Estudante diz como usou celular escondido para fazer 16 flagrantes de maus-tratos a crianças em escola de SP; veja novo vídeo

Jovem de 18 anos, que estava em seu primeiro emprego, fingia digitar ou filmava atrás de folha de papel para reunir provas antes de pedir demissão. Caso é investigado pela polícia que apura tortura, e donos de unidade de ensino foram presos

Por Carla Rocha


Anny Garcia Junqueira, de 18 anos: 'apesar do medo, eu sabia que precisava fazer alguma coisa' Reprodução

Estudante de enfermagem do Centro Universitário São Camilo, em São Paulo, Anny, de 18 anos, se define como alguém que gosta de cuidar de pessoas. "Nunca pensei em fazer outra coisa na vida", diz, categórica. Mas, para arcar com os custos dos estudos, a jovem aceitou seu primeiro emprego, no ano passado, na escola Pequiá, no Cambuci, Zona Sul da capital paulista. A unidade de ensino foi para o centro do noticiário por flagrantes de humilhações e maus-tratos a crianças, que eram amarradas em poste como punição ou mesmo confinadas por horas num "quarto escuro". Os flagrantes dos abusos são de Anny que, antes de pedir demissão, decidiu documentar os absurdos em vídeos e fotos — cerca de 16 situações flagradas — que foram entregues à polícia.

— Eu tinha muito medo. Conversei com a minha mãe sobre o que fazer porque não aguentava mais aquilo e falei em gravar mas que tinha receio, precisava fazer com todo cuidado. Minha mãe me apoiou, me deu força. Disse que era uma denúncia muito grave e que eu devia ir em frente. Passei a usar o celular, sempre disfarçando, fingia estar digitando algo ou lendo, como se não estivesse vendo o que acontecia. Às vezes, eu colocava um papel branco na frente do aparelho, mas deixava a câmera do lado de fora. E assim fui fazendo as gravações por mais ou menos duas semanas — relata a jovem, que não imaginava a repercussão que seu gesto teria.

Revelação aos pais: 'ficaram em choque'

Logo após pedir demissão, Anny conta que procurou as mães dos alunos da unidade — que atende da creche até o 5º ano do Ensino Fundamental, crianças entre 1 e 10 anos — com as provas da denúncia de maus-tratos. Ela conta que, assim que viram as imagens, os responsáveis ficaram em choque e passaram a mobilizar outros pais. Muitos disseram estar arrependidos de não terem acreditado em algumas queixas levadas pelos filhos como a de que os tios gritavam muito ou que colocavam eles no "quarto escuro".

— Eles achavam que era como um cantinho do pensamento. Mas não era. Na verdade, era um quarto escuro, onde crianças bem pequenas, de um ano de idade, eram trancadas e ficavam chorando muito por horas sozinhas. Cheguei a ver uma que ficou das 11h às 17h, horário de saída. E quem tentasse se aproximar era ameaçado. Gritavam: "deixem, saiam daí", não toquem nas crianças". Eles pareciam ter uma raiva em particular das crianças menores. Qualquer coisa era motivo para punir. Se corria, se não queria comer alguma coisa, se estava conversando com um coleguinha.

Uma das imagens mais chocantes é de um menino amarrado a um poste com as mangas do próprio casaco. Ele foi punido porque teria corrido pela escola. Anny mostrou ao GLOBO um outro momento em que as crianças parecem muito assustadas — estão paralisadas e sem falar nada — numa espécie de salão enquanto a dona da escola, Andréa Carvalho Alves Moreira, se dirige a um dos alunos que teria feito xixi nas calças dias antes. A criança que aparenta ter entre 4 e 5 anos, é confrontada pela dona da instituição.

'Por que você hoje não fez xixi nas calças?'

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— E hoje você não fez xixi nas calças por quê? — pergunta, com o dedo apontado para o garoto, que dá de ombros sem responder. — Quando sua mãe, seu pai ou sei lá quem vir te buscar, eu vou pegar e colocar aqui a resposta de seu filho. Fiz ontem de propósito, não fiz hoje porque não quis — completa, em voz alta, simulando escrever na própria mão. — Porque assim eu provo que louco aqui é você. Porque tem coisas na vida que eu não sou obrigada a explicar.

Andréa e o marido, Eduardo Mori Kawano, chegaram a ficar foragidos após as denúncias, mas, na segunda-feira (26-06), se entregaram à polícia. O caso é investigado pelo delegado Fábio Daré, da 6º Distrito Policial (Cambuci), que classificou os registros de flagrante de "situações vexatórias". De acordo com ele, além das imagens, relatos feitos por outros professores contribuíram para o avanço das investigações. Os proprietários da unidade de ensino — que tinha cerca de 30 alunos, total que caiu nos últimos anos — terão que cumprir prisão temporária de 30 dias. Também foi pedido mandados de busca e apreensão nos endereços dos dois.

Girl power: Anny Junqueira diz que escolheu cursar enfermagem para "cuidar das pessoas" — Foto: Reprodução

— De início [a investigação] foi [aberta] por maus-tratos e submeter criança a situação vexatória. Mas pelos relatos, pela gravidade dos relatos, eu incluí a tortura. Por alguns indícios que eu tinha das oitivas. As filmagens são tristes, revoltantes e isso causou muita revolta na gente, nas mães, nos pais — disse Daré.

Há outras imagens feitas por Anny. Em uma delas, Andréa obriga uma criança bem pequena, aparentando menos de dois anos, a guardar peças de lego numa caixa. Como a menina chora, ela a sacode e a coloca de pé diante da caixa exigindo que guarde o brinquedo. Em outra cena filmada por Anny, ela pergunta a outra criança, que parece assustada, se ela vai chorar. A aluna apenas balança a cabeça em negativa com o semblante triste. As denúncias dão conta também de que as crianças eram impedidas de comer, passando horas em jejum, ou eram punidas quando não queriam comer certos alimentos, como uma vez em que um aluno não quis comer beterraba. Segundo o boletim de ocorrência, um menino relatou as pais que a escola não oferecia café da manhã para ele, que ele ficava em jejum até e que ficava em jejum até as 11h, quando tinha que comer rápido ou o lanche seria retirado dele.

Anny percebeu uma escalada de violência por parte dos donos da Pequiá, à medida que a escola foi perdendo alunos. Ela lembra que, quando contou tudo para os pais, eles ficaram "chocados, com raiva, choraram muito. Foi muito impactante. Eles não faziam ideia do que acontecia. Muitos eram amigos dos proprietários". A estudante conta que se reuniu com os pais no fim de semana e, no domingo, foram ao plantão policial.

Em suas redes sociais, Anny aparece numa foto com uma camisa "girl power". Perguntada se já tinha enfrentado situação semelhante, ela conta que nunca se deparou com tamanha injustiça, mas que se define como "corajosa":

— Eu cheguei para auxiliar as professoras, mas logo, mesmo sem ter formação para isso, curso em pedagogia, me colocaram para dar aulas para uma turma de 3º ano do ensino fundamental. Tudo era muito estranho. Eu queria sair ou denunciar mas não tinha provas. Decidi que não ia sair sem garantir que aqueles abusos não continuariam a acontecer. Éramos cinco pessoas atuando como professores, duas tinham 16 anos e davam aulas para crianças do ensino fundamental. Comecei a gravar com medo, não sei o que poderiam fazer comigo. Até agora não tenho uma opinião formada sobre eles, fico confusa. Quando eles falavam com adolescentes não agiam assim, mas com criança eram sempre grossos, parece que tinham raiva. Diziam "eu não te suporto, eu tenho raiva de você". Era horrível.

Segundo Anny, que busca outro emprego, ela criou um elo de confiança com os pais que se dizem gratos ao que ela fez.

— Eu me sinto recompensada. Eles me agradecem muito, se criou entre nós uma relação de muito carinho. Dizem que eu salvei os filhos deles.

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