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Fies deveria ter cobrança atrelada à renda para evitar dívidas, sugere especialista do Ipea

Autor de estudos sobre o Fies e pesquisador do Ipea, Paulo Meyer Nascimento afirma que modelo funcionaria como uma espécie de 'sobretaxa' do Imposto de Renda. Anistia concedida pelo governo é a primeira do Fies

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Por Adriana Fernandes
Atualização:

BRASÍLIA - Autor de estudos sobre o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (Ipea), Paulo Meyer Nascimento, aponta como saída para a inadimplência do programa a introdução de um modelo em que a cobrança das parcelas do financiamento seja feita automaticamente pela Receita Federal.

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O modelo funcionaria como uma espécie de tributo vinculado à renda do mutuário do programa, uma espécie de "sobretaxa" do Imposto de Renda (IR), como já acontece em outros países que fizeram reformas nos seus programas de financiamento dos estudantes.

A anistia concedida pelo governo é a primeira do Fies, que financia cursos presenciais de graduação não gratuitos a estudantes que cumpram certos requisitos, inclusive de renda.

Para especialista, futuro do Fies é preocupante e anistia de dívida pode criar um circulo vicioso Foto: Sérgio Castro/Estadão

Nascimento vê com preocupação o futuro do Fies e alerta que esse tipo de perdão pode criar um círculo vicioso e levar aos beneficiários do programa a deixar de pagar as prestações à espera de um novo perdão, como já acontece com os Refis – parcelamentos de débitos tributários de empresas e pessoas físicas.

Segundo o pesquisador, a vantagem do modelo de pagamento das parcelas via sistema tributário é que ele se torna, na prática, um “refis automático” para o mutuário que perder a renda e não tiver condições de pagar o financiamento.“Seria um tributo que não aumentaria a carga tributária, mas que transformaria o financiamento estudantil”, diz ele ao Estadão.

O pesquisador considera que a Medida Provisória editada pelo governo Jair Bolsonaro, que perdoa em até 92% os devedores do Fies, joga “um pouco para torcida”, porque as dívidas alcançadas já foram consideradas de difícil recuperação pelas regras do Banco Central, quando o atraso no pagamento supera 90 dias. “Esses tipo de medida gera incentivos tortos. Pune o bom pagador e gera um círculo vicioso”, adverte.

Nascimento diz que o governo sabe que tem medidas mais justas para tratar o problema do calote e que podem ser implementadas num curto espaço de tempo. Ele lembra que existe legislação aprovada, no final de 2017, que prevê o recolhimento de pagamentos vinculados à renda do devedor. Mas que o governo não consegue colocar em pé porque não há um desenho de recolhimento na fonte de renda do estudante recém-ingresso no mercado de trabalho que seja eficaz.

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Segundo ele, a reformulação do Fies exigiria reformas constitucionais e infraconstitucionais, mas as contribuições já existentes, como a Cide-Combustível e as cobradas do Sistema S, já podem dar o norte para o arranjo institucional necessário à reformulação.

Ao vincular o pagamento das parcelas à renda, a ideia é que os beneficiários do programa tenham maior proteção social sem necessidade de anistias, ao mesmo tempo em que pode diminuir os riscos de calote.

Para ele, essas modificações melhorariam o Fies e talvez tornassem dispensáveis as isenções tributárias hoje dadas às instituições particulares como contrapartida a matrículas gratuitas destinadas a estudantes de baixa renda. Sob as novas regras, os contratos seriam iniciados sem quaisquer subsídios implícitos nas taxas de juros.

Quando envolver fundos públicos, juros poderiam ser iguais à Selic, a taxa básica de juros, ou Taxa de Longo Prazo (TLP), taxa usada nos financiamentos do BNDES. E, quando envolver fundos privados, seriam cobrados juros de mercado. O principal subsídio seria o perdão das parcelas remanescentes após aposentadoria, invalidez, doença grave ou morte. Fora isso, três outros subsídios adicionais poderiam ser ponto de discussão no programa público. Um, se deveria ou não ser suspensa a incidência de juros durante o período de estudos. Dois, se seria o caso de prever eventuais abatimentos no saldo devedor por cada período que se passa exercendo funções tidas como prioritárias para o poder público, como magistério em escolas públicas ou prestação de serviços de saúde vinculados a programas de saúde da família. Três, se as taxas de juros poderiam ser reduzidas após longos períodos de amortização, a fim de diminuir os encargos sobre quem levaria muitos anos para saldar a dívida, mas não chegaria a se beneficiar do perdão.

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Nascimento considera que o Fies, na última década, desempenhou um papel relevante, mas ainda coadjuvante no financiamento de estudantes matriculados no ensino privado. A partir de 2010, com alterações feitas pelo governo, passou a permitir financiamento de até 100% do valor do curso, tornaram contínuo o fluxo de solicitações, aumentaram o prazo de carência e de amortização, expandiram os critérios de elegibilidade e reduziram a taxa de juros.

A dilatação do orçamento do Fies depois de 2010 não foi acompanhada, contudo, de crescimento similar no número de matrículas. Enquanto os valores pagos pelo Fies, em termos reais, aumentaram 48% em 2014 em relação a 2009 (ano anterior à mudança de regras), o número de matrículas em cursos presenciais avançou somente 27% no mesmo período. Com a crise fiscal, as regras do programa tornaram-se mais restritivas.

A partir de 2015 foi reduzido o número de novos contratos e passaram a ser elegíveis ao Fies apenas estudantes cuja renda familiar per capita não ultrapasse dois e meio salários mínimos – o limite anterior chegou a ser de renda familiar bruta (ao invés de per capita) de até 20 salários mínimos.

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Alterações adicionais passaram a exigir desempenho mínimo no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Mesmo assim, por conta da expansão precedente, o orçamento autorizado em 2015 para o programa foi um quarto maior do que em 2014. Nova reforma, em fins de 2017, reduziu ainda mais o número de novos contratos e tentou, sem sucesso, resolver o problema de inadimplência tentando transformar o Fies em um crédito consignado – algo que para o pesquisador do Ipea não funciona quando a renda é futura e incerta.

Mais de 730 mil contratos chegaram a ser firmados pelo Fies em 2014, auge da expansão. "Cada vez menor, sequer consegue firmar 100 mil novos contratos por ano, teto colocado pelo governo em anos recentes", destaca. Os críticos atribuem esse fato aos novos critérios de elegibilidade, sobretudo no ponto em que conjugam teto de renda com piso de desempenho no Enem. O pesquisador do IPEA reforça que a reestruturação ganha maior relevância na agenda educacional diante da crise fiscal brasileira, do alto desemprego no país e do cenário internacional em que débitos estudantis têm desencadeado debates políticos e acadêmicos sobre alternativas para o financiamento estudantil.