Na semana passada assistimos perplexos a retirada do ar de diversos microdados educacionais, mantendo-se apenas informações parciais e limitadas do Censo Escolar de 2021 e do ENEM de 2020. Todos os demais dados —como as séries históricas completas do Censo Escolar, do ENEM, do Censo do Ensino Superior e do Sistema de Avaliação do Ensino Básico (SAEB)— simplesmente sumiram da página do Inep. Para os pesquisadores que usam dados de educação em seus estudos, a tragédia era anunciada. Nos últimos anos, foram recorrentes a supressão de informações e negativas de acesso a dados sob justificativa da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD).
Por exemplo, a supressão das informações de sexo no SAEB de 2019 representou um enorme retrocesso para pesquisas de gênero, considerando que muitos dos fatores responsáveis pelas diferenças que se observam entre homens e mulheres, como vieses inconscientes e estereótipos, atravessam toda a trajetória educacional das meninas. Hoje todo o histórico do SAEB está indisponível, e a divulgação atual do Censo Escolar de 2021 deixou de incluir as variáveis de gênero e de raça/cor que antes eram divulgadas, com explicações pouco convincentes de que a divulgação destas informações, sem as outras variáveis identificadoras, viola a LGPD.
Na mesma linha, em 2019, o Inep modificou o código anonimizado dos alunos nas bases do Censo de Educação Superior, para impedir o acompanhamento do mesmo aluno em diferentes anos, o que inviabiliza análises sobre permanência, progressão e formatura nos diversos cursos e universidades do país, importantes para os diagnósticos de muitas políticas públicas que vêm sendo implementadas, como a Lei de Cotas e o Sistema de Seleção Unificada (SISU). Como pano de fundo, está novamente a preocupação com a proteção de dados pessoais e o temor às sanções impostas pela LGPD aos gestores destes dados.
É claro que a preocupação com a proteção de informações sensíveis é legítima, mas cumprir a LGPD em sua forma estrita, priorizando os riscos em detrimento dos benefícios, não vem sem custos para o conhecimento científico e a análise da eficácia das nossas políticas públicas. Bonita no papel, a LGPD nos coloca no mesmo patamar de regulação de países desenvolvidos, mas esquece que a não adequação à regra também nos deixa à deriva. A consequência imediata de uma regulação severa, da qual decorre adequação duvidosa, especialmente do setor público, é um apagão de informações, conforme visto na reação desproporcional do Inep de tirar todas as informações educacionais do ar.
Mas a postura do gestor público frente à LGPD não significa que ele queira impedir a avaliação de políticas públicas ou que haja algo a esconder quando ele não disponibiliza dados. Ao contrário, é a reação natural quando uma norma complexa e vaga, que deixa em aberto uma série de interpretações sobre sua violação, impõe custos pessoais aos gestores e os responsabiliza diretamente. É completamente natural esperar que os gestores públicos tomem a atitude mais conservadora em um cenário que só apresenta riscos.
Entre as soluções apresentadas pelo Inep, está o acesso aos dados por meio do já existente Serviço de Acesso a Dados Protegidos (SEDAP), que se dá por um um acesso físico a uma sala localizada nas dependências do Inep em Brasília. O modelo de acesso atende prioritariamente pesquisas acadêmicas, via submissão de projeto de pesquisa, em um processo extremamente custoso em termos de tempo e recursos.
Não surpreende que desde a criação da sala, de 2014 até 2021, apenas 111 pesquisas tenham sido aprovadas. Entre eles, a grande maioria das pesquisas é de pesquisadores ou institutos sediados em Brasília, ou então de universidades privadas ou internacionais, tipicamente com mais recursos financeiros para executar suas pesquisas em Brasília. Sem a possibilidade de acesso remoto, o modelo atual perpetua a desigualdade no desenvolvimento de pesquisas, prejudicando alunos, professores e pesquisadores com menos recursos.
É ainda mais importante notar que os impactos da retirada do ar dos dados educacionais vão além de seus efeitos para o conhecimento científico e afetam a sociedade de forma muito mais ampla. Como fazer um jornalismo sério sobre o contexto educacional do país sem dados? Como pais de filhos com alguma necessidade especial vão poder identificar as escolas que efetivamente atendem crianças com necessidades especiais? Como fazer o accountability do corpo docente e do serviço educacional que está sendo oferecido sem acesso à informação?
A LGPD tal qual vem sendo interpretada e aplicada pelo setor público é um retrocesso pesquisas científicas e para as políticas públicas baseadas em evidências, para a divulgação de informações pela imprensa especializada e para o cidadão comum que tem o direito de saber sobre a qualidade da educação que está sendo oferecida no país.
Esta coluna foi escrita em colaboração com Christiane Szerman, aluna de doutorado de Princeton, e minha coautora no primeiro projeto aceito pelo SEDAP em 2014, hoje publicado no Economics of Education Review. A artigo vincula dados do ENEM e do Censo de Educação Superior. Mostramos que o Sistema de Seleção Unificada amplifica a competição, alterando composição demográfica dos alunos, que possuem notas do ENEM mais altas e vem de outras regiões do país. A integração do mercado educacional aumenta a estratificação de alunos por qualidade das instituições de Ensino Superior, ampliando o gap entre as instituições de maior e menor qualidade.
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