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Bernardo Machado

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Está difícil ser jovem LGBTQI+ na pandemia

Desenho de casal LGBT - Getty Images
Desenho de casal LGBT Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

17/05/2021 04h00

Os relatos de angústia da juventude LGBTQI+ se esparramam pelas redes e alcançam profissionais da educação que, com aflição, tentam acolher as demandas. No dia Internacional contra a Homofobia e a Transfobia, lembrado no 17 de maio, vale perguntar: quais os dilemas enfrentados por este grupo de jovens durante a pandemia?

Desde o ano passado, uma série de pesquisas se propôs a investigar o comportamento de adolescentes perante os entraves sanitários. Em junho de 2020, por exemplo, uma pesquisa do Datafolha, encomendada pela Fundação Lemann, pelo Itaú Social e pelo Imaginable Futures relatou, dentre outras coisas, como estudantes e famílias lidavam com a pandemia e o distanciamento social.

Foram realizadas 1.028 entrevistas por telefone com pais e responsáveis por estudantes com idade entre 6 e 18 anos. O resultado, divulgado no relatório Educação não presencial na perspectiva dos estudantes e suas famílias, destacou que para 64% dos pais ou responsáveis, estudantes estavam ansiosos/as, 45% apresentavam sinais de irritação, 37% demonstrava tristeza e 23% tinham medo do retorno à escola. Nas residências com três ou mais jovens as taxas eram ainda maiores, 72% estavam ansiosos/as, 63% com irritação, 50% tristes e 34% com medo de voltar à escola

Já a Fiocruz, na pesquisa ConVid Adolescentes, identificou a percepção de jovens sobre a própria saúde. Entre junho e setembro de 2020, o trabalho entrevistou 9,470 adolescentes entre 12 e 17 anos e atentou para as diferenças em termos de gênero e idade do grupo. Nos resultados, 30% de adolescentes relataram uma piora da saúde durante a pandemia: 33,8% das meninas notaram a deterioração de sua saúde, enquanto 25,8% dos meninos perceberam o mesmo. Dentre adolescentes entre 16 e 17 anos, a taxa atingiu 37% e entre aqueles entre 12 e 15 anos, a porcentagem foi de 26,4%.

Embora tais pesquisas sejam fundamentais e estejam em processo de atualização dos dados, elas não fazem menção à população LGBTQI+ adolescente. Por sinal, esta costuma ser uma característica das pesquisas realizadas sobre muitos assuntos: habitualmente, não se coloca como critério de análise fatores relacionados à orientação sexual ou a identidade de gênero em questionários a respeito de educação, mas também trabalho, segurança e afins.

Por isso, no dia 17 de maio, vale perguntar: quem se preocupa com a juventude LGTBQI+? Desconsiderado nos levantamentos, esse conjunto de pessoas parece inexistir. Quiçá se houvessem dados sobre essa população, poderíamos avaliar como esse grupo está enfrentando as dinâmicas pandêmicas. E há motivos para crer que suas experiências são singulares quando comparadas à juventude não-LGBTQI+.

A casa

A casa geralmente é tida como um espaço íntimo, isolado dos outros, habitado por uma família nuclear composta por um pai, uma mãe e seus filhos, todos vivendo sob a autoridade de famílias paternas, conforme destacam os pesquisadores Benoît de L'Estoile e Federico Neiburg.

Contudo, o lar, muito mais do que um refúgio — um lugar de conforto e um espaço de privacidade — é um espaço poroso no qual as pessoas experimentam mundos diversos de acordo com seu gênero, sua orientação sexual, sua idade, sua classe e raça, como salientam Camila Rosatti, Heloisa Pontes e Vincent Jacques. Pode ser tanto um abrigo do mundo exterior quanto um lugar de perigo e desigualdade, sobretudo para mulheres, crianças e jovens LGBTQI+. Afinal, a violência doméstica acomete essa população e ceifa seus direitos.

Dessa forma, além dos conflitos costumeiros entre pais e jovens, a juventude LGBTQI+ enfrenta abusos físicos e psicológicos específicos, pois há quem lhes negue sua existência. Na intimidade do espaço doméstico, é comum ouvirmos expressões como "sou o chefe da casa", "sou o rei da minha casa", o que reforça a percepção de que as leis morais estabelecidas naquele ambiente são arbitrariamente instituídas por quem detém a propriedade e que, portanto, não precisariam necessariamente seguir as normas de direitos do Estado.

Não quero insinuar que toda parentalidade necessariamente compromete a experiência de suas crias, tampouco dizer que pais não devem se preocupar com filhos e filhas. Por sinal, o coletivo Mães Pela Diversidade age justamente com o intuito de receber mães e pais que tem filhos e filhas LGBTQI+ de modo a sensibilizar e acolher suas angústias e promover condições para garantir os direitos dessas pessoas. Mães, pais e responsáveis que defendem o direito de seus filhos serem LGBTIQ+ não o fazem unicamente por suas crianças e seus adolescentes, mas também para assegurar o próprio direito de serem pais e mães de uma pessoa não heterossexual, conforme pontua o filósofo trans Paul Preciado.

A internet

Diante de portas trancadas, do distanciamento social e do incremento de mortes, resta, dentre poucas alternativas disponíveis, a internet. Mas o meio guarda um risco. No caso de jovens LGBTQI+, um teste de aparência, um flerte ousado ou uma experiência de contravenção de gênero ficam registrados no backup — ou até numa imagem em print. Os testes presenciais, quando muito, geram constrangimento, não documento.

Os recentes relatos de jovens que pululam nas redes e alcançam docentes sugerem o temor do cyberbullying, a perseguição de colegas e a exposição para os familiares. Aliás, a presença da família numa casa de um cômodo ou na partilha dos mesmos dispositivos de acesso à internet também compromete suas próprias experiências.

Além disso, a pesquisa O direito das crianças à privacidade, desenvolvida pelo Internetlab e pelo Instituto Alana, destaca os riscos que crianças, mas também adolescentes, experimentam na internet. As plataformas e aplicativos são projetados para encorajar o uso constante e a superexposição dessa parcela da população. Assim, empresas garantem que mais dados possam ser coletados e armazenados. Por sinal, a maioria dessas tecnologias digitais não foi projetada para crianças com menos de 13 anos, isso porque os modelos de negócios monetizam dados pessoais para fins comerciais e de modulação comportamental e técnicas de persuasão.

O relatório aponta que crianças e jovens são fortemente impactados por essas estratégias, pois moldam suas ideias e decisões sobre tecnologia, política, consumo, crenças e relações interpessoais. O que essas plataformas farão com os dados privados e sigilosos dessa juventude que está experimentando sua sexualidade e sua identidade em um momento formativo?

Novas pesquisas

Sem pesquisas direcionadas para a juventude LGBTQI+ e sem a atenção para as dores e sabores desse grupo, ficamos com impressões e conjecturas. Quais as nuances dos sentimentos e experiências desse grupo num momento pandêmico? Além da tristeza, da irritação e da ansiedade, como estão experimentando a vida? Como está se dando a violência?

A adolescência corresponde ao período na trajetória de vida de sujeitos em que é autorizada socialmente a experimentação de estilos de vida — as roupas, as maquiagens, o teste dos afetos. Como atravessar essa fase com a constante vigilância ou a ameaça da vigilância de pais e de empresas de tecnologia? Por isso, é pertinente alertar: se não falarmos da juventude LGBTQI+ e de suas singularidades, corremos o risco de negar seus direitos à liberdade e à vida.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL