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Estudo inédito aponta a raiz da violência contra pessoas LGBTI+ em lares cristãos

‘Semente de Vida’ é uma obra fundamental e necessária para todas as pessoas

Parada LGBTQIA+ teve a sua 26ª edição em São Paulo no domingo, 19 de junho de 2022. Foto: Reprodução/CartaCapital
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Desde pequena, ouço falar na igreja sobre o diabo. Já ouvi diversas coisas, das mais caricatas até as mais profundas. Mas foi lá que aprendi que o diabo é aquele que divide. Pensando a etimologia da palavra, essa é uma das traduções possíveis.

No Brasil, a maioria da população é cristã, representando 86,8% dos lares brasileiros, de acordo com o Censo de 2010. Porém, nesses últimos tempos vimos lares sendo divididos pelo fundamentalismo religioso, que veio para roubar, matar e destruir, assim como o velho diabo descrito nas Escrituras. O fundamentalismo é multifacetado e se apoia naqueles que, ao definirem sua interpretação da Bíblia, tornaram suas palavras e sua história como o fim, o absoluto. Ou seja, nada para além dali pode ser mudado, questionado, redefinido, vivido.

A pesquisadora e jornalista Magali Cunha aponta que os fundamentalismos se fincaram na América Latina e que ressoam principalmente nas camadas populares, a partir de um discurso muito eficiente, a proteção àquilo que é a única coisa que ainda podem ter: uma família. A moral bíblica da família heterossexual e da mulher submissa ao homem são grandes pilares dos discursos que têm ecoado não só nas igrejas, mas no Congresso e no Judiciário.

Como aponta Magali Cunha “o tema da defesa da família tradicional heterossexual revela-se como a ponta do iceberg de todo um projeto econômico-político mais amplo: manter as coisas como estão, o status quo, a ordem patriarcal”.

Essa forma de fé fundamentalista, que tem a cultura gospel como meio cotidiano de se fazer presente, propaga os discursos de ódio contra a população LGBTI+, dividindo famílias e promovendo violências psicológicas, físicas e espirituais. Filhos, filhas e filhes sendo expulsos de casa, falsas terapias de “cura gay”, estupros “corretivos”, violência física por conhecidos ou desconhecidos… a lista é grande.

Tudo isso foi fomentado ainda mais nos discursos do ex-presidente Bolsonaro, que destilava ódio contra as populações LGBTI+, zombando e minimizando seus problemas e demandas. A pastora Alexya Salvador, a primeira mulher trans a ser nomeada reverenda na América Latina, aponta o dado que o Brasil é o país que mais mata travestis, homens e mulheres trans no mundo.

É nesse contexto, desses últimos quatro anos, que foi o ponto de partida para um estudo recente que explora como a religião permeia esse debate das famílias e população LGBTI+ de fé cristã.

O livro Semente de Vida: rejeição e aceitação de filhos/as/es LGBTI+ em lares cristãos (Editora Saber Criativo, 2023), escrito pelos ativistas Gut Simon, Ana Ester, Bob Luiz Botelho e Tania Afonso, é uma obra fundamental e necessária para todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual ou crenças religiosas.

O livro reúne uma diversidade de vozes, incluindo pais, mães, cuidadores, filhos e especialistas de diversas áreas, como teologia, saúde mental, ciências políticas, família e estudos comunitários. Através de horas incansáveis de pesquisa e entrevistas, a obra expõe a origem do ciclo de exclusão e violência que muitas pessoas LGBTI+ enfrentam em suas vidas, frequentemente começando dentro de casa, impulsionado por discursos cristãos fundamentalistas.

Apesar de não ser um projeto religioso, o livro apresenta um apanhado de vozes de lideranças, coletivos e organizações comprometidas em anunciar uma visão amorosa de Deus, que celebra e afirma a diversidade. A obra apresenta uma ampla gama de perspectivas, tanto de especialistas em áreas como teologia, saúde mental e ciências políticas, como de pessoas LGBTI+ e seus familiares. Essa diversidade de vozes permite uma compreensão mais profunda e completa da questão, mostrando como a exclusão e a violência começam muitas vezes dentro de casa, impulsionadas por um discurso cristão fundamentalista.

Para Gut Simon, a busca de famílias cristãs pela “cura gay” em templos, igrejas e consultórios terapêuticos, somados ao crescimento do mito da “ideologia de gênero” propagado pela extrema direita no Brasil em detrimento dos esforços da sociedade civil de acolher jovens LGBTI+ expulsos de casa sem respaldo de políticas públicas, são sinais de que não há tempo a perder.

Semente de Vida foi atrás da raiz da LGBTfobia. É preciso olhar para este cenário e entender que o que acontece na família se reflete na sociedade, e vice-versa.

Precisamos com urgência ecoar uma nova visão de Deus, em defesa da justiça social e da dignidade humana. Não há uma única forma de ser “família cristã” no Brasil. Para quem busca educar os filhos à luz da Bíblia, alguns textos, se observados de forma fundamentalista, resultam em “verdades bíblicas” que desconsideram o que a Ciência e os marcos regulatórios de Direitos Humanos já dizem sobre às diversidades sexual e de gênero, diz o comunicador social, idealizador e coautor do livro, Gut Simon.

Se nós, enquanto evangélicos e evangélicas, lutamos contra tudo aquilo que é diabólico, ou seja, tudo aquilo que divide, temos que aprofundar no tema da diversidade sexual e de gênero, buscando ferramentas como esse livro para que possamos não mais ser um instrumento do fundamentalismo que separa, mas sim do Espírito da Vida a que a tudo e a todos unem.

Semente de Vida é um livro que deve ser lido por todas as pessoas que buscam entender e combater a LGBTfobia em todas as suas formas, bem como por aqueles que desejam construir uma sociedade mais justa e inclusiva para todas as pessoas, independente de sua orientação sexual ou identidade de gênero.

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