Fernando Cássio
[email protected]Professor da Faculdade de Educação da USP. Integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação
O MEC e bancada petista precisam decidir se vão lutar pelas agendas do direito à educação ou pela reforma do ensino médio de Michel Temer
As últimas duas semanas foram frustrantes para qualquer pessoa que tenha compreendido os efeitos perversos do chamado Novo Ensino Médio (NEM) sobre a educação pública no Brasil. Pressionado por estudantes, educadores e pesquisadores que exigiam a revogação da reforma, o Ministério da Educação não teve saída. Precisou abrir consulta pública, mediar antagonismos e elaborar um projeto de lei que melhora alguns pontos da atual reforma e mantém (ou piora) outros tantos.
O conteúdo da minuta foi anunciado pelo governo no final de setembro, mas a apresentação do PL n. 5.230/2023 à Câmara dos Deputados só se deu um mês depois, acompanhada de um pedido de urgência constitucional para a tramitação. Uma vez que o ano letivo de 2023 já estava no fim (e, assim, qualquer nova política de Ensino Médio só teria consequência prática a partir de 2025), muitos se perguntaram sobre o motivo da pressa. Teriam os membros do governo avaliado que a política do Ensino Médio proposta pelo MEC estaria imune a reveses caso tramitasse a jato no Congresso? Não foi o que se viu.
Considerando que tanto o governo Lula quanto a bancada petista são formados por políticos experimentados, a sucessão de barbeiragens no trato do PL do Ensino Médio nas últimas semanas exige uma explicação melhor do que aquela regurgitada pelo governismo infantiloide das redes sociais: “são as vicissitudes da governabilidade”. No caso da educação, que é pauta absolutamente secundária para o governo Lula, é preciso olhar com mais calma para as relações do governo e dos parlamentares petistas com o centrão e com as fundações e institutos empresariais.
O pedido de urgência feito pelo governo foi acatado por Arthur Lira, que indicou Mendonça Filho (União/PE) para a relatoria do PL que modifica justamente a reforma do Ensino Médio que o próprio – quando ministro da educação de Michel Temer – ajudou a colocar de pé.
O governo sabia desde setembro que Mendonça estava ávido pela relatoria e pela oportunidade, como o próprio deputado declarou mais tarde, de “aprimorar o legado de Temer” por meio do PL do Ensino Médio. Não se sabe se o Planalto ou o MEC tentaram impedir a indicação, embora seja de conhecimento público o empenho dos ministérios palacianos na liberação de 10 bilhões de reais em emendas parlamentares para garantir votações em projetos de interesse do Ministério da Fazenda somente na última semana. A educação, repito, sempre foi pauta secundária.
Mendoncinha – como é conhecido no parlamento – é um típico deputado medíocre do centrão. Agraciado por Temer com o MEC, aproveitou os holofotes para se notabilizar como pai da Reforma do Ensino Médio. Para isso contou com os préstimos de uma dúzia de fundações e institutos educacionais vinculados às maiores fortunas do país, cujo projeto elitista depende de políticos arrivistas para frutificar. Essa relação simbiótica garante a sobrevida do político sem estofo à custa do acesso aos espaços de tomada de decisão que ele franqueia às organizações privadas.
Se a pauta educacional é acidental na vida de Mendoncinha – como, aliás, é para Camilo Santana e para tantos outros ocupantes do MEC –, ela certamente não o é para as fundações empresariais. Essas fundações compreendem muito bem o efeito-cascata de uma reforma educacional estrutural como a do Ensino Médio sobre as políticas de ensino técnico, de avaliação em larga escala, de formação docente e etc. Influenciar na pauta educacional nesse nível é influenciar de forma profunda e duradoura na organização do mundo do trabalho e na estrutura social do país.
O caráter das propostas do empresariado para a educação pública – menos acesso ao conhecimento científico e mais ensino profissionalizante ralé para estudantes pobres – reveste-se de uma retórica de modernização educacional que transforma estrume em ouro. Nessa lógica, o “novo” Ensino Médio (com as tais aulas de “brigadeiro gourmet” e “o que rola por aí?”) seria necessariamente melhor e mais interessante do que o “velho” (com aulas das disciplinas “tradicionais”). Com o debate simplificado pela dicotomia novo/velho, as perguntas que realmente importam são deixadas de lado. “Melhor” para quem? “Mais interessante” para quem?
As fundações e institutos empresariais são o “centrão da educação”. Essas organizações, que colaboraram com o golpe contra Dilma, estiveram de mãos dadas com Jair Bolsonaro em 2019, e só romperam relações ao perceberem que não conseguiriam impor as suas agendas a um governo ainda mais autoritário do que elas. Escorraçados por Abraham Weintraub, se juntaram a parlamentares e secretários de educação para empunhar a mesma bandeira de Bolsonaro – “menos Brasília, mais Brasil” – que atirou o MEC à irrelevância política. Implementaram o NEM sem o ministério, e são diretamente responsáveis pela calamidade vivida pelas juventudes nas escolas públicas do país.
Com a mudança de governo, foram novamente recebidos pela porta da frente: compuseram a equipe de transição de Lula, indicaram pessoas para altos cargos no MEC e integram em maioria o Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável – o “Conselhão” – da Secretaria de Relações Institucionais. Há quem diga que esta é uma das contrapartidas pelo apoio dos bilionários na chamada “frente ampla” em 2022. O governo, por outro lado, foi muito menos generoso com os setores do campo popular que, muito antes da eleição, se insurgiram contra o golpe de 2016, a prisão arbitrária de Lula e a ignomínia do governo Bolsonaro. A estes grupos reservou a honrosa participação em consultas públicas, grupos de trabalho e outros espaços de baixo impacto decisório. Singela contrapartida.
Ainda assim, o centrão da educação não se deu por satisfeito. Elogiou o PL do MEC para fazer um aceno público ao governo, mas assessorou o relator Mendonça Filho nos bastidores para produzir um substitutivo para a política de Ensino Médio que é praticamente igual à MP n. 746/2016 que originou o NEM. Roubou do governo os anéis, depois os dedos, depois as mãos e agora quer os braços.
O ministro da Educação, Camilo Santana. Créditos: Reprodução Facebook
O ministro da Educação Camilo Santana assiste a tudo impassível, inclusive por ser ele próprio ideologicamente favorável à reforma do Ensino Médio atual. É ladeado por Izolda Cela, secretária-executiva do MEC, ainda mais entusiasta do gerencialismo educativo das fundações e institutos empresariais. Nas semanas que sucederam à apresentação do PL, Camilo e Izolda permaneceram em silêncio enquanto Mendonça Filho tripudiava sobre a consulta pública e o texto produzido pelo MEC.
Fundações e institutos empresariais tratados a pão-de-ló pelo governo Lula sabotaram ativamente o trabalho do MEC sob o silêncio cúmplice do ministro e da secretária executiva. Após insistência do Planalto, Camilo veio a público algumas vezes para defender o PL produzido por sua equipe. Não convenceu. Na última hora, o governo solicitou a retirada da urgência do PL, mas Lira acolheu e pautou a votação de um novo requerimento de urgência apresentado pelo partido Novo, linha auxiliar do bolsonarismo com apenas três deputados federais que, estimulada pela claudicância do governo, também se sentiu à vontade para fustigar a política do Ensino Médio. E conseguiu.
A votação da urgência se deu no mesmo dia da sabatina de Flávio Dino no Senado Federal. Camilo, exonerado do cargo de ministro para votar a favor de Dino, passou o dia no Congresso Nacional, mas não consta que tenha atravessado o salão verde para convencer os deputados de que o PL n. 5.230/2023 proposto pelo governo que ele representa deveria tramitar mais lentamente.
A exoneração temporária do ministro foi intensamente comemorada por professores e estudantes, que por um segundo acreditaram que ela seria definitiva. Isso evidencia duas coisas. Primeiro, que ainda sobrevive a expectativa de uma sinalização firme do governo Lula em favor das agendas do direito à educação. Segundo, que a confiança e o prestígio do ministro junto ao campo educacional (leia-se: o campo educacional não vinculado a bilionários e seus apaniguados) são baixíssimos. Camilo, cujo gabinete está sempre fechado para os movimentos de luta pelo direito à educação e sempre aberto aos compadres das fundações empresariais, não tem feito muito para reverter esse quadro.
A votação do requerimento de urgência impôs uma derrota vexaminosa ao governo Lula: 351 a 102. A vergonha foi magnificada por um fato insólito: na orientação de voto, o PT liberou a bancada para votar a favor do requerimento do partido Novo. Depois orientou voto contrário, mas ainda assim parlamentares do partido – incluindo o líder da bancada, José Guimarães (PT/CE) – votaram contra o governo.
O corpo mole em relação ao PL do Ensino Médio não se deve apenas à adesão de membros do Executivo às pautas regressivas das fundações e institutos empresariais, mas a uma estratégia de ação combinada entre o governo e a sua base parlamentar. O comportamento errático (governo pedir urgência, ministro não defender o PL, governo retirar a urgência, PT liberar a bancada na votação de requerimento da oposição, PT retirar a liberação, líder do governo e outros deputados petistas votarem contra o governo…) não deriva de amadorismo político.
Que a educação é pauta secundária para o governo Lula e que o ministro da educação joga no time das fundações empresariais, até o mundo mineral sabe. Contudo, a votação da urgência e as notícias dos bastidores revelaram que o acordão em torno do NEM envolve um grupo de deputados petistas que não necessariamente apoiam as agendas das fundações empresariais, mas votam com o centrão para não desgastar a relação. Por puro pragmatismo, apoiam a reforma de Temer e confundem-se com fisiocratas como Mendonça Filho, mas juram que é o governo Lula que está pautando o centrão. Alguns deputados de esquerda chegaram ao cúmulo de simular mobilização com as suas bases enquanto costuravam acordos com o centrão a portas fechadas.
Que justificativas esses parlamentares criam para convencer a si mesmos de que esse comportamento é aceitável? Renunciar à agenda agora e ficar no poder para fazer o que é certo amanhã? Como isso nunca acontece, já que amanhã sempre haverá outra pauta de direitos a vender, resta apenas a perpetuação no poder. A justificativa pragmática não passa de autoengano e hipocrisia.
Em meio a tanta sabotagem e tanta negligência com uma reforma educacional que pode piorar ainda mais o Ensino Médio brasileiro, o governo e alguns parlamentares plantaram distratores: a aprovação de uma “bolsa ensino médio” (um prêmio em dinheiro para jovens trabalhadores permanecerem na escola) e a possibilidade de votação da PEC n. 169/2019, que permitiria a acumulação remunerada do cargo de professor com outro qualquer. Assim, a energia de parte da base que passou os últimos anos lutando pela revogação do NEM foi dispersada pelo governo – com a colaboração de parlamentares de esquerda e de outras lideranças políticas interessadas em manter seus cartórios – para a comemoração de pequenas vitórias ou para mobilizações mais urgentes do que a do PL que pode destruir em definitivo o Ensino Médio da maioria.
Distraídas as bases, toda a energia festiva do governo Lula na semana passada se concentrou na comemoração da aprovação da reforma tributária. Mas como o centrão não dorme em serviço, seguirá criando mecanismos de desoneração fiscal corrosivos ao erário que financia as políticas sociais. Impermeável ao rapapé fiscalista de Fernando Haddad, a Faria Lima votará no primeiro fascista que aparecer em 2026. Já a base eleitoral de uma futura candidatura progressista, que vem em sua maioria do movimento de massas que defendeu a qualidade do Ensino Médio nos últimos anos e que conseguiu demonstrar a inviabilidade do NEM, está sendo escanteada pelo governo e pela sua base parlamentar mais chegada.
Não é à toa que Mendoncinha acusa o movimento #RevogaNEM de revanchismo político. São eles, o centrão e as fundações empresariais, que foram derrotados no debate público e agora usam seus tratores para aprovar um texto sem respaldo da sociedade em regime de urgência. O governo, que até agora não entrou em campo, tem a possibilidade de reverter parte dos retrocessos no Senado Federal, mas já vimos esse filme em 2016 e sabemos como termina.
Se o “novo” Ensino Médio aprovado no Congresso Nacional for igual ou pior do que o atual NEM, ele será descredibilizado pela população ainda antes das eleições de 2026. O custo político do desmonte recairá sobre um único indivíduo: aquele que ocupa a cadeira mais nobre do Palácio do Planalto. O centrão e o “centrão da educação” aguardarão placidamente o deslinde do processo eleitoral para seguir parasitando o futuro governo. Com Lula ou sem Lula.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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