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Sergio Firpo, Michael França e Alysson Portella

Índice mostra que desigualdade racial condena negros a menos renda, ensino e expectativa de vida

País precisa de políticas públicas específicas de redução de iniquidades raciais, dizem pesquisadores

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Sergio Firpo

Professor titular e diretor de pesquisa do Insper, é doutor em economia pela Universidade da Califórnia em Berkeley

Michael França

Doutor em teoria econômica pela USP e pesquisador do Insper, foi pesquisador visitante na Universidade Columbia

Alysson Portella

Doutorando em economia no Insper

[RESUMO] Índice desenvolvido por pesquisadores mensura o grande impacto da questão racial na profunda desigualdade social brasileira. Dados da pesquisa apontam como negros estão sub-representados no topo da distribuição de renda, nos cursos superiores e até mesmo na população idosa, o que mostra a urgência de propor políticas públicas específicas de redução de iniquidades raciais.

O Brasil é um país em que a desigualdade social é profunda —e isso não só por ser abissal a diferença entre grupos sociais, mas por ter longas e centenárias raízes. Dentre os fatores determinantes da desigualdade social e econômica, a raça tem papel central.

Raça é o conceito sociológico que nem o mais cínico dos analistas sociais consegue evitar. Está presente em profusão em nossas relações sociais, familiares e de trabalho. Mesmo quando parece estar ausente, está ali.

As desigualdades raciais no Brasil podem ser medidas de diversas formas. Em dois trabalhos recentes elaborados pelo Núcleo de Estudos Raciais do Insper, documentamos: (i) como negros estão sub-representados no topo da distribuição de renda, no acesso ao ensino superior e até mesmo na população idosa; (ii) como desigualdades raciais iniciam-se na escola e se perpetuam no mundo do trabalho. Assim, apresentamos, a seguir, um resumo dos principais resultados e da agenda de pesquisa do núcleo.

Desequilíbrios nas distribuições de renda, escolaridade e etária

Os resultados de nosso primeiro estudo revelam que, nas regiões e unidades da Federação mais desenvolvidas, o acesso da população negra às posições mais altas na distribuição de renda é relativamente mais difícil. Parte disso é reflexo direto da escolaridade.

Trabalhadores com ensino superior completo ganham, em média, mais que o dobro que trabalhadores com apenas o ensino médio concluído. Contudo, o acesso ao ensino superior é diferente entre negros e brancos.

Entre aqueles que concluíram o ciclo superior, há relativamente mais brancos do que negros, embora haja tendência de convergência para um equilíbrio racial no país.

Com níveis educacionais e renda menores, não é surpreendente que os negros estejam sub-representados entre os idosos do país. Uma vida de empregos malremunerados, instabilidade no fluxo de renda, subinvestimento em capital humano, acesso precário à atenção básica de saúde, sobre-exposição a situações de violência, entre outros fatores, reduzem a expectativa de vida.

Para mensurar a representação no acesso ao topo das distribuições de renda, educação e etária, usamos o Índice de Equilíbrio Racial (IER). O IER representa uma forma de medir o quanto a distribuição racial de determinado subgrupo está destoante do resto da população.

O IER assume valores entre -1 e 1. Quando o índice é negativo, indica que aquele subgrupo populacional está com uma sobrerrepresentação branca. De forma semelhante, quando o IER é positivo, naquele subgrupo há uma sobrerrepresentação negra.

Em uma sociedade em que há equilíbrio racial no subgrupo a ser considerado, o IER é nulo. Nesse caso, a proporção de negros no subgrupo é idêntica à proporção de negros na população mais ampla.

Os números indicam um grande e generalizado desequilíbrio desfavorável aos negros, isto é, a população negra está sub-representada no subgrupo que tem ensino superior em todas as unidades da Federação.

Esse desequilíbrio vem, contudo, caindo de maneira sistemática no país, a despeito de a população autodeclarada negra estar aumentando. Ou seja, o IER aplicado ao ensino superior vem, paulatinamente, assumindo valores mais próximos do zero, ou seja, do equilíbrio racial.

Existem diversas causas por trás da melhora do IER do ensino superior. Entretanto, é inevitável chamar a atenção para as políticas de ações afirmativas e expansão do ensino superior. Outro fator relevante são as políticas de expansão do ensino básico.

Como historicamente a população negra teve menor acesso à educação, os avanços observados desde a redemocratização provavelmente contribuíram para as melhoras observadas na década de 2010.

O mesmo procedimento foi usado para calcular a proporção de negros entre os mais ricos da população. Se não houvesse desequilíbrios raciais na distribuição de renda, esperar-se-ia que a proporção de negros entre os mais ricos fosse a mesma para o resto da população.

Contudo, o Brasil está longe de ser um caso em que a raça é irrelevante para a distribuição de renda, como mostram os resultados do IER. Os números do desequilíbrio racial na renda não são apenas estáveis ao longo do tempo, como bastante expressivos (em torno de -0,5).

No que se refere ao envelhecimento desigual entre negros e brancos, percebe-se uma leve piora no país entre 2012 e 2019. Interessante, contudo, é notar a grande disparidade regional que há nessa métrica.

Nas regiões Sul e Sudeste, a desigualdade racial no processo de envelhecimento é muito pior que nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste. Brancos tendem a estar sobrerepresentados nos grupos etários mais velhos, sobretudo nas regiões mais ricas do país, onde há uma oferta maior de serviços privados de saúde e educação, atendendo às camadas mais ricas da população.

Mercado de trabalho e sua relação com o sistema educacional

Em outro trabalho recente, usando dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e da Pnadc (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) de 2002 a 2019, mostramos como o mercado de trabalho amplifica desigualdades raciais que já aparecem na educação básica.

Sabe-se que no mercado de trabalho há diferenças salariais consideráveis entre brancos e negros. Entre todos os ocupados, trabalhadores brancos ganham quase o dobro que negros.

Entre apenas aqueles com ensino superior, essa diferença gira em torno de 50%. A despeito de haver uma convergência entre brancos e negros, sobretudo ocupacional, ela ainda é muito lenta.

A maior parte da diferença salarial é explicada por diferenças na escolaridade e nos tipos de ocupação. Contudo, as diferenças salariais permanecem altas mesmo quando comparamos brancos e negros com ensino superior e dentro da mesma ocupação, o que pode ser reflexo de discriminação racial no mercado de trabalho.

Embora o acesso ao curso superior tenha crescido mais rapidamente para a população negra, jovens negros se formam majoritariamente em áreas e em cursos de menor prestígio ou menores salários. Isso faz com que as oportunidades ocupacionais sejam muito distintas.

Há sub-representação, medida pelo IER, entre ocupações e profissões de gerência e/ou direção. Para essas ocupações, o IER é sempre negativo e oscila entre -0,5 e -0,4 para o período de 2002 a 2019.
Há ainda importantes diferenças raciais na qualidade do ensino, evidenciadas por um grande e crescente hiato racial no desempenho do Enem, girando em torno de 0,4 desvios-padrão da distribuição de notas entre alunos.

Essa diferença no resultado do Enem entre jovens brancos e negros faz com que se perpetue o acesso relativamente mais restritivo para negros aos melhores cursos de ensino superior. As diferenças entre brancos e negros no acesso às melhores oportunidades existentes no sistema básico de educação acabam tendo efeito em cascata sobre o mercado de trabalho. Intervenções que garantam equalização de oportunidades nas etapas iniciais do processo educacional têm chances maiores de reduzir a desigualdade racial no mercado de trabalho.

Outros desequilíbrios raciais

A agenda de pesquisa do Núcleo de Estudos Raciais do Insper envolve a quantificação de desequilíbrios raciais em várias dimensões da vida social.

O núcleo tem estudado, por exemplo, como é o desequilíbrio racial no ensino médio em cada unidade da Federação. Ali se mostra que os desequilíbrios são pequenos no acesso inicial, mas aumentam à medida que os jovens progridem.

Há evidente sub-representação de negros em escolas particulares de ensino médio e sobrepresentação no ensino para jovens e adultos (EJA). Quando se olha para dentro das escolas e se ordenam os alunos pelo desempenho nos testes padronizados do Inep, os negros estão sub-representados no topo da distribuição do desempenho intraescolar.

Em outros estudos, acompanham-se algumas firmas pelo sistema de informações da Rais (Relação Anual de Informações Sociais). Os resultados apontam haver, dentro das firmas, diferenças relevantes, sobretudo quando contrastadas as distribuições raciais intrafirma com as dos seus entornos, sendo esses desequilíbrios ainda mais relevantes, e desfavoráveis aos trabalhadores negros, nos cargos mais bem-pagos.

Síntese

A desigualdade social brasileira é um fenômeno histórico que está entrelaçada com nossas desigualdades raciais. A mensuração das diferenças raciais e a identificação dos aspectos em que elas são mais relevantes são um ponto de partida importante para que se possam propor políticas públicas específicas de redução de iniquidades raciais.

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