Blog da Amélia Gonzalez

Por Amelia Gonzalez

Escreve sobre sustentabilidade e debate temas ligados a economia, meio ambiente e sociedade


Ódio e paixão condensam as informações e tratam as crianças como uma massa homogênea, sem respeito à singularidade de cada um — Foto: Pixabay

Saí de casa, na noite de segunda-feira (10), para um encontro sobre a infância, ou sobre como se podem criar os pequenos numa era como a nossa. Mas, a caminho, busquei ponderar e conceituar melhor sobre aquilo que estamos chamando de “nossa era”. Um mundo polarizado, é o primeiro pensamento que me vem à cabeça quando me obrigo a defini-lo.

Há dois lados distintos, muito fortes, se sobrepondo à necessidade de se refletir sobre outras saídas possíveis. Muito ódio e muita paixão que condensam as informações e tratam as crianças como uma massa homogênea, sem respeito à singularidade de cada um.

Um mundo que permite que uma nação mantenha 60 mil crianças sob custódia (nos Estados Unidos) porque seus pais praticaram o direito inalienável de tentar uma vida melhor em outro país. Os pequenos estão nessas condições há pelo menos 40 dias e, neste tempo, não têm quaisquer de seus direitos respeitados.

Um mundo em que é preciso que uma organização global, a Organização Mundial da Saúde (OMS), lance diretrizes para que as crianças possam crescer saudáveis.

A mais infame derrota da humanidade é quando ela precisa ser lembrada de que as crianças precisam brincar na rua, ao ar livre, no terraço ou na calçada, em vez de ficarem horas e horas sentadas com os olhos grudados numa tela de celular, de televisão ou de computador.

"Melhorar a atividade física, reduzir o tempo de sedentarismo e garantir o sono de qualidade em crianças pequenas melhorará sua saúde física, mental e de bem-estar e ajudará a prevenir a obesidade infantil e doenças associadas mais tarde", disse Fiona Bull, gerente de programas de vigilância e população da OMS, no site da instituição.

Assim fui refletindo.

Futebol para crianças em Porto Velho — Foto: Matheus Henrique/G1

O debate para o qual fui convidada, que aconteceria na Escola Sá Pereira, Zona Sul do Rio de Janeiro, acabou sendo, para mim, uma palestra da psicanalista Ilana Katz.

Faltavam cerca de 20 minutos para o término, quando ela encerrou sua fala, e pouco sobraria para que a plateia, de pais e professores da própria escola, pudesse fazer perguntas e se posicionar. Têm sido assim, geralmente, nossos encontros para falar sobre assuntos tão nobres. Todos precisam de cada minuto do seu dia para o trabalho e tarefas rotineiras que se impõem cada vez mais, falta tempo para “o resto”, mesmo que esse resto seja de fundamental importância para a nossa qualidade de vida. Por isso, precisei sair 20 minutos mais cedo e não ouvi as experiências dos ouvintes.

Durante a palestra, Ilana Katz não poupou nem mesmo a si própria quando traçou o perfil da sociedade onde estamos criando as crianças. Em resumo: nossa sociedade é desigual. Tanto no documentário “Muro”, que levou para exibição, quanto no desfile organizado pelo Emicida na "São Paulo Fashion Week", ou em outro vídeo em que uma menina de 6 anos se submete a uma experiência e é rechaçada pelos pedestres só quando se apresenta feia e maltrapilha, o alerta é sobre uma crise que parece não ter fim.

Há uma abissal desigualdade social que se impõe a cada momento nas ruas, em nossas cidades, no mundo.

Às vezes a desigualdade bate à porta. Este é o caso do pessoal que mora num condomínio de luxo em São Paulo, ao lado da comunidade Jardim Consórcio. A questão é que as crianças pobres descobriram um lugar onde se entocam para observar, a uma distância segura para ambos os “mundos”, os meninos ricos se deleitando na piscina. Enquanto observam, elas suam num calorão desconfortável.

O síndico do condomínio é chamado para uma aproximação harmoniosa que o vídeo quer mostrar, já que corre o boato de que ele mandou destruir os barracos. Os adultos conversam, há uma tensão velada, transformada em rapapés e salamaleques diante da câmera. A culpa que os mais abastados sentem é evidente.

Já as crianças, no momento da conversa, entram em coro para uma pergunta, a única que lhes interessava realmente: “Podemos ir lá tomar banho de piscina?"

Quando ouvem a negativa, rebatem uma única vez. E logo depois continuam sua própria brincadeira. Fim de jogo para eles. Daquele jogo. Mas, sem drama. Há uma vida inteira a ser vivida, sentida. A natureza delas fala mais alto do que a cultura que as está envolvendo naquele instante.

A diretriz da OMS que Ilana Katz citou na palestra busca a necessidade de trazer de volta à criança a vontade de ela brincar:

“O padrão de atividade geral de 24 horas é fundamental: substituir o tempo de tela prolongado ou sedentário por um jogo mais ativo, garantindo que as crianças pequenas tenham uma boa qualidade de sono. O tempo sedentário de qualidade gasto em atividades interativas não baseadas em tela com um cuidador, como leitura, 'contação' de histórias, canto e quebra-cabeças, é muito importante para o desenvolvimento infantil.”

Crianças começam cedo a usar a internet em celulares e outros aparelhos — Foto: Reprodução/EPTV

Será mesmo que os adultos não sabem disso? Será mesmo necessário que uma instituição nos lembre o valor das brincadeiras, do deleite puro das travessuras? Não me parece.

O que tem acontecido é um afastamento dos adultos dos valores da vida. E isto não acontece à toa. No mundo culturalista, da meritocracia, em que estamos imersos, o celular, as mensagens, exercem mais pressão para se alcançar o topo do que ser simples. Alguém se imagina justificando a falta ao trabalho com um mero: “Fiquei brincando com o meu filho?”

No entanto, que falta faz para adultos e crianças esse encontro, desde que seja harmonioso, sem pressão, horários, sem julgamentos, sem a necessidade de estar, a todo o tempo, educando e pondo limites. Mas, se tudo já foi dito, se tudo está representado e mastigado, o que mais os adultos terão para aprender em tais momentos, que os coloquem em pé de igualdade com as ásperas exigências do mercado?

Foi assim que ouvi a palestra. Como uma espécie de chamado para um mundo onde o “ser” ganhe mais valor do que o “ter” ou do que o “saber”. Para construir, a partir dessa mudança de paradigma – e só assim eu imagino ser possível – um mundo onde seja possível borrar as fronteiras, como alerta Ilana Katz.

Desconstruir muros em vez de erguê-los é tarefa também para quem pode abrir mão de se inserir no contexto globalizado de diretrizes internacionais para lidar com alguma coisa tão singular, que é a criação dos filhos. Os nossos, os deles, ou os de todos nós, visto que queremos um mundo, verdadeiramente, sem fronteiras.

Nesse sentido, não vejo momento melhor para se pensar em ensinar nas escolas que o meio ambiente é importante. Talvez o respeito às árvores, aos animais, aos oceanos e mares possa ser um exemplo vivo daquilo que se quer transmitir para as crianças.

O filósofo francês Gilles Deleuze, morto em 1995, uma voz forte e dissonante do senso comum, tem uma reflexão sobre dobras, que me fez lembrar este borrar de fronteiras proposto pela psicanalista.

“Para os surfistas, a natureza é um conjunto de dobras móveis. Eles se insinuam na dobra da onda, a tarefa deles é habitar a dobra da onda”, diz Deleuze no “Abecedário de Deleuze”, entrevista que deu em 1994, portanto um ano antes de morrer, à jornalista Claire Parnet. A única exigência dele foi que o vídeo fosse lançado apenas após sua morte.

Peço emprestado a Deleuze mais um pensamento para terminar a reflexão sobre o tema proposto pela psicanalista, que me suscitou mais dúvidas do que respostas (isso é bom!).

Segundo o filósofo francês, que em 1968 se tornou uma voz viva a martelar contra o sistema econômico que nos rege: “Não é a pobreza que é incômoda, mas a insolência ou a impudência daqueles que ocupam os períodos pobres.”

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