Brasil Educação

'Exposição a conceitos comunistas' e 'ideologia de gênero': escola municipal do RJ recebe intimação da polícia após denúncia encaminhada pelo Ministério de Damares

Diretor do colégio foi à delegacia prestar esclarecimentos e apuração foi suspensa por falta de provas; caso surpreendeu professores, e sindicatos repudiaram iniciativa: 'Atentado à democracia e à liberdade de cátedra'
Fachada da Escola Municipal Getúlio Vargas, em Resende, que recebeu denúncia encaminhada direto do governo federal Foto: Foto de leitor
Fachada da Escola Municipal Getúlio Vargas, em Resende, que recebeu denúncia encaminhada direto do governo federal Foto: Foto de leitor

Uma intimação da Polícia Civil que chegou à direção da Escola Municipal Getúlio Vargas, em Resende, na segunda metade de novembro, surpreendeu direção e parte do corpo docente do colégio. O pedido de esclarecimentos veio acompanhado de uma denúncia anônima encaminhada pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH), da ministra Damares Alves, em que uma pessoa afirma que há "situação de violência contra criança ou adolescente" acontecendo no colégio, onde justifica que os alunos estariam sendo "expostos a conceitos comunistas" e "ideologia de gênero". Surpreso, e após ter ouvido os professores da instituição, o diretor Paulo Henrique Nogueira foi à delegacia da cidade, onde esclareceu os fatos e até ouviu de uma autoridade policial que queixas como esta, que chegam do governo federal, têm se multiplicado pelo país.

— Foi uma denúncia anônima. Quando cheguei na delegacia, me falaram que isso anda pipocando no Brasil inteiro, e que parece algo orquestrado. Era uma denúncia muito vazia, não continha elementos concretos, não citava se era referente a algum educador, de qual turma, se era um aluno... então, fui à delegacia e encerrei esse assunto — contou ao GLOBO o diretor, que optou por não opinar sobre o assunto, mas narrou os fatos que testemunhou. — Os nossos professores são orientados a seguir as instruções do MEC (Ministério da Educação) e, até que se prove o contrário, é isso que eles estão praticando.

Vestibular: Inep divulga gabarito oficial do Enem 2021; confira as respostas

" Denunciante informa situação de violência contra criança ou adolescente (...). Denunciante informa que a Escola Municipal Getúlio Vargas está expondo adolescentes aos conceitos comunistas, induzindo sua ideologia política. Além de também pregar ensinamentos de ideologias de gênero. Denunciante alega que a responsabilidade de direcionar a conduta dos jovens pertence unicamente aos pais e não a escola ", diz ofício emitido pelo ministério, que define a queixa como sendo de integridade psíquica e exposição. " A situação de violência agrava-se em razão da presença dos seguintes elementos: ambiente escolar; condutas excessivas; desnecessárias; desaconselhadas; em razão da idade ".

Reprodução do documento do MDH que chegou à escola junto à intimação da Polícia Civil Foto: Arquivo pessoal
Reprodução do documento do MDH que chegou à escola junto à intimação da Polícia Civil Foto: Arquivo pessoal

Apuração suspensa

Procurada, a 89ª Delegacia de Polícia Civil do RJ (Resende), reforçou que a denúncia foi feita através do Disque 100, que é um serviço de proteção a crianças e adolescentes com foco em violência sexual, o que gerou naturalmente uma apuração de rotina. Logo após os esclarecimentos dados pelo diretor da escola, a polícia afirma que, por não haver nenhum elemento probatório de irregularidade, a apuração foi suspensa — ou seja, a denúncia foi arquivada.

Denúncias como esta podem ser feitas por qualquer pessoa através da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, braço da pasta de Damares, através dos canais Disque 100, Ligue 180 e do aplicativo Direitos Humanos Brasil. Procurado, o MDH disse que estas queixas são sigilosas e que, por isso, não pode comentar o assunto ou sequer confirmar se a denúncia foi registrada ou não. A pasta, no entanto, esclareceu que todas as denúncias anônimas recebidas através dos portais de atendimento são encaminhadas aos órgãos competentes, e confirmou que, apesar de haver uma espécie de checagem, não há qualquer tipo de filtragem. No portal estatístico, que é aberto a população, há toda sorte de acusações de violações aos direitos humanos, que vão desde calúnia a crimes bárbaros, como estupro, tráfico de pessoas e trabalho escravo. Levando em consideração apenas o ambiente escolar, são 3.816 denúncias só em 2021 — a maioria por ameaças à integridade física ou psíquica das crianças.

— O diretor acabou vindo até mim e a outros dois colegas da área de humanas, todos espantados com a denúncia, porque a gente fica sem entender o que está acontecendo — narra o professor de História da escola, Marcelo Klein, que trouxe a público o caso na semana passada. — A denúncia do Ministério foi encaminhada para a delegacia local para que o responsável da escola respondesse por aliciamento dos alunos, que estariam expostos a ideologia comunista e de gênero. Infelizmente, é uma realidade que a gente vive no momento, do gabinete do ódio. O próprio ministério manter esse tipo de sistema mostra que ele está disposto a travar uma luta moralista. Porque não foi o MEC quem veio nos questionar, foi um ministério que não tem nada a ver com a escola, reproduzindo uma denúncia sobre algo ridículo.

Erro na prova: questão de matemática é anulada; professores dizem que não havia resposta correta

'Atentado à democracia'

O assunto, é claro, chegou à Associação dos Professores Municipais de Resende (APMR). A instituição está se articulando internamente e junto ao Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação do RJ (Sepe-RJ) para fazer uma manifestação ou no calçadão da cidade, ou na Câmara de Vereadores, contra a iniciativa que a presidente do órgão, a professora Claudia Luiza de Oliveira, definiu como uma opressão digna dos tempos da ditadura.

— Ficamos sabendo do que aconteceu e fomos questionar junto à escola, e o próprio diretor estava surpreso com isso, não esperava esse tipo de procedimento. Oferecemos apoio jurídico, mas o diretor pessoalmente quis responder pela escola. Estamos reunindo um grupo de professores e vamos fazer um manifesto no calçadão ou na Câmara de Vereadores, se conseguirmos apoio. Será um ato em favor da liberdade de cátedra, liberdade para nossos professores, tanto na área pedagógica, quanto científica — disse Cláudia.

Ela ressalta que a população de Resende sempre foi reconhecidamente conservadora, justamente pela presença histórica de militares, mas que, mesmo assim, não era algo que os profissionais esperavam passar.

— Parece a época da ditadura. Resende já tem uma característica mais conservadora, por ter muitos militares. Aliás, praticamente todos os militares do golpe de 1964 saíram daqui na época, a gente sabe disso tudo. Mas, hoje, temos uma convivência harmoniosa. Não esperávamos que algo assim fosse acontecer dessa forma. Queremos justamente mostrar nosso repúdio e, ao mesmo tempo, apoio para que não aconteça algo assim novamente. Surgiu do ministério da Damares, mas não tem nada a ver com questão pedagógica. O que tem a ver? — questionou.

Garimpo ilegal: Prefeito anuncia fim da operação no Rio Madeira: 'As balsas de vocês não serão mais queimadas'

A professora se refere à Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), escola de ensino superior do Exército, sediada em Resende desde 1944, e que entre 1963 e 1964 teve como comandante o general Emílio Médici, que poucos anos depois viria a ser o terceiro presidente da ditadura. A concorrida instituição de excelência é a única escola formadora de Oficiais de carreira das Armas de Infantaria, Cavalaria, Artilharia, Engenharia e Comunicações, do Quadro de Material Bélico e do Serviço de Intendência do Exército, e é onde, não só o presidente Jair Bolsonaro se formou (turma de 1977), como também o vice-presidente Hamilton Mourão (turma de 1975), o ex-ministro da Casa Civil Walter Braga Netto (turma de 1978) e o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, Augusto Heleno ( turma de 1969).

O Sepe-RJ, por sua vez, emitiu uma nota de repúdio ao caso nesta quarta-feira (1), e definiu como um atentado contra a democracia.

"Em mais um dos muitos atos que atentam contra a democracia e a liberdade de cátedra nas escolas, mesmo após contundente derrota no STF do Projeto Escola Sem Partido, em agosto de 2020, os profissionais de educação de Resende se veem diante de mais uma atitude arbitrária, que veio desta vez através do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH)", diz a nota, que prossegue:.

"O Sepe repudia veementemente mais este ataque contra a liberdade pedagógica dentro da escola. Entendemos que a sala de aula é um espaço livre da censura e das investidas autoritárias que querem calar o direito à livre expressão dos profissionais de educação no exercício da sua função.

A nota do sindicato também faz críticas à postura da ministra Damares Alves à frente da pasta de Direitos Humanos.

"A ministra Damares Alves, responsável pelo ministério que encaminhou a denúncia contra a direção e o corpo docente do Colégio Municipal Getúlio Vargas (Resende), tem marcado sua atuação à frente do ministério com polêmicas sobre questões de gênero e atitudes antidemocráticas constantemente denunciadas pela imprensa Desde o surgimento de projetos de parlamentares pouco comprometidos com a democracia e a liberdade de expressão, o Sepe e os profissionais de educação das escolas públicas do Rio de Janeiro saíram às ruas para denunciar tais ataques contra o direito à liberdade de expressão e à liberdade de cátedra, fundamentais para o exercício da nossa função e para a formação pedagógica dos nossos alunos".