Por Henrique Coelho, g1 Rio


Quase três milhões de fluminenses, ou 15% da população do estado, passam fome. E esse flagelo afeta mais as mulheres, os pretos e pardos e os desempregados.

Os dados constam do recorte regional do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan).

Pesquisadores foram a domicílios por amostragem e fizeram entrevistas com as famílias, a fim de classificá-las quanto à qualidade das refeições no lar.

Qualquer queda nos padrões de consumo já indica uma insegurança alimentar, que pode ser leve, moderada ou grave — esta aponta que a fome já é uma realidade dentro de casa.

Segundo a pesquisa, estão com insegurança alimentar grave:

Gênero

  • 28,2% dos homens;
  • 38,6% das mulheres;

Cor

  • 25,8% dos brancos;
  • 37,6% pretos e pardos

Fome no RJ: insegurança alimentar por gênero e cor — Foto: Reprodução/TV Globo

Ocupação

  • 20,9% de quem tem emprego formal;
  • 32,8% de quem tem trabalho autônomo;
  • 42,2% de quem tem emprego informal;
  • 68,6% dos desempregados.

Fome no RJ: insegurança alimentar por ocupação — Foto: Reprodução/TV Globo

“A maior vítima é a mulher preta ou parda e com filho de até 10 anos em casa. A fome tem CEP, tem cor e tem gênero. O Rio de Janeiro é o reflexo disso”, afirmou Rodrigo Kiko Afonso, diretor-executivo da Ação da Cidadania.

Rodrigo Freire, diretor da ONG Corrente pelo Bem, disse que recebe pedidos de ajuda todos os dias. “Água, fralda, leite em pó, refeições. Gente que pagava aluguel e foi morar na rua. Gente que não come há dois dias”, exemplificou.

Um pão para quatro

Adriele Salles mora no Santo Cristo e tem quatro filhos. Mulher e negra, enfrenta a fome todos os dias. “Dividir um pão para quatro pessoas. Um ovo para duas pessoas. É muito difícil, moço”, disse.

“Às vezes, a gente tem que deixar de comprar um arroz para juntar um negócio de bala para poder ajudar a comprar um feijão, um leite. Porque a gente não pensa na gente. A gente pensa nas crianças”, emendou.

Cristiane mostra o biscoito que tem de dividir com os filhos — Foto: Reprodução/TV Globo

Cristiane Florentine também precisa racionar o pouco que tem. “Meu coração partiu quando minha filha falou: ‘Mãe, não tem dinheiro para comprar um pão, não?’ Eu disse: ‘Tem um biscoito aqui, de maisena. Divide com o seu irmão’”, narrou.

A líder comunitária Jurema Ferreira falou que até as cestas básicas escassearam. “Já deixei de comer para dar pros meus netos.”

Léo Motta esteve nos dois lados da fome.

“Eu sou um ex-morador de rua. Sou uma pessoa que conheceu a fome bem de perto. Por muitas vezes, na situação de rua, eu tive que olhar uma lixeira com esperança de ter alguma coisa para se alimentar”, lembrou.

“Quem está ali depende muito da ajuda do próximo, do olhar humano. Pensando assim, após a minha superação de saída das ruas, eu criei um projeto em 2019: ‘Rua é a casa de muitos, não deveria ser de ninguém’. Oferto café da manhã no Centro do Rio à população em situação de rua e também um olhar de amor”, detalhou.

Para além do Auxílio Brasil

Rosana Salles, integrante da Rede Penssan, defende a retomada de políticas sociais de combate à fome e à miséria no país.

“Ações como a Ação da Cidadania e outras cozinhas comunitárias são muito importantes. “Só a transferência de renda agora não consegue dar conta da garantia de uma alimentação saudável em quantidade e qualidade adequada para as famílias. Porque você tem o preço dos alimentos, que está saindo do controle”, explicou.

Kiko lembrou o pensamento de Betinho.

“Eu acho que até essa frase que tem aqui na minha camisa, ‘quem tem fome tem pressa’, era muito do pensamento do Betinho. A gente entende que a solução vem de política pública, vem de emprego, vem de renda, saúde e educação. Isso é o que resolve de forma definitiva”, pontuou.

“Mas o que faz com que as pessoas sobrevivam até lá é a solidariedade”, disse.

Pensando nisso, a Ação da Cidadania lançou uma campanha na quinta-feira (23). A Campanha 15 por 15 é uma campanha para chamar à solidariedade para ajudar a população que passa fome no Brasil.

São 33,1 milhões de pessoas, aproximadamente 15% dos mais de 200 milhões de brasileiros. Pode ser 15% do salário, R$ 15 ou 15 minutos do tempo: a campanha pede a solidariedade para combater a fome. Saiba como ajudar no site da campanha.

A fome no RJ

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O Estado do Rio de Janeiro tem mais de 2,7 milhões de pessoas passando fome. De acordo com dados divulgados nesta quinta-feira (23), mais de 57% da população do estado, de 17,4 milhões de pessoas, passa por algum nível de insegurança alimentar.

A fome quadruplicou no Rio de Janeiro: em 2018, a porcentagem de fluminenses passando por insegurança alimentar grave era de 4,2% da população. Nesta última pesquisa, o número passou para 15,9%.

" Eu não consigo imaginar quase 60% do Estado do Rio de Janeiro em fome e a gente não estar em um estado de emergência, com a população junta, unida, para combater a fome", afirmou Kiko Afonso.

Fome atinge 2,7 milhões no RJ; mais da metade dos fluminenses tem algum tipo de restrição alimentar

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No dia 8 de junho, o mesmo relatório demonstrou que o Brasil possui mais de 33 milhões de pessoas passando fome. São 14 milhões a mais em comparação com 2020.

Para Kiko Afonso, os dados revelam que o Rio de Janeiro é "um espelho do Brasil".

"Mesmo sendo uma das regiões mais ricas do Brasil, você vê o espalhamento da fome para regiões urbanas mais ricas muito grande. No Rio de Janeiro, é um aumento de 400%. E você vê isso nas ruas, a quantidade de pessoas procurando emprego, pedindo comida e morando nas ruas", ponderou.

Dona Janete lembra de momentos difíceis causados pela fome

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Dona Janete: tristeza por não ter o que comer

Um dos lares com insegurança alimentar grave é o da desempregada Janete Evaristo, de 57 anos. Moradora do Morro dos Macacos, em Vila Isabel, ela tem cinco netos para alimentar — uma filha morreu há dois anos, e o marido, há seis meses.

Sem ter o que comer, buscou ajuda em uma cozinha comunitária inaugurada esta semana no Andaraí e se emocionou ao conversar com a equipe de reportagem e contar as dificuldades diárias para alimentar a família. Após o relato, uma onda de solidariedade se formou para ajudá-la.

Janete Evaristo se emociona ao relatar não ter o que comer — Foto: Reprodução/TV Globo

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Metodologia

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A metodologia da pesquisa considerou a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (Ebia), a mesma utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) para mapear a fome no país.

A Ebia classifica a segurança alimentar como sendo o acesso pleno e regular aos alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais. Já a insegurança alimentar é classificada em três níveis — leve, moderada e grave — da seguinte maneira:

Insegurança alimentar leve: há preocupação ou incerteza quanto ao acesso aos alimentos no futuro, além de queda na qualidade adequada dos alimentos resultante de estratégias que visam não comprometer a quantidade de alimentação consumida.

Insegurança alimentar moderada: há redução quantitativa no consumo de alimentos entre os adultos e/ou ruptura nos padrões de alimentação.

Insegurança alimentar grave: há redução quantitativa de alimentos também entre as crianças, ou seja, ruptura nos padrões de alimentação resultante da falta de alimentos entre todos os moradores do domicílio. Nessa situação, a fome passa a ser uma experiência vivida no lar.

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