docente e gestora. É que a mulher pesquisadora também precisa ser mãe, esposa, avó e para cumprir múltiplas funções é imprescindível ter uma rede de apoio. E nem todas têm”, pontua, lembrando que deixar a terra-natal para cursar graduação na Unifor foi só o primeiro desafio que, muito jovem, teve que enfrentar.

Décadas se passaram até o início do doutorado em Portugal, onde novamente foi levada a se afastar de marido e filhos pré-adolescentes, além de deixar o próprio emprego em suspenso, para seguir crescendo profissionalmente. “Cheguei muitas vezes a pensar em desistir. Mas não era essa imagem que eu queria entregar para quem havia depositado confiança em mim. Então fui enfrentando a saudade, a solidão e a insegurança para conseguir imprimir ainda mais qualidade às minhas relações de trabalho. Se queria aprender a cuidar melhor, inclusive da minha própria família, não poderia abrir mão da cientificidade, desse aprendizado contínuo que é sempre mais desafiador para as mulheres, já que, naturalmente, cuidamos de todos e todas ao nosso redor”, sustenta Rolim.

De um lado, o “efeito tesoura”, que peleja para cortar fora a figura feminina da esfera acadêmica. Do outro, o “teto de vidro”, barreira invisível que encobre as dificuldades que mulheres enfrentam para se manterem competitivas no mercado de trabalho. É assim que a coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPGPsi) e pesquisadora do LEPES - Laboratório de Estudos sobre Processos de Exclusão Social, Luciana Maia, esboça simbolicamente altos e baixos referentes ao grau de participação da mulher na Ciência.

O Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor tem à frente a psicóloga Luciana Maia — Foto: Ares Soares

“Nas duas últimas décadas podemos sim perceber o aumento de mulheres nas universidades, mas é preciso atentar para muitas variáveis. A maioria de nós ainda recebe bolsas em iniciação científica e mestrado, que são as de menor valor. No doutorado, até há uma equivalência entre homem e mulher, mas quando se pensa em pesquisadores com um nível mais alto de excelência, aí eles já são maioria. Ou seja, vamos perdendo força ao longo da carreira científica”, Luciana Maia, coordenadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Unifor.

Para Luciana, não é à toa que a Universidade de Fortaleza representa um oásis no mapa acadêmico brasileiro. “Embora a atual presidente da Capes seja uma mulher, temos poucas mulheres em cargos de gestão na Capes e no CNPQ, as principais agências de fomento à ciência no Brasil”, ilustra.

Há ainda um ponto nevrálgico: em geral, o início de carreira da mulher pesquisadora coincide com o momento da maternidade. “Até bem pouco tempo isso era invisibilizado. Hoje não, já inserimos inclusive no Lattes a licença-maternidade. Tem muita gente do meio que é sensível a isso, mas para outras pessoas o que ainda interessa é se a mulher produziu ou não”, critica. Igualmente silenciado, o assédio moral e/ou sexual é outro fator que, segundo Luciana, desestimula a jovem cientista que não sabe como lidar com violência simbólica em seu ambiente de trabalho. Mais do mesmo, já que, em pleno século XXI, a conta ainda não fecha, fazendo valer uma constante e incansável luta contra o sexismo, um preconceito dirigido a mulheres.

“Pensamos o sexismo como aquele preconceito mais clássico, flagrante e direto, como quando dizem que lugar de mulher é na cozinha ou que mulheres são inferiores aos homens. Já com o assédio moral e sexual trata-se de sexismo hostil. Mas há ainda aquele tipo de que tende a não aparecer, o sexismo benevolente. São discursos aparentemente positivos, tipo ‘não é que a mulher não seja competente, ela é competente, intuitiva, sensível, afetuosa, mas deve ocupar espaços específicos’. Ou seja, ela não pode estar no cargo de gestão porque é muito sensível e não vai saber lidar com o estresse. Também não saberá tomar decisões estratégicas numa empresa ou universidade. Ainda não superamos esse fenômeno”, frisa.

É em razão do sexismo, complementa Luciana, que as mulheres estão sempre tendo que provar suas capacidades e competências. “Pesquisas mostram que, ao longo da primeira onda da pandemia, homens aumentaram sua produção científica, produzindo e publicando mais artigos. Além disso, têm seus trabalhos mais citados. São estereótipos perpetrados nas relações de trabalho e é por isso que já houve época em que as mulheres, para serem acreditadas, precisavam assinar com nomes masculinos. Hoje não mais. Mas de alguma forma os homens parecem ter mais credibilidade, porque são mais lidos e referenciados do que as mulheres”, destaca a pesquisadora que foi mãe aos 19 anos e fez seleção para o doutorado grávida de 8 meses, enfrentando preconceitos de toda ordem.

“Apesar das dificuldades, vi na carreira acadêmica um modo de conquistar autonomia e até escapar de uma relação abusiva. Felizmente, meu segundo casamento foi com um professor/pesquisador e foi ele quem me deu suporte para seguir sendo mãe e pesquisadora. Mas veja como é diferente: quando surgiu para ele a oportunidade de fazer um doutorado em outro estado foi super incentivado por familiares e amigos, enquanto meses antes fui criticada pela mesma iniciativa. Ou seja, todos os dias as mulheres têm que lidar e enfrentar expectativas sociais e isso é um peso. Só nós sabemos o que é viver esse tipo de opressão sistematicamente e, por isso, é preciso repetir à exaustão que lugar de mulher é onde ela quiser”, assinala Luciana.

É abraçada ao Direito que a igualdade de gênero avança e se fortalece no campo de disputa de poder próprio de um sistema social patriarcalista. Para a diretora do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade de Fortaleza, Katherinne Mihaliuc, sem o reconhecimento legal dos direitos cidadãos e, em particular, das mulheres como sujeitos de direito, não teria sido possível vê-las, em um gráfico crescente, galgando postos de liderança e cargos de gestão no mercado de trabalho. “Ainda tem chão a se percorrer, mesmo diante do reconhecimento social e valorização do trabalho da mulher na atualidade. Basta que falemos em paridade salarial em relação aos homens, por exemplo, para além da paridade de gênero no Brasil e mundo”, provoca.

Por direitos iguais, o próprio Judiciário também teve que se rever. “Por muito tempo a área jurídica foi espaço eminentemente masculino. Há 20, 25 anos ainda era assim. E a igualdade de gênero passa por representatividade. É você olhar para determinadas instituições, como os Tribunais Superiores, por exemplo, e conseguir vislumbrar figuras femininas. Hoje isso acontece, os tribunais vêm buscando a paridade de gênero, o que é muito importante porque estimula outras mulheres a seguirem com seus processos de capacitação e qualificação em busca de espaços de destaque”, ilustra Katherinne.

E se as mulheres podem, merecem e têm direito de concorrer em condições e status de igualdade em relação aos homens no mercado de trabalho, há de se também protegê-las do ponto de vista legal a fim de criminalizar e penalizar aqueles que desrespeitam seus direitos fundamentais.

O Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) da Unifor é dirigido pela professora Katherinne Mihaliuc, reconhece avanços da legislação em relação a temas como o assédio — Foto: Ares Soares

“O fortalecimento de toda uma legislação voltada ao reconhecimento das figuras de assédio, por exemplo, algo que infelizmente ainda é enfrentado por muitas mulheres, também vem sendo de crucial importância para que as diversas formas de violência contra a mulher sejam repudiadas pela sociedade e combatidas efetivamente nas raias da Justiça. Essa é outra luta que passa pelas questões de gênero e temos enfrentado bravamente”, Katherinne Mihaliuc, diretora do Centro de Ciências Jurídicas da Unifor (CCJ).

Como docente e gestora, Katherinne não esconde o orgulho por trabalhar em uma instituição que não só discute como pratica paridade de gênero. “A Universidade de Fortaleza, de maneira muito vanguardista, se posiciona frente à desigualdade de gênero inserindo figuras femininas em cargos de liderança e diretoria. Não é à toa que temos uma Reitora, uma Vice-Reitora ou Diretoras de Centro, coordenadoras e docentes como maioria. Isso é representatividade, algo que diz sobre a permissão que temos para sermos alçadas a postos de comando. Não às cegas, só por sermos mulheres. Mas porque se trata de mulheres competentes, com currículos de peso e experiências-modelos aptas a exercerem a liderança”, enfatiza a diretora do Centro de Ciências Jurídicas que também tem em sua equipe de trabalho direta uma maioria feminina digna de nota.

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