Por Nayara Fernandes, G1


'Faces Negras': Glaucia Verena

'Faces Negras': Glaucia Verena

Dos efeitos de uma vida marcada por violências estruturais, o silêncio da vítima está entre os mais comuns. É diante desta constatação que Glaucia Verena, de 33 anos, dá norte a sua atuação como fonoaudióloga e ajuda seus pacientes a expressar a potência de suas vozes – muitas destas, negras.

A profissional trabalha com alguns dos jovens artistas expoentes na música afro-brasileira, como as cantoras Xênia França, Liniker e Marissol Mwaba.

Glaucia também é cofundadora do Núcleo Ayé, o primeiro coletivo negro da Faculdade de Medicina da USP. A organização política, segundo suas palavras, foi um chamado ancestral para cuidar do acolhimento de estudantes negros dentro da mais prestigiada universidade da América Latina – e a última das instituições públicas a aderir ao sistema de cotas raciais no país.

No mês em que completa 15 anos, o G1 traz uma reflexão sobre temas impactantes para o país e a evolução deles ao longo dos tempos. Na primeira reportagem especial, 'Faces Negras', conversamos com personalidades de variadas gerações que superaram as barreiras do racismo. São relatos de histórias e experiências que envolvem a cor da pele, a luta contra o preconceito, as dificuldades e o orgulho de ser preto. Conheça Adriana, Babu, Daiane, Fábio, Fatou, Glaucia, Isaac, Ivanir e Luciane.

Glaucia por Glaucia:

Glaucia Verena — Foto: Divulgação

"As pessoas pretas não se conectam somente por meio da dor. Pelo contrário, estamos no momento de nos conectar por meio da cura. É o que eu tenho aprendido muito com a nova geração: a noção que eles têm trazido sobre a importância do cuidado e da saúde mental nas suas atividades. É fundamental a gente trazer a saúde como uma força política.

Sou uma pessoa multidimensional: cientista, cantora, empresária, uma grande curiosa acima de tudo. Como fonoaudióloga, ouço histórias e consigo ajudar as pessoas a trabalhar suas vozes e se expressar de forma cada vez mais verdadeira. O silenciamento, muitas vezes, não é só questão de timidez, mas uma expressão da violência vivida.

Eu entendi o mundo sem as grandes proteções de uma escola particular. Dentro dessa realidade, a gente via vários recortes da sociedade. A escola era esse microcosmos.

Tudo o que uma criança tem quando está tentando se desenvolver em sociedade é um sonho. Quando a gente não têm crianças pretas sonhando, elas não vão ter um objetivo.

Tive colegas que passaram fome, entraram para o tráfico, ou morreram durante a minha trajetória no ensino básico. Uma professora que disse que eu provavelmente não seria nada quando eu disse que queria prestar USP.

A gente atravessava essa realidade, e o componente racial dentro dessa questão é muito forte. Até chegar na universidade foi uma construção. Fui educada em uma lógica de ser 150% a mais. Cheguei a estudar 14 horas por dia, e isso não é nada bonito.

Ter que custear esse tanto de horas para tentar diminuir a defasagem que você recebeu só mostra o grau de disciplina e exigência em um ambiente que pauta meritocracia, mas não é meritocrático. É um sabotador de futuros.

Ingressei na USP em 2009, três anos antes da aprovação da lei de cotas raciais.

Se a escola me parecia um microcosmos, o ensino superior, para mim, era um planeta inteiro, com força de gravidade selecionada: não é todo mundo que entra, nem permanece -- e é curioso porque também se trata de um local público. Tive uma trajetória bastante solitária em encontrar meus pares e enfrentamentos desnecessários. Me reconhecia nos funcionários, que me acolhiam muito.

Fui presidente de centro acadêmico e presidente de liga estudantil. Sempre tive uma veia de mudança e transformação, mesmo sem o letramento político que tenho hoje.

Quando me matriculei no mestrado, em 2017, também foram aprovadas as cotas universitárias na USP. Senti um chamado ancestral para cuidar do processo de acolhimento de estudantes negros e decidi fundar o Núncleo Ayé, o primeiro coletivo negro da Faculdade de Medicina da USP.

Compartilhei esse sonho com a Merllin de Souza e pensamos em como acolher esses estudantes: Como manter o direito da entrada, mas também a política de permanência estudantil.

Estamos falando de cursos integrais, nos quais você não tem possibilidade de trabalhar, o que dificulta você se sustentar ao longo da universidade. São formações que exigem bastante preparo emocional, e quando existe um recorte de raça e de classe, tudo isso fica mais difuso.

Estamos conseguindo pautar a questão da permanência estudantil e tem sido bastante enriquecedora, inclusive institucionalmente. Vejo o fenômeno Núcleo Ayé de uma forma muito potente. Mas estamos preocupados.

Do ponto de vista social, por mais que a gente esteja vivendo um momento tão duro, acredito que essa onda política protagonizada pelo Movimento Negro deve continuar com o progresso. Isso não significa que não existirão barreiras, que não existirão pessoas querendo interromper essa diversidade porque ela é humana.

A manutenção das cotas deve ser revisada daqui a um ano. E a USP foi a última universidade a adotar esta ação. Isso reflete o quanto essa luta política e institucional é complexa e difícil.

Hoje, estamos pautando a permanência dos estudantes nas universidades, mas estamos preocupados com essa difícil situação política que o governo se encontra hoje.

A universidade oferece a oportunidade de entender o racismo enquanto fenômeno no Brasil, mas precisa de uma ampliação de epistemes. Outros conhecimentos além do eurocêntrico precisam ser levados para essas instituições.

Eu sempre me entendi como uma pessoa preta, desde criança. E também afroindígena -- sendo que minha mãe é uma mulher paraense e corre o sangue indígena da família.

Sou uma pessoa de terreiro, então sempre tive uma identidade muito bem construída do ponto de vista familiar e da minha cultura: no ocidente, a gente tem a velhice como algo negativo enquanto no terreiro o mais velho é um exemplo de sabedoria que contribui com sua comunidade.

Honrar o povo de terreiro e bater paó em reverência aos orixás sempre me fortaleceu tanto no aspecto de crença quanto no fato de estar inserida em uma civilização que, muito antes do tráfico negreiro, já entendia diversidade, pessoas, e a complexidade do que é sociedade: esses valores civilizatórios que são diversos.

O axé sempre me trouxe uma força a mais para enfrentar essas barreiras. A sabedoria de Exu, por exemplo, diz que se não há uma troca nas nossas relações, alguém está roubando algo, e isso é errado.

O racismo veio para mim como um fenômeno de estudo. Eu passei a estudá-lo como um sistema que delimita o acesso a oportunidades com o viés de raça. Negar isso é negar toda a trajetória de 450 anos de escravidão e esse pós-abolição torto do qual o Brasil precisa se libertar.

O acordar é sempre doloroso, mas é necessário. A luta de quem veio antes, de quem está agora e de que vem depois é determinante para que a gente mude essas estruturas."

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