BRASÍLIA e RIO — Quase três meses depois da posse do presidente Jair Bolsonaro, a educação do país ainda não tem um rumo.
Em meio à disputa de poder dentro do Ministério da Educação (MEC), pelo menos 14 pessoas já foram demitidas em decorrência da crise que emperra programas.
Técnicos do MEC temem que o impasse em relação à análise da alfabetização, que desencadeou a tensão mais recente na área, acabe atrasando a aplicação das provas do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), que, se seguir o modelo das últimas edições, chega a cerca de 7 milhões de estudantes.
A indefinição impede a realização de licitações para contratação de pessoal e da gráfica para imprimir as avaliações. A seleção dos serviços de entrega dos malotes de provas e de leitura ótica dos cartões de resposta também fica prejudicada.
Na terça-feira (26), o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, revogou uma portaria do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) sobre o Saeb que tinha adiado a avaliação da alfabetização por dois anos.
A medida acentuou a confusão interna do MEC e culminou na demissão do então presidente da autarquia, Marcus Vinicius Rodrigues.
O ex-chefe do Inep é ligado à ala militar do governo, que trava uma queda de braço dentro do Ministério da Educação com seguidores do ideólogo de direita Olavo de Carvalho.
Muda ou não muda?
A incerteza nas decisões da pasta tem gerado apreensão no Inep quanto à realização do Saeb. Com o impasse em relação à portaria, a equipe técnica não sabe qual será o universo avaliado e como serão as avaliações.
O governo de Michel Temer incluiu no Saeb 2019 a avaliação da alfabetização, além de prever o exame de todas escolas de educação infantil. Já a portaria emitida pelo novo governo eliminava a primeira e modificava o modelo da segunda, reduzindo a quantidade de escolas analisadas.
Ainda que a medida mais recente tenha sido derrubada pelo ministro da Educação, os técnicos não sabem se a estruturação prevista por Temer vai continuar ou se haverá novas mudanças.
O contexto pode gerar atrasos nas licitações para contratação de pessoal e outros serviços logísticos necessários à realização das provas.
— Sem a definição do universo da aplicação, ninguém sabe quanto vai ser gasto e não dá pra fazer a licitação. Enquanto isso, fica tudo parado. Estamos em março e a aplicação é em outubro — afirmou ao GLOBO um funcionário do Inep.
Militares e técnicos contra olavetes
A indefinição sobre o Saeb é apenas mais um elemento da falta de rumo do Ministério da Educação.
A instabilidade da pasta começou a vir a público no início de março. Após uma disputa interna de membros do MEC ligados aos militares e os de perfil mais técnico contra seguidores de Olavo de Carvalho com cargos na pasta, seis comissionados foram exonerados.
Entre eles, o ex-assessor de Vélez, Ricardo Wagner Roquetti, que tentava afastar do ministério os chamados "olavetes". A demissão de Roquetti foi ordenada pelo próprio Bolsonaro.
Mas a primeira onda de desligamentos não foi suficiente para estancar a sangria. Depois disso, Vélez demitiu o número 2 da pasta, que ocupava o cargo de secretário-executivo, Luiz Antonio Tozi.
Oriundo do Centro Paula Souza, em São Paulo, Tozi pertencia ao grupo "técnico" do ministério e também era desafeto de Olavo de Carvalho, que pediu sua cabeça ao governo.
Daí em diante, a substituição se tornou um estorvo para o MEC. O ministro chegou a anunciar que Rubens Barreto da Silva, também da ala técnica, ocuparia o cargo, mas depois voltou atrás.
Em seguida, Vélez afirmou que Iolene Lima, então diretora de Formação do MEC e braço-direito da secretária de educação básica, Tânia Leme, assumiria a secretaria-executiva. Mais uma vez o plano não se concretizou e Iolene, também alinhada à área técnica, foi demitida.
No capítulo mais recente do vai e vem no MEC, proporcionado pela confusão sobre a portaria da avaliação da alfabetização, foi a vez de Tânia Leme e Marcus Vinicius Rodrigues deixarem seus cargos — na segunda (25) e na terça (26), respectivamente.
A então secretária de educação básica chegou a escrever uma carta de demissão, usando o argumento de que não havia sido comunicada sobre a exclusão da alfabetização do Saeb 2019.
Já o então presidente do Inep afirmou que a medida tinha sido um pedido do próprio secretário de alfabetização do MEC, Carlos Nadalim, contestando a versão do ministro de que o MEC havia sido pego de surpresa.
Estados e municípios no escuro
Com o agravamento da crise no MEC, Estados e municípios acenderam o alerta em relação à paralisia da pasta.
— Os secretários de educação estão em dúvida se vai ter Saeb nesse ano. A marcação da realização da prova de dois em dois anos é importante para todo planejamento das secretarias municipais. É fruto da desarticulação dentro do MEC que acaba rebatendo no Inep — afirma a presidente-executiva do movimento Todos pela Educação, Priscila Cruz.
Na terça, a presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e secretária estadual de Educação do Mato Grosso do Sul, Cecília Motta, afirmou que o MEC está "sem rumo".
A falta de interlocutor a quem os gestores possam se reportar está, na opinião dela, atrapalhando o andamento do sistema educacional.
— Está acontecendo uma falta de comando. Todas as questões que estão sendo discutidas não têm relevância, são penduricalhos. É como se o ministério estivesse distante das escolas — disse Motta. — Tivemos duas reuniões com o Tozi, no mesmo dia ele saiu. Tivemos uma conferência com a Tânia, e ela também saiu, então não sei o que está acontecendo.
O Consed elaborou uma carta com a agenda que deveria ser considerada prioritária pelo MEC e que, segundo os estados, ainda está indefinida.
Entre os pontos paralisados, o conselho cita a reelaboração do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação), que vence em 2020 e é o principal mecanismo de financiamento da educação básica.
Na carta, os secretários mencionam ainda o Programa Dinheiro Direto na Escola, o Plano Nacional de Educação (PNE) e a garantia de recursos para programas de apoio à implementação da BNCC, como o ProBNCC, entre outros aspectos.
Na semana passada, O GLOBO mostrou que a estagnação do ProBNCC foi indicada pelo próprio MEC em um ofício enviado aos secretários estaduais e dirigentes municipais de Educação.
Segundo o documento, os programas em execução no MEC estão "sob análise, especialmente no que tange a possibilidades e às restrições orçamentárias".
Por meio do programa, o MEC garantia o pagamento de até 31 bolsas por estado, no valor de R$ 1.100. Os repasses de 2018 foram efetuados, mas o ministério deveria cobrir mais dez meses em 2019.
A falta de ação chegou também a programas ligados à alfabetização, que foi colocada como prioridade para os 100 primeiros dias de governo Bolsonaro.
Secretários municipais relataram que estão sem os recursos do programa "Mais alfabetização", também sob o argumento de que o programa estaria sob análise.
— Nas políticas da educação básica, o governo federal tem um papel de indução, coordenação e suplementação, tanto financeira quanto técnica — diz Priscila Cruz, do Todos pela Educação. — Esse MEC não tem projeto nem competência técnica ou polítca. Isso explica porque não vejo saída que não a troca total da equipe atual.
O GLOBO entrou em contato com o MEC e com o Inep para questioná-los sobre a paralisia dos programas e as críticas de secretários e especialistas, mas não obteve resposta.