Ilhas de excelência

Sistemas pedagógicos pelo mundo podem ser inspiração para nos ensinar a repensar a escola básica brasileira

Janaina Garcia Colaboração para Ecoa, de São Paulo

A autonomia dos alunos, o estabelecimento de metas pedagógicas que compreendem aprender a aprender, bem como a compreender a própria aprendizagem são alguns dos diferenciais que fizeram uma rede de escolas sueca ganhar o carimbo de "modelo perante o mundo. Detalhe: a rede é gratuita.

Em Portugal, outra unidade de ensino também tida como modelo considera que o conhecimento mais aprofundado de si próprio e um relacionamento solidário com a sociedade são parte de um sistema pedagógico que focaliza um aluno autônomo, no qual crianças que sabem ensinam as que não sabem. De novo aqui, falamos de uma iniciativa pública.

Sistemas pedagógicos como os da sueca Vittra e da portuguesa Escola da Ponte, descritos acima, resumidamente, são considerados modelos inovadores de ensino que ajudam a pensar os novos desafios do mundo de um jeito menos focado na absorção de conhecimentos pré-programados e mais voltado ao processo criativo e de aprendizagem do indivíduo — sem perder de vista que esse indivíduo convive em sociedade.

Em uma escala mais ampla, o sistema de ensino na Finlândia é um dos mais elogiados do mundo ao se destacar pela igualdade na educação, alta qualificação dos professores e por um currículo escolar em constante transformação.

Após explorar diferentes iniciativas locais que poderiam ganhar escala nacional para construir um currículo descolonizado, que ouve as necessidades dos estudantes e se adapta às demandas regionais, Ecoa foi investigar o que tem sido feito no exterior.

Afinal, é possível que esses e outros modelos espalhados ao redor do globo sejam transplantados ou, ao menos, inspirem uma realidade tão diversa quanto desigual como a do Brasil?

Para especialistas em educação ouvidos nesta reportagem, este não é um caminho completamente inviável no país; o primeiro passo parte da disposição a abrir a porteira.

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Educação finlandesa: modelo de excelência

As políticas educacionais e sociais da Finlândia criaram um dos modelos de excelência em educação pública mais celebrados do mundo.

O combate à desigualdade entre ricos e pobres e a implementação de uma série de reformas inovadoras em um espaço de 30 anos possibilitaram ao país nórdico — que hoje ocupa a sétima posição no ranking do Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), a principal avaliação da educação básica no mundo — reverter uma economia substancialmente agrária e se tornar uma espécie de incubadora de talentos que rapidamente galgaria o topo de ranking mundiais de desempenho estudantil, uma das bases para uma economia sofisticada e altamente industrializada.

Nas mudanças implementadas nas últimas décadas, os finlandeses reduziram o número de horas de aula, bem como os deveres de casa e provas escolares, e desindexaram esses resultados de apenas políticas educacionais ao entenderem que também as políticas sociais fizeram diferença. Essa é uma premissa do chamado Estado de bem-estar social finlandês, na contramão do discurso de estado mínimo que, de tempos em tempos, é incensado em países como Estados Unidos e Brasil.

No sistema finlandês, não há mensalidades escolares, e serviços de atendimento médico e odontológico aos estudantes são gratuitos, assim como todo o material escolar. O desenvolvimento de cada criança é acompanhado por pedagogos e psicólogos, e as políticas de Estado consideram que a ausência desses serviços e a desigualdade social impactam negativamente no desempenho do sistema educacional do país.

As mudanças ganharam outro ritmo a partir da década de 1970, quando a educação finlandesa passou a se tornar obrigatória para os ensinos fundamental e médio depois que uma decisão histórica do Parlamento local estabeleceu que todas as crianças teriam acesso igualitário gratuito a escolas de qualidade, independentemente do meio social, para os nove anos da educação básica.

Nas escolas de ensino fundamental e médio, as matérias incluem: língua materna (na Finlândia, finlandês e sueco) e literatura; outros idiomas; estudos ambientais; educação cívica; religião ou ética; história; estudos sociais; matemática; física; química; biologia; geografia; educação física; música; arte; trabalhos manuais e economia doméstica. Além disso, as metas de ensino e do núcleo básico são as mesmas para todo o país, embora autoridades e escolas municipais determinem seus próprios currículos baseados nas metas nacionais de ensino — a base nacional curricular finlandesa remonta a 1969.

Valorização dos professores

O combate às desigualdades sociais é peça-chave para entender o sucesso da educação na Finlândia, mas os resultados não chegariam ao patamar de excelência atingido sem outra frente relevante de investimento público: a formação dos professores.

A valorização desses profissionais, aos quais é disponibilizado um plano de carreira, conta com programas de formação de excelência para o magistério nas universidades do país e não apenas complementou o desenvolvimento iniciado, como fez com que a carreira se tornasse uma das preferidas entre os jovens do país.

Em agosto de 2019, durante um workshop a profissionais da educação organizado pela Prefeitura de São Caetano (Grande São Paulo), educadores da Finland University explicaram que o sucesso do modelo em seu país não advém exatamente de uma economia que já havia enfrentado sérias crises ao longo da história. De acordo com eles, os bons resultados colhidos eram fruto da importante decisão estratégica de priorizar a formação de professores.

"As inovações surgem do investimento em capital humano", defendeu, na ocasião, o diretor de operações na América Latina na Finland University, Jarkko Wickström. Junto com ele, a professora Niina Riihivuori, especialista em educação infantil, mencionou como o magistério é uma profissão valorizada e até disputada no país, que tem priorizado, sobretudo, a educação básica. Ela explicou que o modelo educacional enfatiza a autonomia e a criatividade de crianças e professores, para adaptar as diretrizes nacionais às realidades locais. "Os professores são muito bem formados. Podem ser autônomos e criativos", destacou.

Wickström viveu 11 anos no Brasil, onde fez parte da formação superior na área de Comunicação. Desde junho passado, está de volta à Finlândia, onde trabalha remotamente.

O tripé da educação finlandesa

A Ecoa, ele reforça o tripé do sucesso do modelo educacional de seu país: primeiro, a formação acadêmica e profissionalizante de futuros professores, com a junção de pesquisa e ensino e o apoio à identidade deles como professores — "eles precisam saber como um ser humano aprende, mas precisam também conhecer e testar suas habilidades para agir na sala de aula."

"A residência pedagógica é feita dentro de uma escola de aplicação, não em qualquer escola, pois esse estudante precisa de profissionais preparados para recebê-lo e serem seus mentores na formação de sua identidade de professor", explica.

As unidades que recebem esses residentes são as chamadas escolas de aplicação nas quais os professores são pesquisadores e onde as novidades são primeiramente testadas na prática - com estudantes regulares que vivem nas imediações desses colégios.

O segundo ponto é o pensamento do ecossistema educacional — dentro do qual se aliam à formação de professores também o material didático, a pesquisa, espaços modernos de aprendizagem e a formação de lideranças pedagógicas.

"Quem são os diretores da escola? Eles têm formação pedagógica? Aqui, falamos de formação de liderança pedagógica específica, nada de indicação política. Além disso, é um jeito de trabalhar entre especialistas no qual ninguém é subordinado do outro: o professor é quem mais determina como se é ensinado às crianças — temos a base nacional curricular desde 1969, mas há um compartilhamento do conhecimento entre pares, diretores e professores", explica Wickström.

Ainda dentro desse ecossistema, ele explica, estão os serviços de saúde e psicológicos dentro da escola. A proposta, afirma, é já desde a primeira infância atuar pelo bem-estar dos pequenos com base "em ciência pura" e, com isso, garantir a eles meios para a construção da cidadania.

"É um olhar que a sociedade tem de cada criança como um potencial - portanto, temos de tomar muito cuidado para não estragar e não perder a possibilidade de realização desse potencial, tanto que, nas cidades finlandesas, em geral pequenas e seguras, museus, teatros, parques - enfim, a comunidade toda — existem para as crianças usufruírem", destaca.

O terceiro pilar está calcado em cultura de confiança que tanto não concebe, por exemplo, ataques políticos a professores e diretores, como envolve todos os agentes do ecossistema escolar.

"Nesse sistema, os diretores confiam nos professores; professores confiam em seus alunos, e os alunos confiam em si", pondera. É uma lógica, portanto, muito mais focada na colaboração do que na competitividade.

Um sistema que prioriza pedagogia, não política

Para o educador Daniel Cara, doutor em Educação pela USP (Universidade de São Paulo) e coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, modelos como o finlandês e o escandinavo (Noruega, Dinamarca e Suécia) têm em comum uma relação colaborativa entre sindicatos e a gestão da educação.

"A Finlândia tem uma relação positiva entre o Sindicato dos Professores [OAJ, na sigla em finlandês] e a gestão da educação, ou seja, é um país que compreende que a organização sindical colabora com a gestão educacional", define. Sobre isso, o diretor de operações na América Latina na Finland University, Jarkko Wickström, arremata: "O sindicato garantiu maior união entre os professores e acabou que é ele que dita muitas coisas ao governo, e não o contrário", menciona.

Para o educador brasileiro, analisar o modelo de gestão na educação nacional à luz do modelo finlandês, inevitavelmente, é constatar um modelo com mais foco em política que em pedagogia.

"Uma questão fundamental sobre a Finlândia para refletirmos no Brasil é que, aqui, nunca tivemos um ministro da Educação que, de fato, conhecesse a escola básica pública. Lá, isso é algo muito concreto: a educação é gerida por educadores, ou seja, antes de tudo, é uma gestão pedagógica. O resultado disso: autores como Paulo Freire, Jean Piaget e Lev Vygotsky são debatidos em profundidade, e o trabalho deles influencia a formação de professores e ilumina a construção de políticas - e de uma forma sempre muito afinada com os atores do processo", destaca.

O educador lamenta que, no sistema brasileiro, as esferas municipal, estadual e federal ainda são orientadas por gestões de natureza mais política que, necessariamente, pedagógica.

"A Finlândia é um foco muito inspirador pelo preceito básico da pedagogia e da didática, mas, além disso, coloca o foco no aluno — diferentemente da educação brasileira, que mira a avaliação de larga escala. Pode até parecer que esses são pontos convergentes, mas nem sempre são", diz.

Cara admite que, embora referência, não é possível afirmar que o modelo finlandês é capaz de ser transplantado a realidades como a brasileira, considerando até mesmo a população e a demanda das redes de cada país. A Finlândia possui pouco mais de 5,5 milhões de habitantes, porém a densidade demográfica da capital, Helsinque, é maior que a de Porto Alegre (RS), por exemplo. A segunda maior cidade, Espoo, possui quase mil habitantes por km2, à frente de Florianópolis (SC).

"O modelo de bem-estar social deles é bem específico, uma referência no mundo, mas a ideia motriz deles, que é o pensamento pedagógico e construção conjunta, isso pode ser transplantado", aposta.

A nossa gestão, direta ou indiretamente, é feita por economistas, em geral; isso busca controlar, e não, promover a educação -- no fim, acabam sendo muito mais carcereiros da área que, necessariamente, promotores dela

Daniel Cara, doutor em Educação pela USP e coordenador geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Escola Vittra, na Suécia: função de design e pedagogia

Localizada na Suécia, a escola de ensino fundamental Vittra Telefonplan surgiu há nove anos com uma proposta pedagógica inovadora na qual as salas de aula de fronteiras delimitadas foram substituídas por espaços criativos e de convivência, sem paredes e sem carteiras, mas com acesso a ferramentas tecnológicas, nos quais os alunos de ensino infantil e médio possam explorar e desenvolver suas ideias e habilidades — em um ambiente capaz de favorecer a liberdade de pensamento e expressão deles.

Foi com esse propósito que, em 2011, um grupo de arquitetos, professores e alunos sob a direção da arquiteta Rosan Bosch criou um ambiente com puffs substituindo cadeiras, e espaços livres para caminhadas. Além disso, a preocupação com o design de arquibancadas, banquetas, mesas, lustres e outros objetos - com cores vibrantes, formas geométricas e abstratas, especialmente - estendeu-se para um laboratório, um auditório e uma biblioteca com grandes mesas onde um grupo se reúne para reuniões e um pequeno nicho onde é possível contemplar alunos trabalhando individualmente. A escola ainda conta com sala para relaxamento, cinema, sala multimídia e um espaço razoável para recreação.

A rede é gratuita e conta hoje com 23 escolas (e outras 14 pré-escolas) espalhadas pela Suécia. É considerada uma escola-modelo justamente porque seu método de ensino faz a fusão de pedagogia com design de modo a conferir maior autonomia ao aluno: com períodos mais longos em que os estudantes não precisam permanecer sentados ou em sala de aula, eles ganham mais tempo para desenvolverem seus projetos. Todos os dias antes do começo das aulas, por exemplo, reúnem-se em um auditório para discutir um tema ou uma nova ideia para um novo projeto. Para a escola, esse momento de convívio e de compartilhamento auxilia no desenvolvimento do aluno.

A ideia da autonomia se estende também a outros espaços coletivos da escola. Na biblioteca, por exemplo, o aluno pode consultar o que quiser, e quando quiser, a fim de enriquecer seus trabalhos. Aos que adotam uma postura mais autocentrada ou isolada, a escola oferece nichos, ou cavernas, onde a esse aluno seja possível contemplar seu trabalho mais atentamente. O design de cada unidade tem aspectos diferentes e é desenvolvido a partir do território em que está localizada.

Embora com uma natureza organizacional mais livre, a Vittra segue metas pedagógicas voltadas ao aprender a aprender, bem como no aprender com base em experiências cotidianas. Compreender a própria aprendizagem, ter fé em si mesmo e em suas capacidades, desenvolver a própria capacidade de se comunicar e de interagir respeitosamente com os outros, bem como estar equipado para estudar e trabalhar em um ambiente internacional, também figuram como metas.

Escola da Ponte, em Portugal: sem disciplinas, com resultados

Também com um método pedagógico baseado no incentivo à autonomia, a portuguesa Escola da Ponte, referência da educação básica mundial, abriu mão de salas de aula, disciplinas e horários regrados. Em vez disso, professores apresentam atividades com temas variados, e os alunos as escolhem conforme o próprio interesse.

Também as provas são solicitadas pelos estudantes — isto é: por livre e espontânea vontade deles, não por pressão da escola.

Com a divisão das mesas divididas estimulam o trabalho em grupo, os alunos ficam organizados não por séries ou turmas, mas segundo seus interesses para desenvolver projetos. Ao todo, cada estudante passa por três núcleos conforme se torne mais autônomo: iniciação, consolidação e aprofundamento, com mais ou menos tutoria, até ele mesmo gerenciar suas atividades. Já as disciplinas cedem espaço a diferentes dimensões: linguística, lógico-matemática, naturalista, identitária, artística e pessoal e social.

A Escola da Ponte funcionou até 1976 como uma escola convencional de 1ª a 4ª série: professores em sala de aula, com suas respectivas turmas e seus métodos. Grande parte dos alunos vinham da experiência de evasão escolar ou haviam sido expulsos de outras unidades após episódios de indisciplina ou violência.

Até então, o foco do trabalho escolar eram as repetições de lições. Nessas últimas quatro décadas, a escola está localizada em São Tomé de Negrelos, cidade com cerca de 4 mil habitantes a cerca de 30 km do Porto, ao norte de Portugal.

Green School, em Bali: sabedoria verde na escola de bambu

Conhecida como "a escola mais verde do mundo", a Green School, na ilha de Bali, na Indonésia, é uma estrutura que foge do padrão mais convencional de escolas pelo mundo já a partir de sua estrutura, feita quase totalmente de bambu — abundante na ilha e principal material usado na construção dos prédios da escola, em formato de espiral. Sem paredes, as salas de aula têm bambu até mesmo no quadro negro.

O conceito verde dessa escola-modelo não tem relação somente com a estrutura em bambu: pelo menos 80% da eletricidade ali utilizada é oriunda de painéis solares. Além disso, os banheiros são de compostagem — todo o lixo é reciclado ou composto —, o espaço conta com hortas orgânicas e criações de animais, e a comida servida é produzida por agricultores locais.

A metodologia da escola internacional, por outro lado, oferece uma formação baseada na visão holística, no aluno e na consciência ambiental — com uma integração entre os conteúdos acadêmicos tradicionais e a aprendizagem ambiental e experiencial, a partir de práticas sustentáveis e focada no aprendizado individual do aluno. O ciclo do arroz na cultura balinesa, o posterior plantio de campos de arroz na escola e a colheita e consumo do alimento são etapas, por exemplo, presentes na formação dos alunos — que têm a possibilidade de aprender, cada uma, em seu próprio ritmo.

A escola foi fundada no segundo semestre de 2008 por John Hardy, um ex-joalheiro canadense adepto dos princípios do desenvolvimento sustentável e morador de Bali desde 1975. Tanto que, dos alunos de 3 a 14 anos da unidade, os mais novinhos são estimulados desde cedo à prática da agricultura orgânica, bem como à reciclagem e os meios de transporte limpos.

Question do Learn, em NY: currículo gameficado

"Primeira escola do mundo a ter 100% de seu currículo baseado em jogos", como afirmam seus idealizadores, a escola Question to Learn, da rede pública de Nova York, faz uso de um material divertido e didático, mas que requer atenção a exemplo de qualquer outra atividade escolar.

Para os criadores do modelo, ele tem substituído com bons resultados de engajamento o sistema escolar tradicional, focado na memorização, preparado os alunos para o trabalho em equipe, com soluções criativas, gerenciamento do tempo e estímulo ao pensamento independente.

Criada em 2007, fruto de uma parceria entre o Institute of Play, ONG formada por designers profissionais de videogames, e a New Visions for Public Schools, instituição que promove modelos inovadores de educação na rede pública de Nova York, a Q2L conta com um currículo baseado na gamificação e tem professores treinados graças à doação financeira de uma fundação beneficente. Já o estado arca com as contas da escola, como salário dos professores, luz e manutenção de equipamentos.

No lugar de disciplinas como matemática, ciências e gramática, as aulas na Q2L são divididas em cinco grandes conjuntos — com foco em números integrados a letras, palavras e artes, a fim de produzir uma percepção mais aberta do raciocínio matemático; outro grupo é a educação física mesclada a conteúdos de saúde, nutrição, psicologia e integração social.

Pluralidade é valor fundamental

Quais são os valores que devem nortear a educação de hoje e do futuro? Do mais convencional ao mais disruptivo sistema pedagógico, o respeito ao diverso é a melhor alternativa a se trabalhar no ambiente escolar, seja ele de que país ou de qual realidade for.

A avaliação é da professora da faculdade de ensino da UnB (Universidade de Brasília) Catarina de Almeida Santos, pedagoga com doutorado em política educacional pela USP (Universidade de São Paulo). Atualmente, ela integra o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, iniciativa que surgiu em 1999 impulsionada por um conjunto de organizações da sociedade civil com objetivo de somar diferentes forças políticas e priorizar ações de mobilização, pressão política e comunicação social em favor da defesa e promoção dos direitos educacionais. O grupo é considerado hoje a articulação mais ampla e plural do setor no Brasil.

Para a diretora, mais que se pensar em transplantar para o Brasil modelos de sucesso no exterior, é preciso que o país ofereça condições para a própria educação combater a desigualdade.

"Dos valores da educação, o mais caro é o respeito ao diverso, e não tem como trabalhar a lógica do respeito pela lógica hegemônica: há que se trabalhar pelo fim da desigualdade, seja ela social, econômica, sexual, religiosa, cultural... E, com isso, combater o racismo, o machismo e a homofobia", define. "Creio que o valor mais importante da educação, portanto, deveria ser a desnaturalização da barbárie. Como tratar as desigualdades como se fossem algo natural?", questiona.

Embora com uma das populações culturalmente mais diversas do mundo, o Brasil, afirma a estudiosa, ainda não possui um sistema educacional capaz de formar sujeitos que convivam em uma sociedade e construam nela em conjunto com as diferenças.

"Nossa educação nunca desnaturalizou a barbárie da desigualdade, e, quando buscou fazer isso, houve uma ofensiva, a começar pelas igrejas, em ataque às questões de gênero e de orientação sexual, por exemplo. Em vez de respeitar o que é diverso, negamos o mais primordial: temos 11 milhões de analfabetos e 74 milhões que não concluíram a educação básica", ilustra. "O modelo a ser adotado deveria desvendar essa realidade e ser capaz de trabalhar com o aluno real no sentido de transformá-lo em uma pessoa com todas as capacidades que ele tem", acredita.

Catarina lembra que, embora falar das escolas-modelo de formação de cidadãos remeta hoje mais a experiências internacionais, já no Brasil da década de 1930 um movimento de educadores liderado por Anísio Teixeira — considerado o pai da escola pública no Brasil — apostava que formar pessoas contra as desigualdades seria um mecanismo interessante de fortalecimento democrático e de busca por um país próspero e livre.

"Anísio Teixeira cresceu e morreu debatendo por isso, e os ataques que vemos hoje à escola acontecem porque ela existe. E, com toda a sorte de problemas que temos, estaríamos anos-luz de onde chegamos sem educação. Veja: em algum momento, o feminicídio na sociedade brasileira não era uma prática condenável. para se ter uma ideia; se não estamos hoje em um estado de barbárie é porque nós, educadores, estamos lutando", sublinha.

Por outro lado, a educadora defende que a formação dos professores da escola pública brasileira precisa ser revista. "Ser professor não é simplesmente saber conteúdo: tem que saber ensinar, porque só assim vai haver uma dimensão do que é aprender," diz.

Também o respeito à diversidade entre esses profissionais é necessário. "Hoje, cerca de 2% dos professores da UnB são negros; muitos professores da educação básica, na qual a maior parte dos alunos são negros, ainda é de profissionais brancos, os quais, mesmo que com boa vontade sobre o debate racial, não farão as pessoas brancas entenderem o racismo sob outra perspectiva. Quando tivermos todos atuando em todos os espaços, vamos entender como transformar educação em riqueza."

Perspectivas para o cenário brasileiro

Pensar na educação brasileira como modelo de excelência capaz de inspirar outras realidades pelo mundo demanda investimento em formação de professores e em gestão escolar, defendem os especialistas ouvidos nesta reportagem.

"Mesmo a experiência uruguaia, aqui na nossa vizinhança sul-americana, se preocupou menos com o desempenho em larga escala para focar em uma gestão estruturada — graças, em grande parte, ao reformador educacional Pedro Varela [1835-1879]", afirma o educador Daniel Cara sobre o fundador da escola pública no Uruguai.

Na avaliação de Cara, enquanto a educação pública brasileira for vista como "a educação do filho do outro" e "nunca a educação dos filhos dos donos do poder", dificilmente problemas estruturais do setor serão sanados. "Porque a educação dos filhos da elite não está representada na gestão pública. E, na medida em que o processo de elitização da educação brasileira a faz ser ainda tratada como privilégio, e não como direito, isso faz com que as elites não se importem com encaminhamentos da educação pública", analisa.

"Agora, mesmo com um governo oposto aos princípios do Frente Ampla [partido da esquerda uruguaia], a referência finlandesa continua sendo seguida pelos uruguaios, com uma gestão de educação feita por educadores e com um referencial na ciência pedagógica, sem deixar de trabalhar a tecnologia em profundidade. Resultado: durante a pandemia, eles conseguiram fazer um voo de cruzeiro", compara.

Por sinal, a crise sanitária da Covid-19 ajudou a mostrar, na avaliação de Cara, como os programas de educação em geral não foram priorizados, sobretudo na rede mais básica. "Muitos gestores já se acomodaram com o fato de que as escolas estão fechadas porque isso economiza dinheiro; mesmo na recém-terminada eleição municipal, o tema da educação não foi aprofundado e seguiu alheio à questão pedagógica", pontua.

O diretor de operações na América Latina na Finland University, Jarkko Wickström, reforça o educador brasileiro.

"Até conheço exceções no Brasil, mas me parece que a regra no país é que a resposta para a educação vem de cima e de políticos que nunca estudaram um único dia de pedagogia. Não são decisões tomadas a partir de 200 ou 300 anos de estudos pedagógicos, mas com foco em um projeto de três ou quatro anos de muito achismo", lamenta.

É possível mudar esse tipo de realidade do país? Para o finlandês, a saída é uma só: minar o processo de desvalorização do profissional professor.

"A profissão tem que ser melhor regulamentada, com mais exigências. Fizemos esse piloto nos anos 1970 e deu certo, assim como em Portugal, Chile, Coreia e Singapura. Levantar as exigências pela permissão de exercer esse cargo afeta diretamente os resultados de aprendizagem, e, junto com isso, aumenta o salário e melhora o posicionamento social dessa classe", explica.

Wickström defende também que é fundamental mudar uma cultura de nomeações políticas em todas as esferas da gestão educacional. "Em geral, educação não depende de política, fatos não mudam: o mecanismo de aprendizado não muda conforme a decisão dos políticos, esteja o aluno aprendendo Português ou Matemática".

Apostar em uma formação prática de professores, também a partir de como a profissão é regulada, é outro elemento que contribuiria ao cenário brasileiro — a exemplo das escolas de aplicação finlandesas onde são testadas, pelos alunos de pedagogia, novidades para a educação.

"Como é possível formar professores, que formam seres humanos, em cursos de ensino à distância? É como você formar um cirurgião de neurologia pelo computador, fornecer a ele um monte de informações e dizer: 'eis aqui o seu paciente, menor de idade, pronto para ser operado'. O que aquele médico estaria fazendo com a criança nós estamos fazendo com o futuro do país e de uma geração, se essa formação não mudar".

Ele conta que, na Finlândia, houve uma "decisão forte de todos os partidos" no pós-guerra em se apostar na educação a fim de que os horrores vividos não mais se repetissem.

O sistema de avaliação nas escolas brasileiras, ainda focado em avaliações bimestrais semestrais, com memorização, também revela objetivos diferentes entre os dois países, na avaliação do finlandês. "Cada aluno tem uma necessidade pedagógica diferente, e o professor precisa estar capacitado para isso. Mas é preciso haver a decisão de se melhorar o processo pedagógico, em vez de se criarem avaliações que de notas individuais e se criarem rankings de escolas. Acredito que é possível para o Brasil mudar a abordagem e construir esse relacionamento, que vai muito além da prática na sala de aula", sugere.

Precisamos garantir o entendimento disso, dar as mesmas chances. A discussão tem sido no nosso país o quanto isso custa, não se isso deve ou não ser apoiado. É preciso tirar o sistema educacional da conversa política e investir energia, por exemplo, em construir formas de haver mais confiança dos professores.

Jarkko Wickström, diretor de operações na América Latina na Finland University

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