Por Claudia Assencio, g1 Piracicaba e Região


Rafael Maloso Ramos recita poesia autoral e reflete sobre angústia trazida pela pandemia

Rafael Maloso Ramos recita poesia autoral e reflete sobre angústia trazida pela pandemia

O amor está impresso na poesia de Rafael Maloso Ramos, de 35 anos, e no abraço de Marcela Vacchi Andia, de 30, quando elogia os amigos de Piracicaba (SP). Eles são diferentes, como é cada ser humano. Mas, se assemelham pela energia com que desempenham suas atividades, pela satisfação de integrarem o mercado de trabalho e de serem pessoas com Síndrome de Down que frequentaram escolas regulares e tiveram acesso à educação formal desde a primeira infância. 

Em 2022, de acordo com dados recentes enviados pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP), no dia 19 de março, a pedido do g1, mais de 67 mil estudantes são elegíveis aos serviços da Educação Especial na rede estadual. Desse total de matriculados, cerca de 2,5 mil são alunos com Síndrome de Down, com 468 nos anos iniciais do ensino fundamental e 987 nos anos finais, 715 no ensino médio e sete são estudantes da modalidade Educação de Jovens e Adultos (EJA). 

Ao todo, a rede estadual de São Paulo tem 3,5 milhões de alunos no ensino regular nas 5,3 mil escolas paulistas.

Os números de pessoas com Síndrome de Down alfabetizadas não são evidentes nos bancos de dados disponíveis, como os do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), das Secretarias de Educação Municipais e Estaduais ou do Ministério da Educação (MEC), ou de instituições especializadas.

Marcela Vacchi Andia em atividades do trabalho em laboratório de Piracicaba — Foto: Claudia Assencio/ g1

Não por acaso, nesta segunda-feira (21), é celebrado o Dia Mundial da Síndrome de Down (21), uma condição genética causada pela presença de três cromossomos 21 nas células de cada pessoa, em vez de dois - também identificada como trissomia do 21. 

A data foi criada em 2006 e, desde então, organizações comemoram a vida das pessoas com Síndrome de Down e buscam a inclusão social de todos. 

  • Olhos amendoados;
  • Maior propensão ao desenvolvimento de algumas doenças e redução da força muscular;
  • Corpos mais flexíveis;
  • Comprometimento intelectual.

Em geral, as crianças com síndrome de Down são menores em tamanho e seus desenvolvimentos físico e mental são mais lentos que o de outras crianças da mesma idade. São mais vulneráreis a problemas respiratórios e cerca de 50% das crianças apresentam algum tipo de cardiopatia. Podem apresentar problemas no sistema oftalmológico, de audição e tireoide. Hérnias também são comuns.

Rafael Ramos tem a literatura como uma de suas paixões — Foto: Claudia Assencio/ g1

Estímulos e inclusão ontem … Independência hoje

Tanto Marcela quanto Rafael tiveram, desde a infância, múltiplos estímulos e acesso a uma rede de apoio construída pela família e instituições por onde passaram. Agora, adultos, demonstram independência e certeza de suas escolhas e preferências.

Marcela sempre quis ter um emprego. “E conseguiu sozinha”, orgulha-se a advogada Elionete Vacchi Andia, mãe da jovem, e não lhe faltam motivos. Há seis meses, ela trabalha em um laboratório farmacêutico em Piracicaba. Ela foi escolhida para a vaga após passar por entrevista no departamento de recursos humanos da rede de farmácias. 

Marcela Vacchi Andia com as colegas Simone Cadasqueves Leite e Claudelice Bastioni no laboratório farmacêutico em Piracicaba — Foto: Claudia Assencio/ g1

O g1 visitou o laboratório de manipulação onde Marcela trabalha. Com alegria e bom humor, ela mostrou parte das atividades que desempenha. A jovem realiza serviços de secretária, ajuda com os malotes, identifica com etiquetas as sacolas para expedição e leva documentos de um departamento para outro. 

Espontaneidade, alegria e afeto são marcas registradas da jovem, interrompidas por um breve momento de timidez no início da conversa com a reportagem. “Também tem essa câmera, não é?”, pondera. 

Qualquer hesitação passa rápido quando ela é convidada a falar dos amigos no ambiente de trabalho e, com bom humor, dispara um “Agora ele vai chorar”, abraçada ao colega auxiliar de laboratório, Victor Santos de Oliveira. Veja no vídeo abaixo:

Marcela Vacchi Andia mostra local de trabalho e elogia colega auxiliar de laboratório

Marcela Vacchi Andia mostra local de trabalho e elogia colega auxiliar de laboratório

Coragem e energia nunca faltaram para Marcela. “Eu queria muito trabalhar. Subi no altar durante a missa e pedi um emprego para o padre André”, conta. A mãe confirma a história e arremata. “A Marcela tem mais coragem do que eu”, diz.

“O padre que anunciou que a Marcela queria trabalhar e pediu para quem soubesse de alguma vaga dar um alô. Na mesma semana, o responsável entrou em contato com ela e agendou uma entrevista”, detalha Elionete.

Marcela toca violão e pratica caratê em Piracicaba — Foto: Arquivo pessal

Esse não é o primeiro emprego de Marcela. Ela já trabalhou na cafeteria do Espaço Pipa, associação que atende pessoas com Síndrome de Down em Piracicaba.  

Elionete destaca a importância do caminho percorrido com Marcela para, na vida adulta, a jovem conquistar seus objetivos. E foram muitos, com apoio de uma rede multidisciplinar de profissionais. “Além da escola, ela sempre frequentou o Centro de Reabilitação de Piracicaba (CRP), também praticava natação, caratê, Kumon, aulas de violão, equoterapia e balé”, elenca.

 “Fizemos tudo o que podia ter feito para ela se tornasse bastante independente. Hoje, ela faz tudo sozinha”, afirma. Marcela frequentou a educação infantil. Depois, seguiu no ensino básico regular em uma escola particular, onde ficou por oito anos e cursou até a quarta série do ensino fundamental. 

Marcela trabalhou na Cafeteria do Espaço Pipa em Piracicaba — Foto: Arquivo pessoal

“Minha filha sabe tudo, mas não sabe ler, que era o que eu mais queria na vida”, lamentou Elionete. Quando Marcela iria para o quinto ano do ensino fundamental, a coordenação do colégio a chamou e disse que a menina não acompanharia, segundo relato da mãe. 

 “Não era o certo, mas como fui orientada assim, ela deixou a escola regular, mas continuou no Centro de Reabilitação. Nunca paramos de buscar caminhos para nossa filha. Lá, tinha aulas de alfabetização, culinária e arte”, lembra. 

 Embora não tenha se alfabetizado completamente, Marcela sabe se comunicar bem e segue na busca por aperfeiçoamentos. Atualmente, faz aulas de computação no Centro de Reabilitação de Piracicaba e também iniciou um curso de preparação para o mercado de trabalho na unidade do Senac no município.

Marcela com o colega de trabalho Victor de Oliveira no laboratório de manipulação em Piracicaba — Foto: Claudia Assencio/ g1

Da alfabetização ao amor pela literatura 

 Rafael Maloso Ramos tem um desejo para 2022: voltar a trabalhar de modo presencial, condição que a pandemia de Covid-19 não permite há dois anos. O rapaz está afastado do emprego em uma multinacional norte-americana que fabrica máquinas e motores pesados voltados à construção civil e mineração. “Adoro tratores. É uma de minhas paixões, junto com escrever”, ressalta.

 O jovem trabalha desde os 19 anos. O primeiro emprego foi em uma copiadora de Piracicaba, empresa em que atuou por seis anos, até 2012. Mais recentemente, conseguiu outro emprego no setor de recrutamento da multinacional, que foi renovado após o vencimento do contrato e onde permaneceu até março de 2020, quando veio a pandemia.

 “Eu adoro muito o meu trabalho. Eu ia buscar os candidatos, eu trabalhava no computador, organizava as fichas”, descreve Rafael.

 Ele revelou um talento especial com as palavras. Leu a poesia que escreveu e disse que a literatura foi um alívio durante os tempos de pandemia. 

A psicanalista Maria Lúcia Maloso Ramos, mãe de Rafael, explicou que a alfabetização do filho fez toda diferença na vida dele. “E na vida de todos nós, pois permite a ele se inserir e se expressar de forma mais ampla, fazendo parte de um universo de maiores possibilidades. Isso é inclusão”, salienta. 

 “Ele é extremamente responsável em tudo que faz. Ao ler e escrever, pode desempenhar muitas atividades tanto na vida pessoal, familiar, como no trabalho”, orgulha-se.

Rafael Ramos, de Piracicaba, que gosta de literatura fantástica e de terror, conta que leu Drácula de Bram Stoker por mais de 10 vezes — Foto: Claudia Assencio/ g1

Maria Lúcia contou que ir para a mesma escola dos irmãos foi um desejo dele aos 7 anos de idade. Rafael tomou gosto pela leitura e tem uma prateleira com diversos títulos preferidos e dezenas de títulos lidos. Atualmente, lê "Volta ao Mundo em 80 dias", de Júlio Verne.

 Segundo a mãe de Rafael, o fato de ser alfabetizado o permite entender e responder o que ocorre à sua volta.

“Assim, se expressando de maneira completa, se fazendo entender, dizendo o que quer e o que pensa.  É um direito de todos e, felizmente, Rafael continua aprendendo. Valeu muito a pena investir neste processo!”, finaliza.

Mercado de Trabalho

A Base de Dados da Secretaria de Direitos da Pessoa com Deficiência de São Paulo, desenvolvida em parceria com a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), aponta que o estado de São Paulo admitiu 2.023 pessoas com deficiência (PCD) em 2022 e demitiu 2.571, com redução de 548 trabalhadores no mercado de trabalho.

Em Piracicaba, foram contratadas 27 pessoas com deficiência neste ano, contra 15 desligamentos. A cidade tem saldo de 12 trabalhadores PCDs no mercado de trabalho atualmente. O que contrasta com o número estimado pelo mesmo banco dados em relação ao tamanho da população com deficiência intelectual na cidade em 2021, que prevê 4.876 pessoas.

Pandemia 

Rafael se preocupa com a Covid-19. As mortes o sensibilizam, assim como a dificuldade de trabalhar em tempo de pandemia. A literatura e o hábito de escrever poemas são formas de extravasar seus sentimentos em tempos incertos. “O amor envolve ondas práticas”, escreveu.

Marcela pratica o amor nas muitas atividades corriqueiras. Empunhando um violão, praticando caratê ou em sua atuação diária como auxiliar em uma farmácia, o sentimento é presente em cada ação. O amor é a válvula de escape para Rafael e Marcela superarem quaisquer barreiras. 

Piracicaba

Em Piracicaba (SP), a rede municipal de ensino atende 725 alunos com deficiência, do berçário ao quinto ano do ensino fundamental, sendo 42 alunos com Síndrome de Down, segundo dados de fevereiro de 2022 solicitados pelo g1. Desse total, 21 estudantes estão na educação infantil e 21 no ensino fundamental. 

O Núcleo Municipal de Apoio Pedagógico à Educação Especial (Numape) afirma que oferece Atendimento Educacional Especializado (AEE) por meio das itinerâncias nas escolas e das salas de recursos multifuncionais e realiza orientações aos professores e atendimento pedagógico complementar aos alunos.

Inclusão plena: ‘o individual na coletividade’

A diretora escolar da Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (Apae) de Piracicaba, Nilva Toledo, acredita na inclusão escolar das pessoas com síndrome de Down.

 “A inclusão escolar é possível, desde que sejam estimuladas desde pequenas, o que facilita também a sua inclusão social, e no mercado de trabalho, onde estará apto a desenvolver suas atividades de vida prática e de vida diária com independência”, reitera.

Para que a inserção escolar - e social - da pessoa com Síndrome de Down ocorra de forma plena, é preciso que o professor tenha conhecimento sobre o que é inclusão de fato. “É necessário que o educador entenda e conheça as deficiências e situações de cada aluno”, afirma a psicopedagoga Jussara Rosolen, que trabalha com crianças com necessidades educacionais especiais há mais de quatro anos e é especialista em Análise do Comportamento Aplicada (ABA, do inglês, applied behavior analysis).

“O educador deve explorar os momentos iniciais do ano letivo para fazer um diagnóstico de como é aquele aluno, como ele aprende, se é verbal ou não, quais são os outros profissionais que o atendem, conversar com os pais e com o professor do ano anterior”, salienta. "São muitas perguntas cujas respostas e relatos de experiências vão respaldá-lo para essa inclusão verdadeira”, orienta. 

Jussara, que também é mestranda em Educação pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), no campus de Araras (SP), esclarece que a pessoa com Síndrome de Down pode estudar em qualquer escola e alerta para a relevância da preparação e iniciativa do corpo docente e gestão pedagógica.  

A especialista reitera a importância dos educadores realmente se preocuparem em desenvolver materiais adaptados às necessidades educacionais do aluno, com iniciativas que o insira e se adeque aos trabalhos com todos os demais estudantes da sala. 

“Isso faz com que ele participe de todas as atividades. Não adianta colocar um profissional para ajudar aquele aluno/criança e ele fazer outro tipo de atividade diferente do conteúdo que está sendo trabalhado em sala de aula. A inclusão não existe se o material for diferente dos demais alunos. Incluir é trabalhar o individual na coletividade. A sala de aula já é um espaço de coletividade, mas cada um de nós, seres humanos, aprendemos de uma maneira diferente”, explica.

A educadora aponta a educação continuada dos professores e atividades de extensão universitária, em união entre teoria e prática, como elementos essenciais para o sucesso de iniciativas de inclusão. Ela defende a necessidade da implantação de "residências pedagógicas” permanentes nos cursos de formação docente.

“Qualquer inclusão tem que tirar o professor da zona de conforto, em qualquer nível educacional, da educação infantil, fundamental ao ensino superior. Desde 1996, com a LDB, se fala em inclusão. Nós estamos em 2022 e precisamos falar porque tem coisas que as ainda escolas não fazem. E nisso, cabe a inclusão do próprio professor também”, critica.

Todo Síndrome de Down aprende, como qualquer pessoa, segundo a especialista. “Agora, o grau de aprendizagem vai depender daquele diagnóstico que o educador faz no início. Se o aluno não for verbal, é uma coisa, se for verbal, mesmo que tardio, pode ser alfabetizado. Primeiro é preciso saber como é essa criança”, especifica.

O professor tem uma longa jornada, lembra Jussara. “Não existe inclusão sem solidariedade, como dizia Paulo Freire. Isso é o afeto. Quando você se coloca no lugar do outro, o que hoje chamamos de empatia, você aprende a ver tudo de outra forma”, finaliza.

VÍDEOS: Veja reportagens sobre a região

Veja também

Mais lidas

Mais do G1
Deseja receber as notícias mais importantes em tempo real? Ative as notificações do G1!