Pedro Salomon Bezerra Mouallem

Doutor em direito pela Universidade de São Paulo e pesquisador do Cebrap

Opinião

Frear a queda livre

Caso tenha um novo mandato, legitimado pelas urnas, o bolsonarismo consolidará a sua política de fragmentação social

O ex-presidente Lula (PT), durante ato no Teatro da PUC. Foto: Ricardo Stuckert
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Cinco dias separam o País de um momento decisivo de sua história. O governo de Jair Bolsonaro tem sido o capítulo mais radical do processo vertiginoso de desintegração social em marcha há alguns anos no país. O segundo turno das eleições presidenciais decidirá sobre o rumo de longo prazo do Brasil, ainda que os termos da disputa impeçam a reflexão sobre sua longevidade.

O radicalismo da experiência brasileira impressiona não apenas pela rapidez com que se destruíram políticas públicas inclusivas erguidas ao longo de três décadas (em saúde, educação, combate a pobreza), mas também pela forma que enfraqueceu a resistência de setores progressistas, que assistem atônitos a um país em queda livre. Aliás, nada mais drástico que a destruição de uma gramática política comum, compartilhada mesmo por competidores e construída desde a redemocratização. O progressivo esvaziamento de normas, instituições e, sobretudo, do espírito da constituição de 1988 vem minando qualquer forma de pacto social capaz de pacificar o país no curto prazo.

Desde 2016, a combinação peculiar de impeachment sem crime de responsabilidade, combate à corrupção por meio práticas ilegais, retirada abrupta de direitos constitucionais, e normalização de grupos de extrema direita no país, conduziu a sociedade ao descrédito de diferentes instituições: de sindicatos e movimentos sociais, tidos como barganhadores de privilégios; do judiciário, percebidos como casta política e idiossincrática; da imprensa tradicional, tomada como manipuladora da verdade; dos partidos e de políticos em geral, vistos como meros aproveitadores de recursos públicos.

O clima permanente de denúncia e de alarme contribui para o sentimento de urgência a cada novo escândalo, crime, ou conspiração que surja no zap

Se esse enfraquecimento institucional, de um lado, funcionou para liberar empresários brasileiros até então limitados pelas amarras de direitos trabalhistas, previdenciários, ambientais etc., de outro lado, também solapou (ou debilitou) a sociabilidade democrática mínima, incluindo expectativas de progresso, confiança na representação política, respeito a direitos humanos, etc., que garantia alguma estabilidade ao país.

A radicalização política brasileira expressa, nesse sentido, mais a implosão da esfera pública brasileira e seu rearranjo a partir de novas mediações e menos as divisões entre ricos e pobres, esquerda e direita – que existem e são relevantes, mas que não organizam toda a disputa política no país. O bolsonarismo foi gestado nesse contexto e fez da desorganização da vida pública brasileira sua pedra angular.

Desorganização essa que se manifesta em uma política do “aqui, agora” (que se assemelha não apenas pelo nome ao jornalismo policial sensacionalista dos anos 90) que bloqueia qualquer perspectiva de futuro ao país. Bolsonaristas valem-se disso para interditar qualquer projeto de transformação social.

Moldados pela comunicação desinstitucionalizada (embora não imparcial) das redes sociais, os debates relevantes sobre o país têm sido diariamente tragados por cada polêmica ou hit do momento e passam a girar em falso. Controvérsias momentâneas de grande repercussão tornaram-se, então, o centro de gravidade de toda manifestação pública, amarrando a imaginação política brasileira num presente disforme, como um cachorro preso a um poste.

O clima permanente de denúncia e de alarme contribui para o sentimento de urgência a cada novo escândalo, crime, ou conspiração que surja no zap. Propostas de longo prazo cedem lugar aos problemas do minuto. Nada ilustra isso mais visivelmente que o atual funcionamento dos debates eleitorais: programas de governo contam menos que a performance de cada candidato, e os cortes de falas a serem usados na internet tornam-se mais decisivos que as próprias respostas completas enunciadas.

Além disso, a nova dinâmica política brasileira serviu para converter em militantes fervorosos pessoas que até pouco tempo não situavam a política no centro de suas identidades. A posição de vigilância constante diante de corruptos, o difuso pânico moral, as ameaças às igrejas, tudo isso passou a mobilizar pessoas a uma posição de defesa contínua de suas vidas, seus valores e relações afetivas.

Contudo, movimentando-se pelo “aqui, agora” e bloqueando transformações sociais, essa massa militante tornou-se tão somente ferrenha defensora do status quo. O bolsonarismo vem canalizando essa força e esse ímpeto para seus propósitos ao acentuar as divergências, demarcar inimigos do povo, incentivar a violência verbal e física como postura política. Em suma, tem sido capaz de conferir algo a se acreditar e defender aos sobreviventes do desmoronamento institucional brasileiro. Também por isso o bolsonarismo tem um quê de enfeitiçamento, visto que vai além dos argumentos racionais e dos cálculos de custo-benefício.

Caso tenha um novo mandato, legitimado pelas urnas, o bolsonarismo consolidará não apenas suas estratégias, seus valores e sua liderança, mas a própria gramática política de fragmentação social, opacidade do debate público, bloqueio de transformações sociais, e descrédito da democracia.

Sem Lula em uma próxima rodada eleitoral, a energia da frente ampla democrática tende a se dissipar, o que concluiria o processo de esvaziamento democrático iniciado em 2016. Interromper o decaimento democrático passa por reconstruir instituições públicas e, como primeiro passo, remover Bolsonaro do poder. O momento não podia ser mais decisivo para os/as democratas e para o país.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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