Exclusivo para Assinantes
Cultura

Felipe Neto e Machado de Assis: por que ler os clássicos na escola gera tanta polêmica

Youtuber reaquece debate sobre como trabalhar a literatura com adolescentes; autores e pesquisadores defendem que despertar o prazer de ler é prioridade
Tuíte sobre leitura 'obrigatória' de autores clássicos movimentou a rede no fim de semana Foto: Arte O GLOBO/Ana Scott
Tuíte sobre leitura 'obrigatória' de autores clássicos movimentou a rede no fim de semana Foto: Arte O GLOBO/Ana Scott

RIO — No país onde tudo acaba em meme, o último embate literário do Twitter começou com um deles. No sábado, o influenciador digital Felipe Neto postou uma imagem da cozinheira e apresentadora Palmirinha segurando um cartaz com os dizeres “Crie uma treta literária e saia”. Felipe lançou a sua: “Forçar adolescentes a lerem romantismo e realismo brasileiro é um desserviço das escolas para a literatura. Álvares de Azevedo e Machado de Assis NÃO SÃO PARA ADOLESCENTES! E forçar isso gera jovens que acham literatura um saco”.

O tuíte trouxe críticas a Felipe (12,8 milhões de seguidores no Twitter, 41 milhões de inscritos no YouTube), que, anteontem, publicou uma sequência dizendo que não defendeu a supressão de nenhum autor, apenas propôs um debate sobre mudanças no sistema de ensino. Mas também rendeu adesões de nomes do meio literário e acadêmico. O escritor Sérgio Rodrigues defendeu, também no Twitter, o ponto levantado por Felipe: “Machado e, principalmente, (José de) Alencar impostos goela abaixo antes da hora pela escola ajudam, há décadas, a formar esses milhões de não leitores furiosos que temos no Brasil”.

Formação de leitores

Vários textos agora publicados em “Contos (quase) esquecidos” são da época em que Machado de Assis ainda não era reconhecido como o grande nome da literatura brasileira. Foto: Coleção Manoel Portinari Leão
Vários textos agora publicados em “Contos (quase) esquecidos” são da época em que Machado de Assis ainda não era reconhecido como o grande nome da literatura brasileira. Foto: Coleção Manoel Portinari Leão

Ainda que a discussão em 280 caracteres tenha ficado longe de um consenso, a polêmica reaqueceu o antigo debate sobre como trabalhar a literatura nas escolas, privilegiando a formação de leitores. E também como equilibrar cânones literários com a produção contemporânea, mais próxima à realidade dos alunos.

Jostein Gaarder : 'A filosofia sempre lutou contra as fake news', diz o autor de 'O Mundo de Sofia'

— O Twitter não é o fórum mais indicado para este tipo de debate, tudo vira uma arena. Mas, ainda assim, achei o saldo bem positivo. A tuitosfera passar um final de semana discutindo literatura é algo importantíssimo — observa Rodrigues. — Do jeito dele, o Felipe levantou uma bola essencial. Ninguém ali desmereceu a qualidade do Machado, um dos maiores escritores da História, ou sugeriu que ele e outros autores clássicos não devam ser lidos. Ou afirmou que a culpa é só dos professores, que são heroicos. Mas podemos pensar em outras maneiras de despertar o prazer de ler, não adianta dizer que tem de ser dessa forma porque sempre foi assim.

Sem explicações : Apex tira do ar lista com dicas de autoras brasileiras, como Eliane Brum e Ilona Szabó

Professora associada da PUC-Rio e coordenadora de Edições e Pesquisas para a Cátedra Unesco de Leitura, Eliana Yunes aponta que, de uns anos para cá, o ensino de literatura nas escolas passou a abarcar também obras de autores contemporâneos, como Paulo Lins, Adriana Lisboa e Elvira Vigna,entre outros. No entanto, ela destaca que ainda há uma dependência dos vestibulares e do Enem para a inserção desses textos no currículo do ensino médio.

— A didática da literatura merece, sim, reparos. Não as obras. A falha não está em Gonçalves Dias ou Machado, está no modo de ensinar — ressalta Eliana. — Literatura na escola, sobretudo no fundamental, não se confunde com responder perguntas de questionário cujas respostas estão no livro do professor, como se houvesse respostas únicas. Não está escrito que clássicos sejam prioridade, mas, se quisermos conhecer o Rio do século XIX, é melhor ler “O Cortiço” (de Aluísio Azevedo) que o livro de História.

Realismo x Ficção fantástica

Autor de adaptações em HQ de clássicos como “Triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto, e “Memórias póstumas de Brás Cubas”, do próprio Machado, o escritor e mestre em Literatura Luiz Antonio Aguiar defende a necessidade de se fazer pontes entre obras clássicas e as contemporâneas:

— É um preconceito enorme opor Machado ao Harry Potter . Se for buscar as origens de Harry Potter, você descobre que elas estão, lá no fundo, em Charles Dickens, um clássico da literatura inglesa. Os cânones da literatura clássica tinham ênfase em enredos consistentes, visíveis. Buscavam um envolvimento com o leitor. A literatura contemporânea que faz mais sucesso age da mesma forma.

‘Match’ com Casmurro

Na avaliação do escritor Ale Santos, finalista do prêmio Jabuti 2020 com “Rastros de resistência: histórias de luta e liberdade do povo negro”, a priorização do estudo dos clássicos nas escolas amplia a desigualdade entre grandes e pequenas editoras. Isso porque as empresas menores, afirma ele, raramente conseguem participar dos editais do governo para compra de materiais didáticos. Ele também acredita que a ênfase na literatura realista acaba por afastar os jovens leitores, mais atraídos pelas ficções fantásticas da cultura pop.

— No início da República, houve um pensamento focado no racionalismo. Acreditava-se que fantasia e ficção eram coisa de criança ou de “raças inferiores”. Isso fazia parte do discurso eugenista da época, e contribuiu para o Brasil ter entrado tarde nesse jogo do entretenimento — destaca Santos. — Os contemporâneos não precisam ser trazidos, eles já estão na sociedade. Uma criança já chega à escola com as referências de Harry Potter, Naruto, Game of Thrones, Star Wars… Não precisamos tirar o espaço de Graciliano e Drummond, mas fazer com que a escola absorva o que vem de fora.

Xadrez : O que Machado de Assis e 'O gambito da rainha' têm em comum?

A escritora best-seller Thalita Rebouças se recorda de um professor de literatura do ensino médio que trazia para a sala de aula, numa mesma semana, José de Alencar e Paulo Coelho. A ele, a autora atribui seu primeiro contato com a diversidade literária. É o que ela defende que seja feito nas escolas:

— Não se pode descartar os clássicos de jeito nenhum, eles são imprescindíveis. Mas os planos governamentais deveriam contemplar também autores contemporâneos, próximos à realidade dos alunos. Isso vai fazê-los gostar de ler e se interessar mais pelos clássicos quando estiverem mais maduros. Eu mesma só fui dar match com “Dom Casmurro” na faculdade.