Educação

Por João Victor Neo, da EPTV, e g1 São Carlos e Araraquara


Maria Alice Zacharias retornou todo o conhecimento que batalhou para conseguir nas universidades para pessoas do campo que não tiveram a mesma oportunidade de estudar que ela — Foto: Rodrigo Sargaço/EPTV

"Ninguém liberta ninguém e ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão." Com essa frase de Paulo Freire, a professora da rede municipal de ensino infantil de São Carlos (SP) Maria Alice Zacharias, de 51 anos, explica o que a move pelo caminho do aprendizado e do ensino e que a fez sair da lavoura, retomar os estudos até conseguir fazer um doutorado e, voltar para o campo para dar aulas em um assentamento rural.

Ela leva aprendizado a pessoas que - como ela - nasceram e viveram na roça, mas não conseguiram estudar.

Neste sábado, 15 de outubro, quando é comemorado o Dia do Professor, o g1 e a EPTV, afiliada da TV Globo, trazem a história dessa ex trabalhadora rural que deixou o corte de cana-de-açúcar para as salas de aula, primeiro para aprender e, agora, para ensinar, e fez da educação, principalmente dos mais necessitados, a sua missão de vida.

Professora ajuda a transformar vidas em assentamento de São Carlos

Professora ajuda a transformar vidas em assentamento de São Carlos

Longo caminho

O caminho do facão do corte de cana para a o giz e a lousa da sala de aula foi muito longo para essa mulher, preta, e filha de pais analfabetos que sempre teve vontade de estudar, levada pela convicção que a educação era a única maneira de lutar por si e pelos outros.

Mesmo diante da descrença e do preconceito que encontrou pelo caminho, Maria Alice nunca desistiu de levar adiante seu sonho. Em casa, somente ela conseguiu chegar à faculdade. Seus quatro irmãos não conseguiram concluir nem o ensino fundamental.

LEIA TAMBÉM:

A menina Maria Alice Zacharias tinha o sonho de estudar. — Foto: Reprodução/Arquivo pessoal

Moradora de uma fazenda em São Carlos onde seus pais trabalhavam, Maria Alice só conheceu a sala de aula aos 8 anos de idade e, assim mesmo, frequentou apenas por três anos.

Para chegar até a escola rural que funcionava em uma capelinha em outra propriedade rural, era necessário andar quase uma hora no meio do pasto. Deste tempo, ela lembra das leituras na sala de aula, das tomadas de tabuada, das brincadeiras no intervalo e também da revolta do irmão, que de tempos em tempos “brigava e jogava algum moleque no rio por nos xingar de macacos”.

Ela também vivenciava o racismo nas cantigas de roda. “Lembro de que brincávamos e eu não gostava de algumas músicas que cantavam, entre elas: ‘Plantei uma cebolinha no meu quintal, nasceu uma negra de avental, dança negrinha, não sei dançar, se eu pegar o chicote você dança já’. Nesse momento, eu me entristecia e fui me percebendo ‘diferente’, as crianças riam e eu não gostava disso”, contou.

Após concluir a terceira série do ensino fundamental na fazenda, Maria Alice ficou cinco anos sem estudar, porque não havia outras séries na escola rural.

Durante esse período foi trabalhar e aos 11 anos já limpava a casa toda e olhava um bebê. Depois mudou-se para uma usina açucareira de Ibaté, onde pasou a adolecência no corte de cana.

“As pessoas iam trabalhar armadas, com facões, enxadas entre outras ferramentas. O dia parecia não ter fim. Cortar a cana, amarrar em pequenos feixes, fazer os montes para os caminhões levarem para a fabricação do açúcar e do álcool demandava muitas horas de trabalho.”

Por muitos anos Maria Alice Zacharias trabalhou no corte de cana, mas mesmo com o trabalho exaustivo, investiu nos estudos — Foto: Rodrigo Sargaço/EPTV

Apesar de trabalhar o dia todo, ela resolveu se matricular no curso noturno oferecido pela escola da usina para concluir o ensino fundamental.

“Não foi nada fácil estudar sem sujar os cadernos, ir para a aula com cheiro do melaço da cana que ficava impregnado no corpo. Aos poucos fui adquirindo a certeza que precisava estudar de qualquer forma que eu não poderia parar de estudar se quisesse fazer algo, não só para mim, mas para meus pares também.”

A saga continuou e para fazer o supletivo de ensino médio, Maria Alice tinha que andar da fazenda até São Carlos para, somente na cidade, conseguir tomar um ônibus para chegar à escola. Até que se mudou para a cidade e começou a fazer faxina para bancar o curso de magistério.

Depois de se formar professora, Maria Alice parou, por necessidade, mais uma vez de estudar, mas assim que conseguiu, voltou para o banco escolar, dessa vez para fazer graduação em Ciências Biológicas, que ela conseguiu terminar graças a uma bolsa oferecida pelo Centro Universitário Paulista (Unicep), após ela ficar devendo várias mensalidades e, por fim, com o financiamento do Programa Universidade para Todos (ProUni).

Com a graduação, Maria Alice não parou mais de estudar e já passou por três das maiores universidades do país: fez especialização em Educação Ambiental na Universidade de São Paulo (USP), mestrado em Educação Escolar, na Universidade Estadual Paulista (Unesp) e doutorado na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

Do racismo para a libertação pela educação

Com mestrado e doutorado por grandes universidades públicas, Maria Alice Zacharias, voltou a sua origem no campo para dar aulas para adultos de um assentamento de São Carlos — Foto: Rodrigo Sargaço/EPTV

Em toda sua luta para se formar, Maria Alice levou a resiliência como uma de suas armas. "Embora tenhamos várias atribulações no meio do caminho, precisamos buscar constantemente forças para continuar", disse.

Uma dessas atribulações foi o racismo, que ela sofreu em diversos ambientes, inclusive em sala de aula. Após ser rejeitada em uma sala de crianças durante o estágio do magistério, Maria Alice conheceu a Educação de Jovens e Adultos (EJA) e se apaixonou.

“Durante toda a minha formação sempre articulei minhas pesquisas com a educação de pessoas jovens e adultas, pois penso ser importante contribuir para o maior número de pessoas que está às bordas do sistema possa ter acesso ao conhecimento de forma crítica e emancipadora. Dessa forma, elas realmente poderão transformar os espaços que ocupam”, afirmou.

Aulas em assentamento

Em 2006, entrou como voluntária no Movimento de Alfabetização de Jovens e Adultos (Mova), criado por Paulo Freire e Pedro Pontual no final da década de 1980. Em São Carlos, o programa teve início em 2003 e ainda se faz presente com 24 núcleos de alfabetização que atendem pessoas da zona rural e urbana, sob a coordenação da própria Maria Alice.

Um desses espaços é um assentamento rural, onde ela leva o poder libertador da educação para homens e mulheres que foram impedidos de poder ler e escrever por seus patrões e famílias.

“O objetivo de buscar instrumentos para qualificar-me, não faz nenhum sentido se não for para contribuir com os meus pares, pois acredito que o conhecimento deve ser compartilhado sempre. O campo é minha raiz e seu eu não voltasse para a minha origem, não faria sentido tudo o que eu fiz. Eu preciso contribuir com as pessoas", diz Maria Alice.

A professora Maria Alice Zacharias saiu do trabalho rural para se tornar doutora pela UFSCar — Foto: Rodrigo Sargaço/EPTV

Veja também

Mais lidas

Mais do G1
Deseja receber as notícias mais importantes em tempo real? Ative as notificações do G1!