Por Fabiana Assis, G1 São Carlos e Araraquara


Selo Pés Vermelhos — Foto: Arte G1 São Carlos e Araraquara

Assentamento Bela Vista está a 17 km de Araraquara — Foto: Fabio Rodrigues/G1

Quando o assunto é luta social pela terra no Brasil fala-se muito das ocupações e da obtenção dos lotes nos assentamentos, mas pouco se fala sobre a permanência na terra conquistada. Essa é a luta que está sendo travada pela segunda geração do assentamento Bela Vista, em Araraquara (SP), que completou 30 anos de regularização e onde moram mais de 200 famílias.

Os filhos dos agricultores assentados criam iniciativas para o desenvolvimento do assentamento e garantia da sua continuidade, buscando fontes de rendas e mecanismos de permanência dos jovens na terra conquistada pelos pais.

Para isso, eles foram buscar conhecimentos nas universidades e hoje aplicam o que aprenderam na busca por melhoria da condição de vida dos moradores do Bela Vista.

O G1 publica esta semana uma série especial de reportagens sobre o assentamento Bela Vista, que completou 30 anos. Leia as outras matérias:

Pioneira

Ernestina (no alto à dir.) com o grupo que formou a associação de mulheres do assentamento Bela Vista — Foto: Arquivo pessoal

Uma das pioneiras nesta migração do conhecimento é Enedina Ferreira de Andrade, que hoje atua na Prefeitura de Araraquara. Ela chegou ao assentamento aos 12 anos de idade, já com o interesse pelos movimentos de luta pela terra, despertado pela experiência da sua ainda curta trajetória de vida.

Partiu do assentamento rumo ao Rio Grande do Sul para fazer curso técnico em Administração em Cooperativa com o Movimento Sem Terra (MST). Lá também fez pedagogia e conheceu a escola do campo, concepção que trouxe para Bela Vista e ajudou a implementar na escola do assentamento. A mudança de metodologia da escola Hermínio Pagotto, que passou a ser mais voltada para a realidade dos alunos, contribuiu para a diminuição da evasão escolar e rendeu vários prêmios.

Ela também ajudou a coordenar a criação do curso de pedagogia da terra da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), que deu acesso a vários filhos de agricultores do Bela Vista e de outros assentamentos à universidade.

Em busca de uma mudança na matriz produtiva do assentamento, pautada pelo plantio da cana-de-açúcar, Enedina foi estudar agroecologia. Teve experiências na área em Moçambique e Cuba, fez especialização na Unicamp e mestrado na Fiocruz.

“Essa minha caminhada de sair para estudar foi sempre voltando e sempre pensando no assentamento”, afirma.

Mulheres Associação Mulheres Camponesas (AMCA) ajudam nas ações para promover o assentamento Bela Vista, como na produção dos doces da tradicional festa junina do local. — Foto: Amanda Rocha/A CidadeON Araraquara

Os conhecimentos que adquiriu a ajudaram a montar a Associação Mulheres Camponesas (AMCA). Graças a associação, 12 mulheres assentadas passaram a explorar as riquezas que cultivavam em seus quintais como possibilidade de renda e com isso deixaram de procurar emprego na cidade para ajudar na subsistência da família.

“Tem contribuído com autoestima das mulheres de se verem como ser humano, mas também como produtoras de comida saudável. Em torno da casa delas, elas produzem uma centena de variedades o ano todo. A lavoura vai ter uma colheita por ano, o quintal produtivo das mulheres é o ano todo. Se não tem o produto da lavoura, tem o produto deste quintal que vai para as feiras”, afirma Enedina.

Pés vermelhos com orgulho

Entre os grupos que surgiram no intuito de buscar melhorias para o assentamento, um resolveu adotar o nome de Pé Vermelho, nome pelo qual os filhos dos agricultores assentados ouviam quando iam estudar na cidade.

“Pé vermelho para nós era um xingamento. Pé vermelho, barriga vazia, diziam”, lembra Silvani Silva, que fez pedagogia e hoje atua na coordenadoria da secretaria da agricultura de Araraquara.

Silvani Silva é uma da filhas de assentados do Bela Vista que se formou na universidade e hoje usa seus conhecimentos para desenvolver o assentamento — Foto: Fabiana Assis/G1

O grupo surgiu quando ela e outros filhos dos assentados estavam na faculdade. “Na universidade, a gente resolveu positivar dentro de uma consciência ambiental de que terra não é sujeira. Então eu não posso ter vergonha da terra porque eu não posso ter vergonha de quem me alimenta, então sim, somos pés vermelhos.”

O grupo desenvolve ações com o objetivo de tornar a realidade do assentamento conhecida, combater o preconceito e despertar o orgulho da condição de assentado.

“Pé vermelho é uma ideia. Uma ideia que defende que eu tenho que eu tenho que ter o orgulho da terra, eu permaneço na terra, eu vou defender a produção, eu vou defender a reforma agrária”, diz Silvani.

Pelas mãos dos integrantes surgiram ações como um livro que valoriza a cultura culinária das famílias assentadas, um documentário sobre a influência feminina no assentamento e projetos de turismo rural.

“Eu participo do grupo Pé Vermelho, para ressignificar algo que era muito negativo. Nós éramos xingados de pé vermelho, como se isso fosse sinônimo de atraso. Estes 30 anos de Bela Vista fizeram a minha geração ter um empoderamento. Somos pé vermelhos sim e temos orgulho disso, porque valorizamos o espaço onde moramos como um espaço importante para o desenvolvimento do país, para fornecer dignidade para as pessoas”, afirma o professor Reginaldo Anselmo Teixeira, 43 anos.

O professor Reginaldo Teixeira teve que estudar fora do assentamento e hoje comemora que seus alunos tem acesso à educação no lugar onde moram — Foto: Fabio Rodrigues/G1

Ele nasceu em São Paulo e chegou ao assentamento na adolescência. Formado, com mestrado e doutorado em educação pela Unesp, ele voltou ao assentamento para atuar como professor da escola, onde procura despertar nos alunos a valorização do assentamento.

“Eu sou doutor em educação, gosto de praticar botânica, jardinagem, eu tenho uma vida muita tranquila e se eu tivesse permanecido em São Paulo, talvez a vida tivesse seguido outros caminhos. Eu não sei se morando na extrema periferia eu conseguiria chegar onde cheguei. Eu me sinto bastante orgulhoso de ser um filho da reforma agrária. Hoje eu só sou doutor em educação formado pela Unesp, uma das três melhores universidades do país, por conta da reforma agrária”, diz.

Mudar a sua história

A oportunidade da professora Alesssandra Damiani Ferreira de se formar na universidade surgiu justamente por ser neta de assentados. Ela ficou entre os selecionados para participar de uma preparação para o vestibular de pedagogia da terra pela UFSCar, junto com outros moradores de assentamentos de todo estado e passou no vestibular. Antes, havia tentado, assim como boa parte dos jovens do Bela Vista, procurar um emprego na cidade sem sucesso.

Alessandra Damiani Ferreira Teodoro com a mãe e o marido. Descoberta sobre as possibilidades do assentamento aconteceu na universidade — Foto: Fabiana Assis/G1

Na universidade descobriu que não precisaria sair das suas raízes para conseguir sua subsistência.

“Nosso primeiro trabalho foi o resgate da história da comunidade e foi aí que eu descobri muita coisa que eu não sabia. Enquanto eu estava no ensino médio eu não tinha essa visão de que meus avós, meus pais lutaram tanto para que eu chegasse até aqui e isso foi muito importante para a minha formação como pessoa. O assentamento é riquíssimo e aí a gente voltou e queria que todo mundo visse o que a gente estava vendo e falar para eles que eles não precisavam sair do assentamento para ter possibilidades, que pode ter aqui dentro. Ou você pode sair, ter experiência e trazer para cá, trazer para o seu povo.”

E foi exatamente o que ela fez. Alessandra se formou com a intenção de dar aula na escola do Bela Vista. Por conta dos trâmites de vagas isso ainda não foi possível, mas ela ficou próxima da sua meta, lecionando no assentamento Monte Alegre, que também fica em Araraquara.

Agricultor trabalha no lote no assentamento Bela Vista — Foto: Fabio Rodrigues/G1

Além dos conhecimentos de português e matemática, ela ensina para seus alunos que não é porque eles vivem no campo que não têm oportunidades.

“O que eu aprendi aqui eu levo muito para eles. A questão do bullying que eu sofri e tento mostrar para eles, que a gente pode ser mais, bem mais. Que eles têm potencial, que têm intelecto, que eles podem mudar o seu lugar, seja ele onde for.”

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