Brasil

Governo contrariou parecer técnico ao tirar temas sobre diversidade do Enade

Documentos internos do Inep mostram que coordenadores do exame pediram manutenção de termos como "sexualidade, relações de gênero e relações étnico-raciais" em edital; autor de manifestação foi exonerado
Candidatos ao Enem entram para fazer a prova em Brasília. Quem fez o exame desde a edição de 2010 pode se candidatar ao Fies Foto: Jorge William / Agência O Globo/11-11-2018
Candidatos ao Enem entram para fazer a prova em Brasília. Quem fez o exame desde a edição de 2010 pode se candidatar ao Fies Foto: Jorge William / Agência O Globo/11-11-2018

BRASÍLIA — O governo retirou questões ligadas à diversidade dos temas a serem cobrados no Exame Nacional de Desempenho ( Enade ) deste ano, contrariando orientação da equipe técnica responsável pela avaliação, voltada ao ensino superior. É o que revelam documentos internos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira ( Inep ), ligado ao Ministério da Educação (MEC), obtidos pelo GLOBO.

Uma nota técnica, assinada pelos servidores do Inep ligados à Coordenação-Geral do Enade, defendeu a manutenção dos termos " sexualidade, relações de gênero e relações étnico-raciais " no edital, que traz os assuntos de referência para a prova comum a todas as áreas que serão avaliadas este ano. A portaria, porém, foi publicada sem menção aos temas, conforme mostrou reportagem do GLOBO no último dia 14.

A manifestação dos servidores, que são os responsáveis pela elaboração da portaria com a assessoria de uma comissão externa, não apenas foi ignorada pela presidência do Inep, mas levou à exoneração de Rubens Campos de Lacerda Junior, que encabeçou a nota técnica, do cargo de coordenador-geral do Enade. Três coordenadores da prova, Fernanda Campos, Leandro Fiuza e Roberto Arrial, que também assinaram o documento, pediram para deixar seus cargos após a demissão do então chefe. Eles já foram desligados.

O documento elaborado pela Coordenação-Geral do Enade contraria informação repassada pelo Inep ao GLOBO, quando o jornal revelou a retirada dos termos, de que “a portaria publicada no Diário Oficial da União teve manifestações técnica e jurídica favoráveis”. A mesma resposta foi dada pela autarquia nesta quarta-feira, ao ser questionada sobre a existência do parecer da área técnica que foi ignorado.

A manifestação favorável à supressão dos termos ligados à diversidade veio da Procuradoria Jurídica do Inep. Ao analisar a portaria que seria publicada, o departamento recomendou que os temas fossem retirados, sob a justificativa de que o Manual de Redação da Presidência da República orienta “o emprego da concisão, excluindo-se palavras inúteis, redundâncias e passagens que nada acrescentam ao que foi dito” na redação de documentos oficiais.

Diante desse parecer jurídico, a Coordenação-Geral do Enade fez a nota técnica. No documento, informa ter acatado todas as outras orientações da Procuradoria Jurídica, por se tratarem da forma do documento, mas que não podia seguir a sugestão de retirada de termos que alteraria o conteúdo da portaria, como “sexualidade, relações de gênero e relações étnico-raciais".

A  recomendação foi classificada pela equipe técnica do Enade como “invasão de competência” do departamento jurídico em questões pedagógicas. “Ao modificar a redação dos conteúdos dos artigos referentes às dimensões avaliadas no Exame, a Procuradoria (Jurídica) se imiscui no caráter técnico-pedagógico da elaboração dos instrumentos de avaliação”.

A  equipe do Enade afirmou ainda, na nota, que a elaboração do exame segue os parâmetros do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (Sinaes) e de portarias normativas do MEC. Uma delas, reproduzida no parecer, aponta que a prova do Enade deve avaliar nos estudantes “competências para compreender temas exteriores ao âmbito específico de sua profissão, ligados à realidade brasileira e mundial e a outras áreas do conhecimento”.

Essas competências gerais são avaliadas na prova de formação geral, comum a todas as áreas, com dez questões, sendo oito de múltipla escolha e duas discursivas. O Enade também inclui uma parte específica para cada graduação, com 30 questões. Neste ano, passarão pelo exame os estudantes de bacharelado em ciências agrárias, ciências da saúde e afins, engenharias, arquitetura e urbanismo, além de cursos de tecnólogos.

O termo “relações de gênero” constava dos editais da parte comum da prova, de formação geral, desde pelo menos o Enade de 2011, segundo os documentos oficiais disponíveis. “Sexualidade” e “relações étnico-raciais” estavam presentes desde 2016 como assuntos de referência para a prova.

A retirada dos termos, sem respaldo da área técnica, está alinhada ao posicionamento externado pelo presidente Jair Bolsonaro , que é crítico do que chama de "ideologia" em exames oficiais aplicados pelo governo. Na campanha, ele chegou a dizer que, caso eleito, inspecionaria o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) antes da aplicação.

Em nota, o Inep informou que “reitera que todas as provas do Exame Nacional de Desempenho de Estudantes (Enade), tanto de formação geral quanto de conhecimentos específicos, são modificadas e aprimoradas ao longo dos anos. A portaria publicada no Diário Oficial da União apresentou manifestações técnicas e jurídicas favoráveis”.

Questionado se o autor da nota técnica, Rubens Campos de Lacerda Junior, foi exonerado da coordenação-geral do Enade por conta do documento, o Inep respondeu: “Durante novas gestões, mudanças em cargos de livre nomeação e exoneração são processos naturais”.

A autarquia ressaltou o currículo do novo ocupante do cargo, Tarcísio Kuhn Ribeiro, que é “mestre na área de educação com ampla experiência em gestão educacional”. Destacou ainda que Ribeiro “lecionou nas áreas de História e Estudos Regionais e atuou como diretor geral do Campus Ceilândia do Instituto Federal de Brasília (IFB) nos últimos seis anos”.

Polêmicas do exame

Embora menos popular que o Enem, o Enade já protagonizou polêmicas em função dos temas abordados. Na edição de 2018, uma questão discursiva da prova geral tratou do assassinato da vereadora Marielle  Franco (PSOL-RJ), da circulação de fake news após a morte dela e do alto número de defensores de direitos humanos vitimados no Brasil. Ao fim, pedia ao aluno para escrever sobre "os prejuízos da produção de notícias falsas para a sociedade democrática”.

Em 2017, uma questão trazia trechos de textos sobre a importância do nome social para os transgêneros. O comando para o aluno era discorrer sobre o tema e propor uma medida, no âmbito das políticas públicas, para facilitar o acesso dessa população à cidadania. Esse item também foi alvo de críticas, principalmente de militantes do projeto Escola sem Partido .