Saúde Coronavírus

Governo federal pode ser responsabilizado por mortes da Covid-19, dizem médicos e cientistas

Especialistas ouvidos pelo GLOBO dizem que já perderam esperança de Ministério da Saúde abrir diálogo com comunidade científica
Familiar de paciente segura cilindro de oxigênio em Manaus, em 15 de janeiro de 2021. Foto: MICHAEL DANTAS / AFP
Familiar de paciente segura cilindro de oxigênio em Manaus, em 15 de janeiro de 2021. Foto: MICHAEL DANTAS / AFP

SÃO PAULO — O histórico de medidas do governo federal que prejudicaram, em vez de ajudar, o combate à Covid-19 no Brasil atingiu limite que faz médicos e pesquisadores perderem a esperança na possibilidade de diálogo, afirmam pesquisadores consultados pelo GLOBO.

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Especialistas que, mesmo num cenário de desacordo, buscam ser ouvidos para políticas públicas para resposta à pandemia afirmam não ver perspectiva de melhora no combate à Covid neste governo.

Em carta publicada na noite desta sexta-feira (22) na revista médica "The Lancet", o epidemiologista Pedro Hallal, da Universidade Federal de Pelotas, que coordena pesquisa nacional sobre prevalência da Covid-19, disse que, se o Brasil tivesse tido um desempenho apenas "mediano" no combate ao vírus, mais de 150 mil vidas teriam sido salvas.

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"A população brasileira representa 2,7% da população mundial. Se o Brasil tivesse tido 2,7% das mortes globais de Covid-19, 56.311 pessoas teriam morrido", escreveu o pesquisador. "Contudo, em 21 de janeiro, 212.893 pessoas já tinham morrido de Covid-19 no Brasil. Em outras palavras, 156.582 vidas foram perdidas no país por subdesempenho."

Segundo o epidemiologista, o governo federal tem um peso maior de culpa nessa avaliação.

— Se essa responsabilidade é compartilhada entre governo federal, estados e municípios ou se é uma responsabilidade mais concentrada no governo federal, que é a minha opinião, isso é questão para debate, mas o número é indiscutível — disse Hallal ao GLOBO.

O pesquisador, que teve verba federal para seu projeto cortado em agosto do ano passado afirma estar sofrendo perseguição, ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas, Hallal apoiou em sua saída a composição da reitoria da instituição , após Bolsonaro se recusar a nomear a candidata mais votada.

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Outra cientista que publicou crítica contumaz ao governo federal nesta semana foi a sanitarista Deisy Ventura, da USP, que liderou um projeto para mapear todas as medidas normativas do governo, além de atos de propaganda e atos de contestação a outros entes da república que buscavam combater a Covid-19.

"Os resultados afastam a persistente interpretação de que haveria incompetência e negligência da parte do governo federal na gestão da pandemia. Bem ao contrário, a sistematização de dados, ainda que incompletos em razão da falta de espaço para tantos eventos, revela o empenho e a eficiência da atuação da União em prol da ampla disseminação do vírus no território nacional, declaradamente com o objetivo de retomar a atividade econômica o mais rápido possível e a qualquer custo", escrevem Ventura e sua coautora Rossana Reis. "O que nossa pesquisa revelou é a existência de uma estratégia institucional de propagação do vírus."

Entre medidas nocivas tomadas pelo governo federal apontadas pela pesquisadora estão aquelas que buscaram dificultar a implementação do distanciamento social, apregoar o uso de drogas sem comprovação científica e omissões na coordenação nacional para organizar o combate à pandemia e prover recursos. Só os atos normativos contrários a recomendação de entes técnicos foram 21 compilados até agora.

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Entre pesquisadores que dizem ter perdido a esperança de uma melhora na condução da crise da Covid-19 está a sanitarista Ligia Bahia, da Fiocruz, que buscou assessorar o Ministério da Saúde no início da pandemia. Agora a pesquisadora diz já ver "crime de responsabilidade" na política do presidente Jair Bolsonaro para a Covid-19.

— A ideia da ruptura, num país tão sofrido quanto o nosso, causa sofrimento — disse a pesquisadora ao GLOBO. — Mas neste momento a gente não tem outra alternativa a não ser a ruptura institucional. Nós, profissionais de saúde, estamos batalhando pelo impeachment.

Na opinião de membros da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), entidade que foi excluída da formulação de políticas pública para a Covid-19 após Eduardo Pazuello assumir o cargo de ministro da Saúde, a esperança de espaço para diálogo se esgotou. A SBI desde o início vem combatendo a receita de medicamentos ineficazes contra a Covid-19, como a cloroquina e a ivermectina.

— Pela primeira vez na história, o ministério usou uma orientação terapêutica com medicamentos que não têm nenhum tipo de sustentação científica e que não foi escrita, elaborada nem revisada por um comitê técnico assessor — afirma o infectologista José David Urbaez, que também se declara resignado em relação à esperança de diálogo com o ministério: — Não há nenhum sinal dentro da estrutura que está aí de que possa existir algum pensamento racional, ético e que promova a ciência.

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Bolsonaro tem citado a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que autorizou estados e municípios a legislarem sobre medidas de distanciamento social para combater a pandemia como argumentação de que a responsabilidade pelo agravamento da crise sanitária no país é dos governadores. Sanitaristas, no entanto, rejeitam a tese.

— O STF não proibiu o governo federal de ter uma política de testagem no país, nem de ter uma política de rastreamento de contatos. O STF não proibiu o Brasil de ter diretrizes gerais adequadas de tratamento para Covid-19, e isso não foi feito — diz Hallal.

O GLOBO entrou em contato com o Ministério da Saúde nesta sexta-feira (22) questionando a pasta sobre as omissões e as medidas normativas nocivas apontadas por pesquisadores no combate à pandemia de Covid-19, mas não obteve resposta até a conclusão desta reportagem.