Por Eliane Santos, G1 Rio


'Faces Negras': Luciane Rocha

'Faces Negras': Luciane Rocha

Quando pensou em vestibular pela primeira vez, Luciane Rocha, 42 anos, só queria dar continuidade aos seus estudos. Não sabia bem como seria, não tinha dinheiro para pagar pré-vestibular ou faculdade particular. Sem cotas, em 1997, a jovem de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, levou cinco anos para alcançar o sonho.

Ela só foi entender o poder das ações afirmativas mais tarde, quando participou da ONG Criola, que empodera mulheres no Rio de Janeiro, e recebeu um convite para fazer mestrado nos Estados Unidos — e não parou mais.

No mês em que completa 15 anos, o G1 traz uma reflexão sobre temas impactantes para o país e a evolução deles ao longo dos tempos. Na primeira reportagem especial, 'Faces Negras', conversamos com personalidades de variadas gerações que superaram as barreiras do racismo. São relatos de histórias e experiências que envolvem a cor da pele, a luta contra o preconceito, as dificuldades e o orgulho de ser preto. Conheça Adriana, Babu, Daiane, Fábio, Fatou, Glaucia, Isaac, Ivanir e Luciane.

Luciane por Luciane:

teste racismo — Foto: teste

“Sou filha de uma costureira e de um marceneiro que, apesar de pouca instrução formal, sempre foram muito politizados dentro da sua realidade. Sabia de histórias da minha mãe participando de greves da fábrica em que trabalhava comigo na barriga, e do meu pai vendendo picolé na praia aos 9 anos de idade, com o irmão mais velho, para ajudar no sustento da família.

Foi nesse ambiente, que também valorizava muito a educação, que eu cresci. Aliás, Dona Nésia, minha mãe, sempre dizia isso: 'Sua herança vai ser a educação que eu não tive'.

Sempre gostei de estudar, tirava boas notas, era boa aluna e, ao terminar o segundo grau em 1995, quis saber como se fazia para entrar em uma faculdade. Após a formatura, recebi uma carta de um professor de matemática anunciando o vestibular da faculdade particular em que ele lecionava.

A carta convidava a fazer a prova e, se eu passasse, seria oferecido um desconto na mensalidade. E foi assim que ouvi pela primeira vez a palavra vestibular, mas, mesmo com desconto, os valores eram surreais para a minha família pagar.

Em 1997, com 18 anos, fiz vestibular para Universidade Federal Fluminense (UFF) para ver como era. Foi um desastre. Percebi que, apesar de sempre ter sido ótima aluna, o que me foi oferecido não era o suficiente para competir por uma vaga na universidade. Tive consciência de que zeraria um monte de disciplinas e nem voltei para fazer o segundo dia de provas.

No ano seguinte, conheci o Pré-vestibular para Negros e Carentes (PVNC), que contava com jovens universitários voluntários para ajudar outras pessoas a ingressar em universidades públicas.

Passar por ali foi fundamental para o meu empoderamento nas aulas de Cultura e Cidadania, e para entender melhor o contexto em que eu vivia. Foi fundamental também para eu não desistir com as reprovações no vestibular: cinco no total!

Como o vestibular antes do Enem era único para cada universidade, todo início de ano era uma ansiedade, seguida de decepção e depressão temporária. Ver cada resultado, de cada faculdade, e ver que eu não tinha entrado mais uma vez era devastador. Foi assim em 1997, 1998, 1999, 2000 e 2001.

Apesar do tempo e da frustração, não achava que podia desistir. Não desisti por um senso de justiça. Eu não merecia isso, meus pais, que me possibilitavam estudar sem ter que trabalhar para ajudar em casa, não mereciam isso, nem os professores que davam aula no pré-vestibular e que acreditavam em mim mereciam isso!

Em 2002, finalmente passei para o curso de Ciências Sociais na UFRJ. A primeira pessoa da família a entrar na universidade. Lembro de ter ido fazer a matrícula agarrada a uma pasta com meus documentos. Tinha medo que batesse um vento dentro do ônibus e levasse tudo embora (risos), me impedindo de viver aquele sonho virando realidade.

No curso, que tinha 60 vagas, havia apenas seis alunos negros. Eu, aos 22 anos, era uma das mais velhas da turma.

Luciane (na primeira fila) durante a formatura de Ciências Sociais na UFRJ, no Rio: uma das poucas negras da turma — Foto: Reprodução/Arquivo pessoal

Em quatro anos de graduação, fazendo de 6 a 7 disciplinas por período, só tive dois docentes negros. Por sorte, alguns dos outros eram críticos do racismo. Os professores davam aulas fazendo referência a países a que alguns alunos já tinham viajado. Eu? Nascida e criada na Baixada Fluminense, mal saía de Duque de Caxias.

No ano seguinte, uma prima que trabalhava como atendente de fast-food também foi estudar no PVNC. Com as cotas na Uerj, em 2003, passou na sequência para pedagogia. Logo depois, um primo entrou para Enfermagem. Era a família Oliveira Rocha mostrando o seu valor (risos)!

Eu me formei sem cotas mesmo, mas sei o valor das ações afirmativas para me fazer chegar lá ou logo ali! Porque, na verdade, não é tão longe assim. As portas é que estavam fechadas.

A primeira delas: o Pré-vestibular para Negros e Carentes me possibilitou passar no vestibular.

A segunda foi uma parceria entre a ONG Criola, a Uerj e a Universidade do Texas, em Austin, que, ao conhecer o tema que eu pesquisava, “O genocídio da juventude negra”, me convidou para fazer mestrado por lá.

Deu frio na barriga, mas minha mãe, a sábia Dona Nésia, disse: “Eu criei filhos para voarem, não vai ser agora que eu vou cortar suas asas, minha borboleta”.

E dá-lhe ação afirmativa de novo com a ONG Criola viabilizando um curso de inglês para mim através de parceria e a própria Universidade do Texas me dando uma bolsa por quatro meses só para fazer um intensivo de inglês para imersão na língua e na cultura.

O Programa de Antropologia da Diáspora Africana nos EUA foi um ponto de virada na minha vida, não por ser uma formação em outro país, mas por me possibilitar conhecer autores negros brasileiros. Carolina Maria de Jesus, Manuel Quirino, Lélia Gonzalez e Abdias do Nascimento, por exemplo, eu só conheci por lá. Uma vergonha!

Nos Estados Unidos, apesar de ser um país racista, já existem ações afirmativas há mais tempo que no Brasil. Exemplo disso são as universidades para negros, as chamadas Historically Black Colleges and Universities (HBCUs) e diversos programas de inserção de negros no ensino superior. São gerações e gerações de mestres e doutores pretas e pretos.

A Universidade do Texas, em Austin, apesar de não ser uma HBCU, criou o curso de Antropologia da Diáspora Africana, no departamento de Antropologia, e virou um canal de acesso para jovens negros e indígenas da diáspora africana e da América Latina.

Costumamos dizer, e é fácil comprovar, que esse curso já formou mais doutores negros brasileiros do que muitos departamentos de universidades brasileiras (inclusive eu).

Em 2014, graduei-me PhD em Antropologia Social pela Universidade do Texas com especialização em Antropologia da Diáspora Africana e certificação em Estudos de Gênero e da Mulher. Estudei as consequências da violência urbana no Rio de Janeiro para a vida das mulheres negras, principalmente para as mães.

Voltei para o Brasil para fazer pós-doutorado na UFRJ, em 2015, e me vi sendo convidada para dar palestras em diversas universidades. Muitos alunos que liam minhas publicações ficavam encantados por eu falar de uma realidade que era tão próxima deles, mas que não era estimulada a ser contada nas universidades brasileiras.

Em 2017, enquanto fazia um pós-doutorado na Universidade de Manchester, na Inglaterra, me inscrevi para alguns concursos no Brasil e nos Estados Unidos, e mais uma vez foi lá que as portas se abriram. Hoje sou professora do departamento de estudos Interdisciplinares da Kennesaw State University, na Georgia, nos EUA.

Logo eu, que saí da Baixada Fluminense, mal falava inglês, e agora me pego emocionada em dar uma aula ou em corrigir uma prova em outro idioma.

Até o momento já ministrei 13 disciplinas de graduação e mestrado nesta universidade, tendo ensinado para mais de 300 estudantes. Também já visitei 11 países das Américas e da Europa para me apresentar. Está na minha lista visitar o continente africano também.

A PHD Luciane Rocha em uma de suas palestras pelo mundo. Ela já esteve em 11 países — Foto: Reprodução/Arquivo pessoal

Esta experiência não é só minha. Existem outras mulheres negras antes de mim que conseguiam quebrar as barreiras, existem várias da minha geração produzindo conteúdos maravilhosos e muitas ainda virão. É um caminho sem volta! Vejo assim o meu papel: o de abrir portas e mostrar que é possível encontrar o seu lugar na academia, caso a pessoa queira seguir essa rota.

Mas precisamos de mais! Ações afirmativas são importantes para fazer jovens negros e periféricos a chegar na universidade. Criar cotas, polos universitários nas periferias, bolsas-auxílio para que o jovem possa se manter lá, bolsas de iniciação científica, investimento nas universidades e escolas públicas.

É preciso ainda criar concursos específicos para atender certas demandas teóricas, o corpo docente das universidades precisa refletir a demografia do país. Somos 54% de negros, segundo o IBGE.

Acima de tudo, precisamos assegurar vida segura para que nossas crianças e jovens possam avançar nos estudos. Para onde será que as meninas Emily Victoria e Rebeca, assassinadas na porta de casa na Baixada Fluminense, gostariam de voar quando crescessem? Que minha sobrinha e sobrinho, afilhados e afilhadas e todas as crianças da Baixada possam ser borboletas e voar!"

Luciane Rocha: a jovem negra que levou cinco anos para passar no vestibular, hoje é PHD nos EUA — Foto: Divulgação

Veja também

Mais lidas

Mais do G1
Deseja receber as notícias mais importantes em tempo real? Ative as notificações do G1!