Educação

Graphogame: Educadores rebatem as promessas de Bolsonaro sobre o aplicativo

Ao longo da campanha, o presidente tem ‘vendido’ a ideia de que o jogo educativo é capaz de alfabetizar crianças em seis meses

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Foto: Nelson Almeida/AFP
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Durante o debate presidencial transmitido pela Tv Bandeirantes, no domingo 16, o presidente Jair Bolsonaro (PL) fez uma declaração vista como ‘reducionista’ por educadores e pesquisadores da educação.

Ao citar quais seriam as ações concretas para superar as desigualdades educacionais potencializadas pela pandemia, entre elas a defasagem na alfabetização, o presidente fez assertivas sobre o potencial alfabetizador do Grapho Game, aplicativo lançado pelo Ministério da Educação, e que oferece uma dinâmica de jogo a fim de apoiar o desenvolvimento da ortografia e habilidades de leitura.

“O nosso Ministro da Educação tem um aplicativo que foi aperfeiçoado e já está há um ano em vigor, chama-se Grapho Game. Ou seja, num telefone celular se baixa o programa e a garotada fica ali. Letra A, ela aperta o A e aparece o som de A. Vai para sílabas. C e A: Ca. No passado, no tempo do Lula, a garotada levava 3 anos para ser alfabetizada. Agora, em nosso governo, leva 6 meses”, declarou, ao também direcionar ataques a antigas gestões dos governos petistas.

A professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Elaine Constant, coordenadora do Laboratório Integrado de Estudos de Alfabetização e Linguagem (LIA), critica o caráter ‘reducionista’ da declaração de Bolsonaro diante o processo de alfabetizar, que inclui  estratégias de apropriação do alfabeto, mas também de letramento.

“A alfabetização prevê uma participação social a partir da língua. E para que as crianças cheguem ao entendimento do que está lendo ou escrevendo é preciso que haja a apropriação de discursos, gêneros discursivos. Não é só decorar sílabas”, coloca ao reforçar que é limitante o entendimento de que crianças se alfabetizam a partir de pequenas partículas do alfabeto.

O método fônico, método de alfabetização que prioriza o ensino dos sons dos grafemas do alfabeto, é uma das principais apostas do secretário de alfabetização do MEC, Carlos Nadalim, para superar as defasagens na alfabetização. Para a pesquisadora, a defesa intransigente do método não dialoga com os avanços do campo da alfabetização frente às demandas contemporâneas.

“Veja, até a década de 70, quem se responsabilizava em pensar na alfabetização eram as editoras, as cartilhas faziam isso muito bem. Quando se começa a questionar até que ponto esses métodos estavam conseguindo atingir alguns grupos, isso começa a ser analisado, essa alfabetização vai mudando, dialogando com as práticas construtivistas, do letramento, análise discursiva. E essa discussão se amplia a todo o momento. Então, para nós que lidamos com a política de formação de professores alfabetizadores, a questão desta insistência na sílaba, na vogal, é reduzir o processo de alfabetização dessas crianças”.

‘Não existe alfabetização sem um bom professor’

Também foi alvo de críticas dos especialistas ouvidos por CartaCapital a dimensão alfabetizadora concedida pelo presidente Jair Bolsonaro ao aplicativo, sem mencionar a necessidade de uma mediação por parte de educadores.

O Grapho Game é uma ferramenta educacional desenvolvida por pesquisadores da Finlândia, que teve seu conteúdo adaptado para o português pelo Instituto do Cérebro (PUC-RS), pelo pesquisador Augusto Buchweitz, e foi incorporado pelo MEC no âmbito da Política Nacional de Alfabetização e do programa Tempo de Aprender.

Para a diretora do Centro de Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas, Claudia Costin, a declaração do presidente é ‘completamente equivocada’.

Ele é utilizado pelo Ministério da Educação na Finlândia como uma das várias ferramentas no processo de alfabetização. Acho que o trabalho em torno do aplicativo foi bom, mas ele é um joguinho, seria o mesmo que dizer, olha em vez de ensinar Química para os jovens do Ensino Médio tem aqui um aplicativo feito para desenvolver algumas habilidades”, critica ao reforçar a importância do professor alfabetizador.

Ele não alfabetiza sem a presença de um bom professor, não existe alfabetização sem um bom professor. Tampouco é utilizado na Finlândia para este fim, mas associado a outros materiais”.

Na avaliação de Priscila Cruz, presidente executiva da ONG Todos pela Educação, a declaração ‘mentirosa’ de Bolsonaro também desnuda o descompromisso do governo com a carreira docente e sua qualificação.

“De forma alguma [um aplicativo] substitui o papel do professor que, aliás, nesse governo, tem sido tratado muito mal. A formação inicial da categoria, que é  uma atribuição do governo federal, tem crescido 100% à distância. Hoje 53% daqueles que estão se formando para serem futuros professores estão totalmente no Ensino à Distância. Esse tipo de caminho equivocado achando que um aplicativo pode alfabetizar uma criança, ou até mesmo formar professores à distância, é absolutamente anticientífico, não tem nenhum amparo em nenhuma pesquisa, ou em alguma boa pratica conduzida aqui no Brasil e no mundo”.

‘Ruptura de uma política de estado’

Bolsonaro ainda alegou ser possível concluir o processo da alfabetização em um tempo de seis meses, momento em que criticou o tempo de três anos praticados por gestões petistas. Em 2012, a presidenta Dilma Rousseff lançou o Pacto pela Alfabetização na Idade Certa, que previa um esforço integrado da União, estados e municípios para alfabetizar os estudantes até os oito anos de idade.

“Essa política tinha que ser melhorada, mas previa um compromisso com a alfabetização dentro do tempo escolar, o que é importante”, pontua Elaine Constant, que acrescenta. “Sabemos, no entanto, que a alfabetização não se encerra nem em três anos, é uma ideia que deve ser perseguida a vida toda, sobretudo quando consideramos o direito à alfabetização, e os demais públicos como jovens e adultos, que cursam o EJA“, defende.

Para o cientista político Daniel Cara, a política de alfabetização foi mais uma que, sob o governo Bolsonaro, perdeu o enfoque enquanto política de estado, e passou a ser fortemente permeada pelas bandeiras ideológicas do atual governo.

“Prova disso são as tentativas da Associação Brasileira de Alfabetização em dialogar tanto com os produtores do Grapho Game, como com o governo, no sentido de colaborar com a construção dessa política, que precisa ser recalibrada ano a ano. O que se teve foram portas fechadas e, nesse contexto, sai como ‘alternativa’ à ampla política de alfabetização um aplicativo, que também chega envolto em interesses comerciais. É revoltante!”.

O que diz o MEC

A reportagem de CartaCapital procurou o Ministério da Educação questionando a pasta se há evidências de crianças já alfabetizadas com o Grapho Game, como afirmou o presidente Jair Bolsonaro.  A pasta não respondeu ao questionamento.

Em nota, o ministério destacou que ‘o aplicativo é uma ferramenta de apoio à alfabetização, que complementa, e não substitui, a atuação dos professores em sala de aula.

Acrescentou ainda que, além do GraphoGame, o Programa Tempo de Aprender disponibiliza materiais e recursos pedagógicos que tem o objetivo de qualificar a alfabetização dos estudantes brasileiros. O ministério reforçou que, por meio do Programa, professores relatam que são capazes de alfabetizar estudantes em até seis meses.

O MEC acrescentou ainda que o jogo é oferecido em formato ‘off-line’, que seu download é gratuito e que não há exigência de adesão das redes de ensino para o uso do aplicativo.

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