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'Eu rezava para ser branco': discriminação e ofensas na escola são 1ª experiência que pessoas negras têm com racismo, dizem pesquisadores

Jovem de 15 anos ouviu de um colega de turma que deveria “voltar para a senzala” e rapaz lembra que, aos 7 anos, chorava para não ir à escola para não ser chamado de fedorento
Maria Julia Quirino, de 15 anos, sofreu discriminação em escola em Rio Claro, no interior de São Paulo Foto: Reprodução
Maria Julia Quirino, de 15 anos, sofreu discriminação em escola em Rio Claro, no interior de São Paulo Foto: Reprodução

RIO - Ao ouvir de um colega de turma que deveria “voltar para a senzala”, Maria Júlia Quirino, de 15 anos, chorou. A tristeza da jovem negra, que desde os 5 anos é ofendida no ambiente escolar por sua cor de pele e seu cabelo crespo, tornou-se indignação ao saber que o preconceito sofrido foi visto pela diretora do colégio estadual como “mimimi”. Da educação infantil ao ensino médio, histórias como a de Maria Júlia se repetem diariamente e tornam as escolas espaços onde alunos negros têm a primeira experiência do racismo, segundo pesquisadores ouvidos pelo O GLOBO.

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As ofensas a Maria Júlia foram feitas por dois alunos da Escola Estadual Marciano de Toledo Piza, em Rio Claro, no interior de São Paulo. Uma delas foi na quarta-feira, dia do aniversário da jovem. Enquanto relatava a uma amiga que estava desanimada, outro estudante disse que era por ela ser preta, e sugeriu que fosse trabalhar “na plantação de algodão”. No dia seguinte, uma aluna contou em mensagem a um amigo como “fez uma menina negra chorar por racismo e agora as negrinhas da sala estavam revoltadas”.

— Quando a outra menina disse que não tolerava preto na sala, fiquei muito ofendida, comecei a chorar e fui falar com um professor, que me disse para fazer uma denúncia na diretoria — conta Júlia.

A reclamação, porém, não resultou em punições. Por isso, estudantes protestaram no pátio do colégio. Em áudios gravados por alunos na sala de aula, é possível ouvir a vice-diretora dizer que não toleraria interferência na apuração do do episódio, que chamou de “conversinha, mimimi e briguinha de meninas”.

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— Desde quando o caso repercutiu na escola e me chamaram na diretoria, senti que fui tratada de forma muito rude, como se quisessem me culpar — diz a aluna.

Ofensas desde cedo

Pesquisadora e professora de História da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Ana Cristina Juvenal da Cruz chama a atenção de que, ao mesmo tempo em que a escola é um instrumento de socialização, “muitas vezes, o primeiro”, está dentro de uma sociedade marcada pela escravidão e é influenciada por isso.

— Os jovens, pais e funcionários que praticam o racismo justificam como uma “piada” e, por não serem repreendidos, continuam com as ofensas. Tudo isso oprime alunos negros, causando consequências para toda a vida — adverte.

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A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo disse que repudia qualquer ato de racismo e “assim que soube do episódio, os estudantes foram convocados a comparecer à escola, acompanhados dos seus responsáveis, para conversas individuais de mediação e acolhimento”. Além disso, a Diretoria de Ensino de Limeira, que cuida da rede de Rio Claro, vai apurar a atuação da vice-diretora.

— Pais racistas precisam ser responsabilizados pelo que eles ensinam aos seus filhos. A lei diz que você não pode diminuir alguém. No espaço da educação, isso é ainda mais incompreensível — diz Debora Kayembe, primeira reitora negra da Universidade de Edimburgo e ativista da educação antirracista.

Pesquisas citadas por Ana Cristina apontam que as atitudes racistas geralmente se iniciam no ensino infantil, quando as crianças reproduzem falas e comportamentos aprendidos no meio familiar, ou ao serem vítimas de diferenciação no tratamento docente. Uma pesquisa em uma creche pública em Minas Gerais mostrou que bebês negros são vítimas dos próprios professores em atos simples como não terem direito a tomar banho.

Segundo Ana Cristina, as consequências do racismo nas escolas são drásticas: a prática aumenta a evasão e também destrói a autoestima de estudantes negros.

— Uma escola e um professor que não valorizam o pertencimento étnico-racial dos estudantes criam um desinteresse pela educação. A criança e o jovem passam a querer faltar, a não ligar para as tarefas, muitos ficam agressivos. A internalização de estereótipos também é um fator que leva à não aceitação de si mesmo, da sua origem — explica.

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Há 12 anos, o estudante e zelador Antônio Bruno Ferreira ouvia da mãe que não poderia atender aos seus pedidos de faltar às aulas. Em prantos, ele dizia que não queria ouvir que era fedorento e tinha o “cabelo duro”. Mesmo com a ida da mãe à escola algumas vezes para reclamar do que sofria o menino de 7 anos, nenhuma medida era tomada pela escola e pelos pais dos alunos.

— O que me marcou foi uma menina que disse que, além de preto eu era pobre, porque estava com uma mochila de rodinha um pouco enferrujada. Eu rezava para ser branco, ficava pensando que teria amigos e seria mais bonito — lembra Bruno, que só entendeu o que viveu quando passou a estudar o racismo estrutural.

Para o professor de História da rede estadual da Bahia Iago Gomes, a lei que obriga as escolas de ensino fundamental e médio a abordar a história e cultura afro-brasileiras é falha ao continuar retratando a perspectiva eurocêntrica nas aulas. Segundo uma pesquisa de 2021 do Todos Pela Educação, de 2011 para 2019, houve uma queda de 15,5 pontos percentuais no número de escolas públicas que diziam possuir projetos referentes a questões étnico-raciais.

— Há reação a isso, que podemos enxergar na tentativa de censura desses assuntos e de professores, e de esvaziamento crítico da educação a partir de projetos como o Novo Ensino Médio. Acredito que uma reforma curricular pode ser um caminho, mas só será possível se pensarmos uma educação formulada e pensada a partir dos Movimentos Negros — diz o professor.

Para ter uma educação antirracista, Jaqueline Santos, consultora de equidade racial do Projeto Seta (Sistema de Educação por uma Transformação Antirracista), pontua que é preciso planejar uma gestão educacional entre governos e profissionais da educação, com o objetivo de reconstruir materiais didáticos e implementar atividades que tragam o debate para o ambiente escolar.

— Secretarias de Educação e Ministério da Educação devem assumir essa agenda em todas as suas necessidades: fortalecimento do marco legal, formação de profissionais da educação, financiamento de pesquisa e produção de materiais didáticos e paradidáticos, gestão democrática com foco em equidade racial e comunidade escolar sensibilizada, comprometida e engajada na temática, condições institucionais com recursos financeiros, materiais e humanos e monitoramento e avaliação. Tudo isso dá base para a implementação efetiva da temática — explica a consultora.