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OPINIÃO

Interesse público e interesse do público: a cobertura de ataques a escolas

Famílias e alunos prestam homenagem às vítimas de ataque da escola Thomazia Montoro, na zona oeste de São Paulo - Bruno Santos/Folhapress
Famílias e alunos prestam homenagem às vítimas de ataque da escola Thomazia Montoro, na zona oeste de São Paulo Imagem: Bruno Santos/Folhapress

Cláudia Bredarioli*

31/03/2023 11h30

O fazer jornalístico é baseado em dois grandes princípios norteadores: o interesse público - por meio do qual a imprensa cumpre seu papel de contribuir para o desenvolvimento de sociedades democráticas - e a defesa de um direito humano, que é o direito à informação. Ocorre que, em tempos de exposição contínua e ininterrupta dos cidadãos às telas, entram em cena também práticas voltadas à geração de engajamento, buscas por cliques e compartilhamentos, com o intuito de ampliar a audiência e encontrar outros meios de subsistência para as empresas de comunicação. Ganha, assim, cada vez mais força uma nova questão dentro dos processos de produção de informação: o interesse do público.

Essas questões se aproximam quando consideramos o contexto de cultura da convergência, no qual o consumo de informação se dá por meio de vários canais e produtos midiáticos, que fazem circular seus conteúdos ininterruptamente. Isso acontece por uma via de mão dupla. Os veículos de comunicação agendam as redes para discutir um tema como a denúncia da fome extrema vivida pelos yanomamis. Ou, em outras situações, o processo se dá no sentido contrário, com as redes pautando a cobertura dos veículos, como ocorreu com a repercussão da hashtag #metoo diante de denúncias de casos de abuso contra mulheres. Em muitos casos, essas forças se movimentam simultaneamente no cenário de aceleração do tempo em que vivemos.

Mas será que essas perspectivas se chocam, por exemplo, quando temos de noticiar ataques a escolas? É de interesse público ou de interesse do público a circulação dessas informações? A discussão se assenta em várias facetas.

Os critérios de noticiabilidade e os valores-notícia que norteiam a produção jornalística não deixam dúvidas de que haja imensa relevância, caráter inesperado, impacto e significância para os veículos darem destaque a uma pauta como essa. Ela pode se desdobrar em muitas reflexões de importância crucial no âmbito da sociedade civil, como o aumento de transtornos mentais entre os jovens, o limite do sistema de saúde em tratar essa condição, a situação crítica à qual os professores estão expostos dentro do espaço da sala de aula ou o aumento da violência no cenário pós-pandêmico. Todos eles temas de interesse público que permeiam uma notícia sobre um ataque a uma professora, dentro da sala de aula, como vimos nesta semana.

Há que se discutir, porém, até que ponto seguir no contexto de exposição dos detalhes de como aconteceu o crime. Muito se falou sobre a circulação de um vídeo que mostra a cena do momento exato em que um adolescente ataca pelas costas a professora, desferindo golpes de faca repetidos. As imagens evidentemente são chocantes. Custamos a acreditar. E a força delas implica a intensa e instantânea repercussão do caso. Não fosse o impacto de uma cena como essa, teríamos tido tamanho interesse do público no caso? Divulgar um vídeo como esse contribui para o debate e a disputa de sentidos no âmbito da formação da opinião pública? Em uma sociedade imagética como a atual, pode-se ponderar que sim.

Vários outros elementos complexificam ainda mais essa tomada de posição: se os veículos de comunicação não divulgarem tal vídeo, ele não estará de toda forma disponível em outros canais, dispersando a audiência ou constituindo um discurso desamparado da perspectiva crítica sobre o fato? O impacto de imagens como essas não reforçaria o contexto para ampliar as discussões em torno do tema em vários âmbitos da sociedade civil? Se, em produções de ficção, como games e audiovisuais, essa exposição é tão intensa, por qual motivo não mostrar isso também na cobertura jornalística, ampliando a discussão sobre as consequências para o chamado mundo real?

Só que uma decisão como essa suscita uma série de outras ponderações éticas que perfazem a produção jornalística. Há muito se comprovou, por exemplo, que noticiar atos de suicídio pode incentivar as pessoas a tomarem tal medida. Vários manuais de redação de grandes veículos inclusive impõem diversas restrições para a publicação de notícias sobre o tema. Mas como proceder quando uma série como '13 reasons why' passa a fazer parte intrinsecamente do processo de formação de opinião pública entre os jovens, expondo o assunto?

A cobertura da mídia sobre a morte do ator americano Robin Williams, em 2014, por suicídio, é associada ao aumento de 10% nos casos de autoextermínio nos Estados Unidos, durante cinco meses avaliados, conforme estudo da revista científica British Medical Journal. A pesquisa destacou que a mídia, à época, não seguiu orientações que poderiam evitar o acréscimo, como o excesso de atualizações sobre o tópico e o fornecimento de dados que geraram a identificação dos leitores com a situação do ator.

No caso dos ataques a escolas, esse risco do efeito contágio - quando há contribuição para que um caso seja 'incentivador' de outros atentados - pode ser limitado com medidas como evitar expor demais os agressores, ampliar as vozes da comunidade escolar e contextualizar o fato dentro da discussão sobre causas e consequências.

Infelizmente, não têm sido raros os ataques a escolas, não só no Brasil, mas especialmente nos Estados Unidos. E isso chega a ser discutido até mesmo no âmbito de pensarmos se estamos importando um modus operandi de violência no ambiente escolar, ou, mais do que isso, se o espaço da escola expõe cada vez mais a polarização, a intolerância e o discurso do ódio que se espalham na sociedade.

Em 2017, em Janaúba, no norte de Minas Gerais, um vigia ateou fogo em crianças que estavam numa creche. Dois anos depois, aconteceu um massacre em uma escola estadual em Suzano, na Grande São Paulo. Em 2021, um jovem com um facão matou funcionárias e crianças em outra creche em Saudades, oeste de Santa Catarina. Nos últimos seis meses, foram registrados pelo menos outros cinco casos no País: Barreiras (BA), Sobral (CE), Aracruz (ES) e Monte Mor (SP), segundo o Instituto Sou da Paz.

O assassinato da professora Elisabeth Tenreiro, aos 71 anos, nesta semana, dentro de um espaço constitutivo do diálogo e da mediação como a sala de aula, ainda suscitou a proliferação de diversos outros discursos sensíveis em torno do caso. Tanto quanto a violência do ato de esfaquear a professora pelas costas, também foram expostas imagens que fazem uma apologia ao sucesso e à coragem de outras duas professoras que conseguiram imobilizar e desarmar o agressor. Claro que se trata de um ato heroico. Mas isso alcançou o limite de se discutir sobre a capacitação de professores para responderem à violência física dentro das escolas. Imaginem Paulo Freire respondendo a um questionamento como esse. Há muito ainda o que caminharmos nas discussões dentro da interface entre os campos da comunicação e da educação para refletir sobre temas assim e sua extrema relevância na construção de uma sociedade democrática.

* Cláudia Bredarioli é jornalista, com extenso trabalho de reportagem e edição em veículos de grande circulação. Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP (ênfase em pesquisa na interface entre Comunicação e Educação), atua como professora e pesquisadora no Ensino Superior desde 2006, com destaque para temas como ensino, produção e circulação de conteúdo em mídias digitais. Hoje é professora do curso de Jornalismo da ESPM-SP.