Evasão por app

Pandemia aumenta temor de maior abandono dos estudos e mobiliza ações para mitigar o problema

Rodrigo Bertolotto De Ecoa, em São Paulo

São 11h30 de uma terça-feira. Encontro Igor esperando a distribuição de comida que uma igreja promove. Na longa fila, há moradores de rua, desempregados e entregadores de aplicativos, como ele. Um homem lhe dá o isopor com arroz e salsicha que estava no porta-malas do carro estacionado ali, e o garoto se senta em um banco do Largo da Batata, na zona Oeste de São Paulo, para se alimentar antes do expediente.

"No ano passado, repeti o 2º ano do ensino médio e já nem me matriculei depois. Só ia bem em geografia. Nas outras matérias não dava nada certo. Nem dividir eu sei direito. Desanimei geral", conta Igor Vidal de Souza, 18.

Almoçando junto, um companheiro mais veterano na entrega protesta: "Ô, moleque, tem que estudar. Se não, não cola mais com a gente."

Contrariado, Igor dá mais razões para o destino que lhe trouxe ali. "Tenho um filhinho de dois anos, pago pensão e ainda ajudo minha mãe em casa. Pedalando eu ganho um dinheirinho. Até sei consertar moto, mas nenhuma oficina na minha quebrada me arruma serviço. O jeito foi fazer entrega."

Ele mora no município de Carapicuíba, na Grande São Paulo, e pega dois trens para chegar a Pinheiros. Sai às 10h da manhã de casa e volta às 22h. Diz que tira 400 reais por semana, mas, descontada a condução e o aluguel da bicicleta, embolsa a metade.

"Tem amigo meu que abandonou o colégio desde a sexta série. Eu até que fui longe. Se arrumar um supletivo à noite, talvez eu volte a estudar. Mas agora não posso mais parar de trabalhar."

Igor faz seu expediente na avenida Faria Lima, a via que concentra as empresas das novas tecnologias e finanças. O garoto de 18 anos é o elo mais fraco desse mundo de serviços por aplicativo e empregos precarizados.

Um pouco mais tarde, às 13h30, encontro novamente com Igor. Dessa vez, ele está sentado no chão diante de um restaurante McDonald's, esperando algum pedido. "Já nem sonho o que quero ser. Queria só ganhar um pouco mais."

Com sua história, Igor sintetiza vários problemas que levam à evasão escolar no Brasil: a necessidade de trabalhar, a desconexão com os estudos, a gravidez na adolescência.

A pandemia, o isolamento e as escolas fechadas pioraram esse cenário, e há perspectiva de aumento nos índices quando as estatísticas de 2020 fecharem no início do próximo ano e apontarem o tamanho do impacto. O efeito de longo prazo preocupa ainda mais. Por isso, ações para mitigar são importantes, devolvendo esses jovens a seu lugar de direito.

Operação resgate

"As catástrofes, sejam naturais ou sociais, prejudicam de uma forma muito prolongada as atividades de ensino. Isso foi muito estudado no caso da destruição que o furacão Katrina provocou em Nova Orleans em 2005. A retomada das aulas, a localização dos alunos e a volta às estatísticas anteriores foram demoradas. No Brasil, a situação é pior porque a evasão escolar já era um problema grave antes do coronavírus", afirma Romualdo Portela de Oliveira, diretor do Cenpec (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária).

Ele e outros especialistas apontam como exemplo positivo o programa Busca Ativa Escolar, desenvolvido pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) em conjunto com os municípios, para detectar, aproximar e reinserir o jovem ao ambiente educacional, entendendo as questões pessoais, familiares e sociais que o cercam.

Há municípios que escalam os professores para ir até as casas dos evadidos e incentivá-los a voltar. Outros buscam voluntários entre os colegas de aula para mostrar que a ausência foi sentida.

Também são importantes iniciativas como os programas estatais, como o Bolsa Família, que atrelam a distribuição de renda à frequência escolar, para que os jovens não troquem o estudo pelo trabalho.

"A inserção precoce no mercado de trabalho pode ser uma solução de curto prazo para as famílias, mas isso é destruidor para o destino desses estudantes. Quanto menor a escolarização, mais os meninos são condenados a repetir os padrões dos pais e não aproveitar a transformação que a educação pode fazer em suas vidas", aponta Macaé Evaristo, que foi secretária de Educação no município de Belo Horizonte e depois no Estado de Minas Gerais.

Gabriel Lima, 18, quer ser mecânico de aviões. Mas, por enquanto, seus voos são mais rasos: empina sua bicicleta (parcelada no cartão da mãe) e dispara pela ciclovia da Faria Lima para fazer suas entregas.

"Só fui à escola em fevereiro. Depois, não tive aula pelo celular, não. Nem meus amigos. No máximo, uns professores mandaram umas lições por Whatsapp e e-mail, mas eu nem vi", conta o garoto que mora em Interlagos, zona sul da cidade, e gasta quatro horas pedalando entre sua casa e a região em que trabalha.

"Já me acostumei com esse dinheirinho, mas quero voltar a estudar. O ideal seria conciliar os dois", planeja o aluno que está na 2ª série do ensino médio.

Segundo pesquisa feita pelo Datafolha em setembro, 92% dos estudantes receberam atividades remotas, seja por equipamentos ou impressas, mas 36% dos pais consideraram que elas não foram suficientes. Esse mesmo levantamento apontou que 30% dos pais temem que os filhos abandonem a escola depois da pandemia.

Acolhimento emocional

M.T.C. tem 14 anos, mas usa o documento e os dados de um primo maior de idade para trabalhar para um aplicativo de entrega. Seu pai está preso. Ele deixou o colégio no sétimo ano do ensino fundamental e ajuda a mãe com o que ganha pedalando.

"Não queria entrar para o crime como meu pai. Sei que a falsificação de identidade é algo errado, mas foi o jeito para poder ganhar um trocado. Tenho muita disposição e faço o dobro de entregas que muito maior de idade por aí", conta.

Os especialistas falam que, para recuperar esse menino que perdeu o rumo da escola, deve haver um processo de acolhimento no retorno das aulas. "A adolescência é um período de uma tremenda intensidade psíquica, física e hormonal. Eles querem descobrir novas experiências, criar desejos e pertencimentos. Por essa razão, a escola precisa fazer uma reviravolta na sua forma de ser. É necessário dar voz para esse aluno, trazer as famílias para dentro da escola e que façam parte da tomada de decisões", afirma Tereza Perez, diretora da comunidade educativa Cedac, entidade que ajuda na formação de professores.

A ligação emocional ajudou no período de ensino remoto e pode ser a chave para a abertura gradual das escolas. "O engajamento e o aprendizado foi melhor quando os alunos e os professores já se conheciam e havia uma relação de confiança antes do ensino virtual. Sinto que as famílias valorizaram ainda mais as escolas e os professores nesse período de isolamento. As pessoas perceberam que não é só conteúdo, o colégio é também o lugar de convívio social. Esse vínculo tem que ser reforçado na volta ao ensino presencial", aponta Camila Pereira, diretora de educação da Fundação Lemann, organização fundada pelo empresário Jorge Paulo Lemann com iniciativas para a educação pública no Brasil.

Segundo dados do IBGE de 2012 a 2018, o país reduziu de 12,9% para 8,8% o percentual de jovens de 15 a 17 anos que estão fora da escola. O medo agora é uma reversão disso com a pandemia e o isolamento. Pesquisa do Conselho Nacional da Juventude (Conjuve) aponta que 30% dos estudantes de 15 a 18 anos pensam em abandonar os estudos com o fim do isolamento social. Para eles, a desmotivação com as atividades escolares e a situação financeira das famílias pesam na decisão.

Aluno como protagonista

Aos 22 anos, Cléber Oliveira já fez de tudo um pouco em questão de subemprego. Já foi panfleteiro e flanelinha. Já lavou carro. Já lavou prato em restaurante. Já vendeu água mineral no semáforo. Já vendeu cerveja em show. Agora é mais um entregador de aplicativo.

"Gostava de estudar, mas gosto mais de ter dinheiro. Repeti duas vezes de ano de tanto faltar 'para trabalhar'", conta o morador do Capão Redondo (zona sul de São Paulo) que largou os estudos no primeiro ano do ensino médio. "É difícil eu voltar para a escola, mas às vezes penso em virar um advogado e ganhar muito dinheiro."

Um levantamento do Insper aponta um prejuízo de R$ 214 bilhões gerados por ano pela evasão escolar, o que corresponde a aproximadamente 70% do que a União, os Estados e os municípios gastam com educação básica, segundo o instituto. Essa conta soma a menor empregabilidade, a menor contribuição para a economia, a perda de qualidade de vida e a maior possibilidade de entrar para atividades ilícitas daqueles que não completam seus estudos.

Para especialistas, o centro da discussão é o direito do aprendizado. "Não dá para reproduzir burocraticamente o que tínhamos antes. Temos que aumentar a atratividade do currículo, adotar novas práticas, inverter a sala de aula, deixar que o aluno faça a primeira abordagem sobre os temas, enxugar as aulas expositivas dos professores. É uma época de experimentação", opina Portela.

O mundo pós-pandêmico se apresenta como um desafio ainda maior quando o tema é evasão. "Nesse momento de laços enfraquecidos, a escola precisa se repensar. Vai haver um ensino híbrido, parte remoto, parte presencial. Vamos conviver com isso por mais tempo do que se imaginava. Mas, nesse período de ressocialização, precisamos zelar pelo bem-estar mental, afinal, o isolamento trouxe muita angústia em uma época da vida de muitas incertezas como é a adolescência", completa.

Já Perez acredita que o retorno é ainda mais crucial para os últimos anos do ensino fundamental e médio. "São conclusões de etapa, onde os sonhos são colocados e os desejos se encaminham. Em nome da segurança, a educação ficou muito recolhida, mas a saúde mental dos estudantes foi esquecida. Acho que os profissionais da educação têm de encarar a pandemia como os trabalhadores da saúde enfrentam. Com todas as proteções, as escolas devem reabrir, e outros setores, como bares e restaurantes, devem fechar", comenta a educadora.

Para Evaristo, a educação deve ganhar a cidade. "Os alunos devem sair da sala de aula. A escola precisa ir para o ar livre, aos parques, aos museus, à cidade como um todo para aprender. Os jovens devem entender a realidade estudando de perto. E não sendo engolidos por ela indo trabalhar muito cedo", sintetiza.

Os aplicativos de entrega não têm nenhum programa de incentivo para que seus entregadores terminem a educação básica. Procurados pela reportagem, eles apresentaram convênios educacionais. O Rappi, por exemplo, tem parceria para oferecer gratuitamente um curso online de inglês por 30 dias - depois os entregadores têm desconto de 47% nos níveis seguintes. Já o Uber Eats, dependendo do engajamento do entregador, oferece desconto de 50% em cursos de graduação em uma rede particular de universidades. Por seu lado, o iFood tem convênio com o Sesi para cursos profissionalizantes.

Liberdade de estudar

O abandono escolar acontece quando o estudante interrompe o ano letivo, parando de frequentar as aulas. Já a evasão ocorre quando este aluno, que abandonou os estudos, deixa de fazer a matrícula no ano seguinte.

O abandono é especialmente grande no primeiro ano do ensino médio, principalmente nos cursos noturnos, nos quais chega a 21%. Em 2018, quatro de cada dez brasileiros com 19 anos não tinham terminado o ensino médio, segundo a base de dados do IBGE. Desses, 62% não frequentavam mais a escola, e 55% tinham parado no ensino fundamental.

Essa mazela social tem um recorte racial: 27% dos negros entre 15 e 17 anos evadiram, enquanto essa porcentagem era de 19% entre brancos, em 2018.

Também tem um recorte regional. Alagoas lidera o ranking de abandono escolar dos adolescentes, com 13,9%, sendo que oito dos dez piores índices são de Estados das regiões Norte e Nordeste. Na outra extremidade, o Distrito Federal tem o menor número (3,7%), com metade dos Estados com melhores índices nesse quesito se localizando nas regiões Sul e Sudeste.

"A verdadeira liberdade é escolher onde e como viver, como disse Amantya Sen [economista indiano]. O jovem que não se forma perde essa liberdade. Ceifar do mundo esse crescimento, essa potência é uma tristeza", sentencia Perez.

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