Brasil

Jovens migram de estado e vida pela universidade pública

Números divulgados por grandes instituições mostram que a faixa de alunos matriculados fora de seu estado de origem é alta. Universitários narram dificuldades econômicas e saudade das famílias
Luiz Henrique saiu de Pernambuco para estudar medicina na Paraíba; nos primeiros três meses na república, teve a ajuda financeira de amigos Foto: JOSEMAR GONCALVES / Agência O Globo
Luiz Henrique saiu de Pernambuco para estudar medicina na Paraíba; nos primeiros três meses na república, teve a ajuda financeira de amigos Foto: JOSEMAR GONCALVES / Agência O Globo

RIO - Com menos de um salário mínimo por mês para viver e ajudar a mãe, e sem lugar para morar na nova cidade, Luiz Henrique Pessoa saiu, aos 20 anos, de Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco, rumo a João Pessoa. O objetivo era estudar medicina na Universidade Federal da Paraíba (UFPB), para onde passou em primeiro lugar para ocupar uma das nove vagas de cotas destinadas a pessoas pretas, pardas e indígenas, com renda de até 1,5 salário mínimo, e oriundas de escolas públicas. Ele atendia às três condições.

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Apesar do bolso vazio, o coração estava cheio: ele seria o primeiro da família a ingressar numa universidade pública. Filho de empregada doméstica, Luiz Henrique fez cursinho popular, e a mudança de estado, em 2018, foi, ao mesmo tempo, um terremoto na realidade de jovem pobre e um privilégio. Os mais de 3 milhões de alunos que farão o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) este ano terão a oportunidade de buscar vagas até em outros estados, graças ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu), que abriu a possibilidade de o aspirante a médico, que ganhava R$ 50 mensais por mês para dar aulas de química, sonhar mais alto.

— O processo foi complicado, eu não tinha dinheiro nem para pagar a passagem para me matricular. Uma madrinha-mãe do cursinho me levou de carro e consegui entregar os documentos no último dia, faltando uma hora para encerrar o prazo. Se eu tivesse esquecido algo, teria perdido a vaga — lembra o jovem.

A uma semana do Enem, principal porta de entrada ao ensino superior do Brasil, a expectativa é de que mais de 30 mil estudantes encarem um desafio como o de Luiz Henrique: fazer o rito de passagem para a vida universitária em “terras estrangeiras”.

Hoje, Luiz Henrique vive no alojamento da universidade da Paraíba, mas penou até se estabelecer sob um teto. Durante os primeiros três meses na república, contou com a ajuda financeira de três colegas até começar a receber uma bolsa da Secretária estadual de Pernambuco, que vai de R$ 440 a R$ 1 mil.

— Além dos problemas financeiros, eu tinha questões psicológicas por estar sozinho e longe da família. Decidi tentar vaga na moradia estudantil da própria universidade, que todo mundo falava que era muito ruim. Para mim, estou no céu, não me preocupo com as contas.

O último Censo da Educação Superior que mostra o percentual de migrantes foi feito em 2018. Na época, do total de 309.266 alunos que ingressaram em Ifes, 11% se matricularam em cursos fora da unidade da federação em que moravam.

Sem um novo Censo, dimensionar essa realidade é um desafio para o estado. Mas números divulgados por grandes universidades públicas do país ao GLOBO mostram que a faixa de alunos matriculados fora de seu estado de origem é alta. A Universidade Federal Fluminense (UFF) informou que, nos últimos quatro anos, teve 2.540 alunos nessas condições, e 71,8% eram paulistas e mineiros. Dos mais de 34 mil estudantes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), aproximadamente 20% são de outros estados. Já na Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), 23% dos quase 20 mil alunos não são capixabas. Em média, 43% são de Minas Gerais, 18% do Rio de Janeiro, 12% de São Paulo e 10% da Bahia. Os demais chegam de forma pulverizada de toda parte do país.

Para a diretora do Centro de Políticas Educacionais da FGV, Claudia Costin, apesar de um dos principais benefícios do Enem ser a possibilidade de inclusão nacional de alunos na graduação, o ingresso desses jovens precisa vir acompanhado de auxílio psicológico. Ela alerta para a importância do exame não ser comprometida por falhas de gestão, um risco na nova conjuntura: nos últimos dias, 37 servidores pediram exoneração do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pela prova, por discordarem da condução do órgão.

— Para que as universidades se tornem mais inclusivas, o Enem precisa ter credibilidade, sem erros e sem desestímulos aos estudantes. Alunos migrantes têm a necessidade de auxílio psicológico, combate à discriminação, acesso a internet e livros, e boas condições de moradia estudantil. Nada disso é gasto, pois, ao se colocarem no mundo do trabalho, ele contribuirão para a produtividade do país — observa.

Desmotivação

A paraense Naslla Tembra encontrou uma realidade diferente da que esperava no curso no Espírito Santo Foto: Arquivo pessoal
A paraense Naslla Tembra encontrou uma realidade diferente da que esperava no curso no Espírito Santo Foto: Arquivo pessoal

Mais de 120 instituições públicas brasileiras utilizam a pontuação do Enem como critério de seleção através do Sisu, a maioria no Sudeste e Nordeste. Contudo, apesar de a proposta de mobilidade ser uma iniciativa promissora, dos alunos matriculados no primeiro ano de estudos em Ifes, 14,5% se afastam das aulas, sendo que 10,4% desistem do curso, e 4,1% trancam a matrícula, segundo o Inep. Dados deste ano do Instituto Semesp mostram que apenas 18,1% dos jovens de 18 a 24 anos estão matriculados no ensino superior (público e privado) e somente 17,4% das pessoas de 25 anos ou mais concluíram um curso.

A paraense Naslla Tembra, de 26 anos, começou, em 2013, a cursar biologia na Universidade Federal do Espírito Santo, quando o Enem ainda não era aceito no processo de seleção. Oito anos se passaram e ela ainda não se formou. Para sobreviver, ela usa a maior parte do tempo trabalhando como artista corporal e vendedora. A quase 3 mil quilômetros de casa, Naslla admite a desilusão de nunca ter trabalhado na área que escolheu e chega a cogitar um novo vestibular em seu estado de origem.

— Escolhi a Ufes por acreditar que teria melhores oportunidades de emprego, mas a realidade que encontrei foi outra. Aprendi muito aqui, passei por 11 repúblicas, já morei com mais de 15 pessoas, mas foi difícil ser mulher nortista no Sudeste. Eu tinha muito sotaque, minha criação e alimentação foram outras. Amo o curso, mas quero fazer em Belém, pelo menos lá tenho minha família — desabafa.

A recente debandada do Inep agrava as incertezas. Diretor de políticas educacionais da União Nacional dos Estudantes, Gabriel Barros prevê problemas na aplicação das provas, além de lamentar que seja o concurso com o menor total de inscritos da história.

— Não dá para ter tranquilidade no momento em que estudantes estão aflitos por não saberem como vai ser a prova, alguns não conseguem acessar o local do exame. Os sonhos de ingresso na universidade de muitos jovens foram interrompidos — diz.

Vindo do Ceará, Caio Lucas hoje é diretor de políticas públicas LGBT da UFERSA, no Rio Grande do Norte Foto: Arquivo pessoal
Vindo do Ceará, Caio Lucas hoje é diretor de políticas públicas LGBT da UFERSA, no Rio Grande do Norte Foto: Arquivo pessoal

Apesar das frustrações, a bagagem cultural e o amadurecimento são ganhos inequívocos. Caio Lucas Ferreira, de 24 anos, saiu da cidade de Maracanaú, no Ceará, para estudar engenharia elétrica na Universidade Federal Rural do Semi-Árido, no Rio Grande do Norte. Ele aprendeu sobre variações linguísticas e culturais e se apaixonou pelo namorado, que o ajuda a se manter na faculdade. Graças ao Identidade Jovem, programa do governo federal que oferece vagas gratuitas ou com desconto no sistema de transporte coletivo interestadual para pessoas de baixa renda entre 15 e 29 anos, o jovem consegue visitar a família nas férias escolares e ter meia-entrada em eventos culturais e esportivos.

— Tudo é uma descoberta, amigos se tornam família e graças ao meu namorado eu consegui me manter desde o começo da faculdade, em 2018. Hoje, me engajo na UFERSA e sou diretor de políticas públicas LGBTs da universidade — festeja.